terça-feira, 7 de julho de 2009

Corpus singular, Livro plural









Leitura de O Labirinto Finissecular e as Idéias do Esteta



Publicado no Forum Virtual O que é Literatura e Teatro da UFRJ, em 2004,
e na Revista Alea: estudos neolatinos, v. 7, n 1 - Rio de Janeiro, Jan-jun, 2005.

I

Porque recolhe e inscreve as idéias e as estéticas cujos roteiros engendram as últimas décadas dos séculos XIX e XX, O Labirinto Finissecular e as Idéias do Esteta (UFRJ / 7 Letras, 2004) é um livro que tem muito a ver com este início de milênio. Digo isso porque seus núcleos temáticos se bifurcam, se refletem, dentre outros, nas formas e nos temas nossos de cada dia, sejam eles: a vertigem finissecular e o colapso das idéias, o Decadentismo e os limites da Modernidade, a influência do mercado nas produções culturais, nossa subjetividade maquínica, a releitura e os deslocamentos dos valores.

O Labirinto... compõe-se de 16 ensaios críticos produzidos pelo grupo "Estéticas de fim-de-século", da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil/CNPq). Formado por professores de várias Universidades Brasileiras, escritores, tradutores e poetas, o grupo é liderado por Luiz Edmundo B. Coutinho – professor de Teoria Literária e Literatura Comparada da UFRJ. Ele apresenta o livro que organiza em parceira com Irineu Corrêa, pesquisador do referido grupo, e autor de longo ensaio que conecta os discursos da arte e da ciência. Nessa conexão, o autor assinala as “apropriações poéticas” feitas pela psicanálise, destacando a crise do texto científico.

Incrustado no pórtico dO Labirinto..., o ensaio de Latuf Isaías informa e seduz. Isso se dá principalmente por dois motivos: pelo repertório do autor e pela singularidade de sua escrita que, a exemplo dos bons decadentistas, estetiza a própria informação – o ensaio “Walter Horatio Pater & A Febre do Esteticismo”. Essa estetização textual aciona uma linguagem de tonalidade clara, levemente coloquial, e gramaticalmente refinada (o verbo que abre este terceiro parágrafo é o mesmo utilizado pelo autor para iniciar seu texto). Incrustar, escrutinar e inscrever são alguns dos verbos que acionam a forma pateriana desse ensaio de cunho assumidamente nietzscheano.

Acerca desse cunho filosófico, torna-se imperativo que façamos uma leitura sincrônica deste ensaio sobre Pater com um outro dO Labirinto...: “Qualquer dia, um centauro”. Nesse texto “em torno de um livro impossível de F. Nietzsche”, o poeta e professor Alberto Pucheu lê, num Nietzsche finissecular, o nascimento de outras formas de pensar que investigam, dentre outras, as historiografias literária e filosófica produzidas pela cultura ocidental. Nesta leitura que rompe com a noção de gêneros, o filósofo faz convergir de modo potencializado, as formas e forças das artes e da filosofia, sendo ressaltado a importância dos gregos e de sua porção dionisíaca para a compreensão da modernidade. A potencialização dessas formas e forças remete à estetização existencial sugerida pelo ensaio sobre Pater.

Na leitura que Latuf empreende da obra do escritor inglês, a estética é lida como “ciência autônoma da sensibilidade” num texto no qual a biografia e a bibliografia do referido autor dialogam, sugerindo ser Pater um dos Padroeiros do Decadentismo (Isso não é pouco se pensarmos no elenco de autores que sedimentam a referida estética, cujo "altar" abriga alguns "santos" do porte de Poe, Baudelaire e Wilde). A estetização febril anunciada no título do texto aponta para a importância do ensaio e da poesia na construção desta escrita: “no coração do crítico Pater adormecia um poeta que eclodia quando... (o autor) interrogava os outros artistas”. Dessa leitura do texto peteriano resulta ainda a lição esteticista de repúdio a toda moral.

II

No ensaio “As ‘Roupagens’ Estéticas Dos Ensaios Prazianos”, a ensaísta Flora de Paoli lê um narrador-ensaísta a partir do texto do escritor italiano Mario Praz. Essa leitura tem na forma do ensaio o “instrumento ideal para dar vazão ao imaginário decadentista”, além de ressaltar, dentre outros, a sintonia entre o eu que ensaia e o seu objeto, a confissão sugerida em toda crítica, as relações entre a cidade e a escrita. Nessa leitura labiríntica, o excesso surge como um dos “personagens” principais dos cenários decadentistas, e o mais interessante: o discurso ensaístico se constrói não apenas a serviço da descrição, mas principalmente com o objetivo de articular procedimentos textuais.

Produtor antigo des textos e leituras em torno dos espaços labirínticos, cabe ao poeta e professor Fernando Fiorese ensaiar em O Labirinto... sua cota de subjetividade maquínica. No seu texto, a máquina ganha uma dimensão livresca, cuja ação prolonga e adapta “o corpo para acolher o mundo”. Nessa acolhida, o poeta, o ensaísta e sua porção imaginária possuem relevantes papéis, na medida em que o caráter automático e repetitivo da máquina sugere a necessidade do sujeito contemporâneo aumentar sua cota de invenção. Para isso, o autor opera, dentre outras, a seguinte proposição: “desvelar a dimensão imaginária e a margem de indeterminação que toda máquina dissimula”. Nessa relação entre máquinas e páginas, Fiorese conecta kant, Benjamin, Barthes e Mallarmé, concluindo o ensaio com um belo poema do seu livro Corpo Portátil, cujo primeiro verso diz: “Livro só existe no plural”.

Grávido de senhas para o leitor que se atreve a eleger o não dito como objeto do pensar é o texto conciso de Stella Ferreira. Ao ler “a vertigem labiríntica como ritual de iniciação”, a autora nos induz a refletir acerca dos grandes estetas como criadores que, a exemplo de Oscar Wilde, alimentam o imaginário do seu tempo. Outra importante contribuição desse ensaio é o fato dele possibilitar a tessitura de relações entre a máscara e o significante. Ou seja: o texto de Stella faz pensar que a máscara – e não o que ela oculta – está para a construção identitária do sujeito assim como o significante – e não apenas o tema – está para a produção da linguagem literária, para a construção do texto estético.

Didático e dialógico, corpus de ponta, é o texto de Luciana Salles. Centrada na tradição oral, ela consegue seu intento de sincronizar Oscar Wilde, João do Rio, Horacio Quiroga e a “literatura infantil para adultos”, ressaltando as peculiaridades inerentes a cada autor. Apesar da forma metalingüística desse estudo que começa com o clássico “Era uma vez...”, é recomendável, numa próxima edição, que a autora reveja um ou dois jargões do texto, e solucione os problemas de ordem técnica da bibliografia.

III

O Labirinto Finissecular... reflete, em suas múltiplas máscaras e rubricas, e na polifonia de suas referências artísticas e culturais, uma marca singular em relação ao seu corpus. É a singularidade desse corpus, os roteiros de cada ensaio, e as miríades de conexões por eles viabilizadas que pluralizam a leitura deste labirinto de letras. A grande maioria dos ensaios recorta um universo teórico e estético relativo a autores decadentistas e finisseculares. Nesse recorte singular, alguns estetas são visivelmente mais ensaiados. É o caso de Oscar Wilde, Walter Benjamin e Roland Barthes. Eles compõem o trio de autores mais relidos nO Labirinto...

A vida à margem de Oscar Wilde e sua escrita decadentista erigem grande parte desta forma labiríntica. O esteta inglês surge como “ator” do teatro esteticista no ensaio do professor Latuf Isaías; depois o escritor aparece como componente da bibliografia de Mônica Fagundes e como tema central do ensaio de Stella Ferreira: “Oscar Wilde: o Esteta e os Mascaramentos do Corpo”. O autor de O príncipe feliz e outros contos é ainda um dos objetos da leitura de Luciana Salles, e surge como precursor da modernidade na escrita de Samuel Abrantes que analisa, a partir do “sistema” barthesiano, arte e moda no final do século XIX, demonstrando como esta última patrocina mutações corporais.

Além de “atuar” na longa epígrafe do ensaio de Rogério Lima que tematiza o “baixo valor do diálogo” no cenário pós 11 de setembro, Walter Benjamin serve de base para a leitura do tempo sincrônico empreendida por Mônica Fagundes, ao traçar “Uma breve história do labirinto”, e que ostenta a mais labiríntica epígrafe deste volume: Perder-se também é caminho (Clarice Lispector). Também as relações entre a leitura e a infância são tecidas por Luciana Salles a partir da tessitura de idéias benjaminianas. Para ler a narrativa italiana de “Luigi Malerba e as circulações da Escrita Decadentista”, Sonia Reis também recorre às Obras Completas do pensador alemão, assim como Fernando Fiorese que lê no autor de Rua de mão única a profecia da experiência do objeto livro para além do suporte material.

Nesta escrita labiríntica, Roland Barthes “encena” o texto final. Referendado em outros ensaios do volume, principalmente no texto certeiro de Samuel Abrantes, o esteta francês surge como personagem principal de “Formas e Truques de um Écrivain-Dandy”, escrito por Luiz Edmundo. A partir da leitura dos 16 fragmentos de “Soirées de Paris” (Incidentes), o ensaísta traça intertextos com a bibliografia do escritor francês, atentando para a audição dos ecos de Gide, Proust, Sade e Pascal, dentre outros, na escrita barthesiana. Com base nisso, Luiz Edmundo inscreve um Écrivain-Dandy que rompe com a noção de gêneros (artísticos e sexuais), num texto onde as simulações romanescas dão o tom. Ouçamos o ensaísta: “Se, para coroar o esteticismo fin-de-siècle, o dandy decadentista procurou realizar a beleza por meio de sua obra, coube ao écrivain-dandy tramar no ato de escrever sua possibilidade de existir”. Essa “trama” é visível no corpus que compõe O Labirinto Finissecular...

Pater, Praz, Mallarmé, Visconti, Freud, Nietzsche, Sciascia, Malerba, Wilde, João do Rio, Quiroga, Bataille, Benjamin, Barthes... As idéias desses estetas, dandys e decadentistas se voltam, geralmente, para uma estetização existencial onde o texto da vida tem muito a ver com o texto da página. Na leitura dos móveis e objetos que os circundam, na inscrição de cidades e páginas que os acolhem, nos modos de ler as modas, na forma de estetizar os alimentos e corpos consumidos e mascarados... Tudo nesse corpus parece estetizado sob as bênçãos atordoantes e generosas de Eros e as espetadas imperdoáveis de Thanatos. Se possível, com a boa cota de ócio que requer toda criação. Para que haja sempre O Labirinto... e a letra não se apague.