domingo, 12 de julho de 2009

"Minha música não quer pouco"



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Entrevista publicada na Revista Suite Rio, ano 2 - n 9, Rio de Janeiro, 2005



“Minha música não quer pouco”. Com esse verso, a cantora e compositora Adriana Calcanhotto finaliza o cd A fábrica do poema, e inscreve um dos seus lemas. Conhecida nacionalmente a partir dos anos oitenta, ela é autora de outros cultuados títulos da nossa música, como: Senhas, Maritmo, Público, Cantada e, dentre outros, Adriana Partimpim. A ótima recepção desse último cd motiva o atual show da cantora, cuja direção ela divide com Hamilton Vaz Pereira e Leonardo Neto.

Ouçamos a seguir a moça, cujo canto – cosmopolita e contemporâneo – faz parte da trilha sonora de um tempo no qual a arte e a cultura de massas, a raiz e a antena, a infância e a maturidade, dialogam sem subordinação. Sobre Partimpim, a passagem do tempo e a conexão com as artes, a artista lança aqui o seu olhar, cuja visão traduz uma das “letras” e vozes que mais expressam a cultura e a subjetividade produzidas neste início de milênio.


NG – Para criar seu heterônimo Partimpim, você dialogou com nomes como Hokusai (ilustrador japonês) e Fernando Pessoa (poeta português). Qual é a contribuição desses artistas para a sua criação atual?

AC - É enorme. Suas relações com seus outros, seus desprendimentos quando se transformam em outros, tudo isso foi e é muito rico para mim.


NG – Seu “piston cretino” é um dos “personagens” que mais se destacam neste show. Gostaria que falasse sobre a criação e a utilidade desse instrumento.

AC - Esse é um dos instrumentos criados por Walter Smetak (1913-1984) e que, segundo ele, é o único instrumento que inventou onde não procurava um som nobre e sim algo engraçado e infantil. Construímos o Pistom Cretino para o show a partir das instruções de Smetak e eu adorei fazer isso, adoro qualquer tipo de proposição na linha “faça você mesmo”.


NG – Quais são as diferenças entre o público de Adriana Calcanhotto e a platéia deste show “Adriana Partimpim”?

AC - Do ponto de vista etário, o público Partimpim atinge um espectro muito maior. Na platéia tem crianças, velhinhos, adultos, tem de tudo. Esses públicos diferentes reunidos num teatro se auto-contaminam e o resultado é encantador.

NG – "Encantador" é o diálogo audível em seu trabalho com os múltiplos campos da arte. Principalmente com o artista plástico Hélio Oiticica e com os poetas. Poetas de diferentes contextos e estéticas, como: Antonio Cicero (“Água Perrier”, “Inverno”, “Pelos ares”), Waly Salomão (“A fábrica do poema”, “Remix século XX”), Mário de Sá-Carneiro (“O outro”) e, dentre outros, Ferreira Gullar (“O ronrom do gatinho” e “Dono do pedaço”). Gostaria que comentasse a sua relação com as outras artes, a poesia e os seus parceiros.

AC - Sempre tive dificuldades para respeitar as fronteiras entre as linguagens, nunca achei que isso funcionasse ou mesmo existisse na prática. Sou sinestésica e acredito que todo artista, em maior ou menor medida, também o é. Gosto de me deixar impactar por autores e inventores de qualquer linguagem e me deixo permear por eles quase como um exercício de aprendizagem, de humildade e de poesia.

NG – Num desses seus "exercícios" estéticos e existenciais, você teve uma sacada genial: relacionou a passagem do tempo à perda das certezas. E os ganhos? Haveria algum em amadurecer?

AC - Amadurecer é ganhar. Perde-se a juventude, as certezas vão-se embora, mas ganha-se experiência, rugas, peso e alguma autoridade. Hoje em dia, quando alguém me pede algo que considero chato ou absurdo eu digo – não posso fazer isso, sou uma senhora – e ninguém ousa retrucar, rs,rs.

NG – A idéia do heterônimo é ligada às noções de pluralidade, de multiplicidade – conceitos que têm muito a ver com as identidades deste contexto. Quais cores, imagens e palavras você usaria para pintar um painel do seu tempo?

AC - Acho que pintaria um painel como um borrão de algo que passou em alta velocidade, e usaria todas as cores. O tempo em que vivemos parece ser o mais veloz que consegue ser e mesmo assim anseia por mais rapidez. Eu gosto dessa idéia, mesmo com seus exageros e com o nível de superficialidade que parece predominar; prefiro o privilégio de viver em um tempo assim do que num tempo de marasmo. É bem verdade que não temos muitas alternativas já que as mudanças que precisam ocorrer têm de se darem rápido antes que o planeta seja exterminado.

NG – Partimpim é um sopro de vida nas imposições feitas pelo mercado globalizado. Em que sentido esse sopro alcança Adriana Calcanhotto, a outra?

AC - Nesse momento, quando tenho eventualmente que lidar com alguma coisa do trabalho Calcanhotto, sinto que há mais frescor, parece ser uma grande novidade pra mim e acho que isso é muito bom. O próximo trabalho Calcanhotto estará fatalmente marcado pela experiência Partimpim, principalmente no que diz respeito ao que posso obter dos músicos em suas performances em termos de liberdade e humor, e também em relação a mim. Acho que adquiri uma soltura maior como performer. Em relação ao mercado vi que mesmo sendo muito difícil é possível furar alguns bloqueios ainda que um projeto como este seja apenas um grãozinho de areia.

NG – É possível que outros heterônimos (“uma segunda pele”) venham a conviver com Adriana Partimpim?

AC - É terrívelmente provável, rs,rs....