quinta-feira, 16 de julho de 2009

A escrita do eu no tempo da indiferença





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Resenha publicada em 2006 no Forum Virtual O que é literatura - PACC/UFRJ

http://www.pacc.ufrj.br/literatura/arquivo/resenhas_escrita_eu_indiferenca.php

I



Para “narrar” uma grande parte da odisséia intelectual e existencial que é a dilacerada história do eu na cultura do Ocidente, o professor e escritor Ronaldo Lima Lins relê, em seu décimo livro – A indiferença pós-moderna (Editora UFRJ, 2006) –, alguns dos nomes mais representativos do cânone formado em torno desse “eu trincado”, ou dessa escrita do “eu diante do eu”, como criativamente cognomina o autor.



Essa releitura feita pelo autor conecta atos políticos e históricos; sintoniza reflexões acadêmicas e produções estéticas; associa fatos sociais a discursos subjetivos de diferentes contextos e áreas da criação e do saber (Literatura, Filosofia, Teoria, Cinema, Pintura, Arquitetura...). Nessas conexões, o autor remete à era clássica, à instauração da democracia e à criação dos fundamentos da educação. Além disso, ele elabora uma crítica à alienação produzida pelo sistema capitalista; detona a “ausência de qualidade” das vanguardas do início do século XX; lê a universidade como “pólo de reflexão” e investiga, dentre outros temas complexos e contemporâneos, a subjetividade bélica deste início de milênio globalizado.



Nesta releitura da narrativa do “eu trincado”, o autor traça um roteiro que parece dar mais atenção ao período que vai do século XVII ao XX, com bastante ênfase para os “personagens” e “as ações” do século XVIII. Neste período, o saber é lido como um “instrumento de percepção”. É também nesse contexto que a esperança de justiça social inscreve-se como utopia, e os mais corajosos, a exemplo de Rousseau, iniciam a aventura do mergulho interior. Nestes cenários dos setecentos, fica claro, os sentimentos cedem, cada vez mais, lugar às ideologias.



Com base nos diálogos que empreende entre as formas artísticas e culturais e as idéias produzidas nesses séculos, o autor constrói dessa dimensão temporal uma leitura subjetiva onde a consciência corpórea ganha uma moderna visibilidade: Alguma coisa no século XIX, dramático nas suas dores, chegava aos ossos e se mostrava insuportável. É o que afirma o autor no texto que abre “o tríptico da identidade moderna”.



Muito desse drama que se instaura nessa metáfora da forma óssea pode ser lido nas páginas de alguns dos ícones intelectuais e estéticos para os quais o autor vem há anos direcionando suas lentes. São, portanto, esses ícones, os nomes mais representativos do “cânone” particular do autor, e que fundamentam A indiferença pós-moderna: Rimbaud, Rousseau, Kant, Hegel, Sartre, Camus, Malraux, Baudelaire, Benjamin, Lukács, Adorno e Hannah Arendt, dentre outros. O intertexto com a “letra” e as idéias desses autores possibilita a Ronaldo a tessitura de reflexões que tornam fluída a leitura deste ensaio onde nem a leitura dos olores nem o 11 de Setembro ficam de fora.



Assim, o autor conecta – em seus ataques à obscuridade, à alienação e ao caos –, os estratagemas produzidos por Dona Razão (Nada seríamos sem a razão do século XVIII.). Além dessas conexões, ele traz para o seu corpus as sincronias críticas produzidas a partir de procedimentos irônicos, e não deixa de registrar o diálogo entre as atitudes históricas e as formas do imaginário cultural.



II



A literatura ganha um bom espaço em A indiferença pós-moderna. Pela recorrência aos nomes de Paul Auster, Amoz Oz e Coetzee, por exmplo, dá para entender porque, dentre as formas literárias analisadas, o romance é lido como gênero aparentemente mais promissor do que a poesia. Apesar disso, são as formas poéticas e a vida do visionário poeta Rimbaud quem mais espaço ganham no texto inicial – “o escuro”.



É com clareza que Ronaldo Lins lê a inscrição moderna do poeta das Iluminations na nossa tradição literária e comportamental, a ponto de escrever a seguinte assertiva: ...o século XVII não podia gerar Rimbaud. Do texto de Rousseau, o autor de O Felino Predador (2002) ouve os tons filosóficos na narrativa literária por ele escrita, e lê em suas “paisagens” internas a “coragem solitária” de quem transita entre o luxo e a miséria às vezes gerados pela falta de interlocução. Isso, com “a vantagem de dispor de si próprio”.



Na leitura que empreende do recolhimento de Rousseau, Ronaldo vê no refúgio individual e nos mergulhos subjetivos do autor de Les Confessions uma manifestação contrária às tensões que o cenário burguês começava a provocar no reluzente século XVIII. Entre as luzes e sombras dos "cenários em ruínas" contemporâneos, A indiferença pós-moderna é um texto muito distante dos escritos oriundos das trevas da Idade Média, quando o perdão e a caridade davam “ibope”; quando a igreja ditava a sua narrativa divina como modelo de sabedoria e verdade.



Tendo como objetos de reflexão a indiferença e o individualismo contemporâneo, afirmados através da ideologia científica, o autor lê a retirada da morte na cena moderna e desta empreende uma leitura através da qual evidencia sua inclinação para outros modos de celebrar a vida. Nessa crítica da modernidade são também evidenciados os “dispositivos humanos”, como a simpatia e a amizade atrofiadas pela era moderna. A crítica inclui também os princípios subjetivos desta era que, apesar de ser reconhecida como ambivalente e brutal, é também, segundo o autor, “marcada pelo encantamento da utopia” (?).



Através de tais princípios, o autor constrói uma crítica ao ritmo veloz da contemporaneidade e às suas poucas possibilidades de criar estruturas. Segundo o autor, há um ritmo para que o pensamento se estruture. Ultrapassado um limite, a inteligência se debilita, rateia, não funciona. Escritor de um tempo avesso às transgressões, Ronaldo mune-se de ironia e reflexão, mesmo quando mergulha na esfera dos afetos ou quando transita pelo universo entrecortado de silêncios da teologia. Embora o amor e o misticismo, o amor e a fé dialoguem na leitura desta Indiferença..., seu autor sabe habitar um espaço de demolição e crítica. Neste contexto, a indiferença reluz em meio a uma “nova solidão”. Esse sentimento constrói-se a partir da maturidade intelectual de quem leu em Platão a difícil lição do encontro entre a ação e a teoria.



Apesar do mal estar que essa consciência possa gerar, é alentadora a leitura do mestre: a angústia sempre alimentou o movimento para frente. Fala de quem sabe que o tempo da “procura” não acaba. Principalmente depois que ele, o autor, reagiu (e venceu) àquele assaltante carioca cuja indiferença, ao invés de paralisar, intensificou a escritura movente que é A Indiferença pós-moderna.