sexta-feira, 10 de julho de 2009

Rayuela: utopia e realidade no espaço urbano




















Ensaio publicado na Revista Terceira Margem, ano VI - n 7, Rio de Janeiro, 2002



I

Num tempo no qual o espaço da virtualidade impõe-se como elemento constitutivo na formação da identidade do sujeito, a imagem associa-se à construção do real ou parece confundir-se com este. Mas, a qual realidade estamos nos referindo? A contemporaneidade parece cada vez mais propensa a construir o real a partir de múltiplos estágios espaciais. Estes, podem ser articulados de várias maneiras: através do olhar voyeur que transita na multidão, na relação corpo a corpo, na tela de cinema, no uso do controle remoto e num clic na tela do pc, por exemplo.



Na leitura que faz da realidade imaginária contemporânea1 , Nelson Brissac Peixoto assegura não haver mais diferença entre realidade e imagem. Essa assertiva tem por base a figura do viajante que, em vez de percorrer espaços, vê imagens - pela janela, pelo espelho retrovisor, na tela de cinema. Como as imagens de Rayuela, de Júlio Cortázar, estas imagens (a)parecem sempre em movimento; o que possibilita a construção de um nível de realidade já que, ao moverem-se e cruzarem-se no espaço, elas - as imagens - propiciam uma relação2 .



Relacionamos aqui a viagem realizada por este sujeito - que vê tudo enquadrado - com o roteiro de André Bueno em "Viagens pelo mundo desencantado"3. Neste ensaio, o autor lê vários textos de Cortázar, e diz da viagem como ação que, ao buscar romper com o movimento retilíneo e unilinear, possibilita uma outra leitura do tempo e do espaço. Associando a imaginação literária e o tema da viagem, diz André:

Ao invés da viagem real, embora misturada com algum tipo de imaginário, temos agora muito mais a viagem imaginária, o deslocamento forte do desejo, da linguagem, dos movimentos utópicos, quase sempre a partir de um sujeito cindido, em crise, diante de uma realidade que se torna hostil4 .

Talvez seja o fato destes deslocamentos ocorrerem mais no plano imaginário, como sugere André Bueno, o que leva Nelson Brissac a dizer que não existe mais diferença entre a imagem enquadrada no veículo e a que se vê na tela de cinema. Para o autor de Cenários em Ruínas, as imagens apresentadas por ambos os espaços - o veículo e o cinema - são auto-referenciais, na medida em que a imagem vista do veículo já foi veiculada na tela. Segundo ele, o contemporâneo olhar que lê estas imagens é objetivante, muito mais distanciado.



No texto de Cortázar, os deslocamentos do sujeito, seus movimentos utópicos pressupõem a crença numa espécie de ideal socialmente desejável que possui com o imaginário uma forte relação. Atrela-se este ideal ao anseio de rupturas; é contrário aos petrificados modelos existenciais, e idealiza a produção de uma outra subjetividade através da construção de outras imagens.


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Na cena contemporânea, procuramos ler o texto e seu contexto como espaços produtores do real e a partir dos quais se estabelece, como na escritura de Walter Benjamin, a relação entre ética e estética. Essa relação dialógica - entre texto e contexto - leva em conta a idéia de fragmentação (e não a busca de um sentido pleno), remetendo à noção de alegoria exposta por Benjamin e sugerida por Cortázar (Cap. 102): Tudo se decompunha em fragmentos, que se fragmentavam por sua vez; nada conseguia captar por meio de uma noção definida5 .


A alegoria lida nos dramáticos cenários alemães de Walter Benjamin remete às noções de fragmentação, de diferença e à expressão da margem, opondo-se ao símbolo e sua representação da lei, da ordem. Deste modo, pode-se associar as proposições do sentido alegórico ao ideal utópico, já que ambos postulam a ruptura de uma determinada ordem de valores vigentes (a noção de alegoria benjaminiana é resgatada da cabala e de sua pluralidade interpretativa, sem resvalar para a questão da fé, mas para a elaboração de um método. Este método - antes circusncrito apenas ao espaço religioso -, ao ser transplantado para o espaço da arte e da história vê pelo retrovisor o passado sempre renovado, a tradição relida, rememorada).



O lance genial de Benjamin foi reler a tradição percebendo, no cenário industrial das primeiras décadas do século XX, os novos ritmos impostos ao corpo e ao pensamento - o que possibilitou uma outra percepção do sujeito moderno. A partir desse cenário industrial e dos ritmos perceptivos dele oriundos, a lição benjaminiana adentra este novo milênio e seu cenário virtual ensinando-nos o quanto de histórico e social há na construção da percepção. Diz sua lição: se muda a percepção da comunidade, mudam-se as formas de produzir arte e cultura6 .


Estas mudanças de percepção e das formas artísticas foram captadas por Julio Cortázar, ao construir Rayuela - este metafísico rio de letras - que corre na inquieta Paris e na caliente Buenos Aires dos anos 50/60 e que, segundo Arrigucci, é lido como uma espécie de filosofia de toda a obra do autor argentino. As personagens do romance - Oliveira e a Maga, Traveler e Talita, Pola, Remorino, Gekrepten, os membros do Clube da Serpente - indagam e problematizam sobre vários temas e questões ligadas à arte, cultura, filosofia, ciência e religião, dentre outros. É através de associações entre esses diferentes campos do conhecimento que as personagens tentam compor as dimensões utópicas e identitárias dos espaços nos quais transitam.


Desta forma, aquelas áreas do saber e da cultura são mediadas por uma outra destacada "personagem" do texto: a cidade. Ela é o espaço no qual brotam as indagações e os questionamentos acerca da utopia e da realidade que engendram o texto de Cortázar; o que possibilita lermos sua narrativa como inscrição do real e do espaço utópico, a partir dos quais o sujeito constrói sua identidade. Nesta construção identitária, a leitura do sujeito e do texto se dá através de um discurso no qual a interrogação predomina.


"Encontraria a Maga?" - Esta primeira frase de Rayuela parece ser o signo que aponta para o discurso narrativo de Cortázar: um discurso que mais indaga que responde, mais sugere que propõe e parece dialogar melhor com as idéias de falta que de plenitude. Apontando para o fato de que quanto mais próximo da indagação mais nos acercamos da ordem do humano, o narrador indaga nossa distância em relação à ordem divina: Por que tão longe dos deuses? Talvez por perguntá-lo. ...O homem é um animal que pergunta. No dia em que soubermos verdadeiramente perguntar, haverá diálogo7 .


A indagação e o diálogo remetem a uma dimensão reflexiva que evidencia a perene necessidade humana de questionar-se. Como a Maga, as outras personagens parecem eternamente afeitas a dialógicos e exercícios interrogativos e, de olho na perene leitura do espaço no qual desenvolvem suas performances, erigem e desconstrõem seus discursos, buscando a tecitura do real. Estes discursos (a)parecem associados à uma realidade construída a partir das ações móveis e mutantes que compõem o (con)texto. Dentre os elementos destas ações, a linguagem talvez seja o mais importante, já que por meio dela é criado e atualizado o real. Acerca disso diz Etienne (cap. 99): ...a criação de ....uma linguagem... mostra irrefutavelmente a estrutura humana... A linguagem quer dizer residência numa realidade, vivência numa realidade8 .


É interessante observar que os próprios nomes das personagens alternam-se durante a narrativa, o que sugere a inserção delas numa realidade que não é dada de antemão. Assim, dependendo do contexto e seu discurso, Lúcia pode ser a Maga, Ossip é Gregorovius, Horácio é Oliveira... Como a Maga, a maioria deles - munidos do sentimento utópico expresso na oposição aos valores contextuais - parece recusar-se a aceitar o aceitável9 . Como Oliveira, eles descobrem que as suas sina é procurar - razão de todos os destruidores de bússolas10 ; razão de todos os que acreditam na possibilidade de materialização de um ideal considerado absolutamente bom (como eram lindos os anos sessenta...).


Indagando, questionando, recusando o aceitável, as personagens de Rayuela habitam uma Paris fabulosa. Seguem os seus roteiros a partir da frase ouvida de um passante. Lêem os signos e os sinais da cidade, na tentativa de construir o real; embora a leitura destes signos e sinais não pressuponha uma crença religiosa, mas apontem para uma leitura cuja interpretação estabelece vínculos diretos com o intérprete, e não com símbolos que postulem uma verdade pétrea, linear...


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O capítulo 2 de Rayuela expressa claramente a preocupação do narrador com a questão do real. Aqui, o estilo de vida das personagens evidencia a desordem que os regem, o caos portátil no qual se inserem. Neste caos, por exemplo, um bidê converte-se em arquivo de correspondência e a cama - desarrumada de muitos dias - transforma-se em palco de cerradas discussões lítero-afetivas. Diante desse cenário, ouçamos o narrador: Eu depressa compreendera que não se podia apresentar a realidade à Maga em termos metódicos...11




Para a Maga, a desordem e o caos pareciam compor uma outra ordem; como se ao sujeito necessitasse a percepção particular de sua inserção em meio às pessoas, idéias e objetos que o cercavam. A construção dessa outra ordem poderia, numa primeira instância, parecer absurda, até que daquilo surgisse algo coerente. Diferentemente de Horácio, a Maga carecia de poucas explicações. Ela sentia. Parecia bastar-se neste sentir. Pouco afeita aos meandros da reflexão, ela era contrária às leis do discurso cartesiano, às lições de Dona Moral e norteada por um saber de ordem sensorial: não era na cabeça onde ela tinha o centro12 .


Mergulhado em questionamentos metafísicos e seguindo preceitos utópicos, Horácio põe no espaço urbano a ação e o sentido de sua renúncia como protesto, já que para ele o ato de agir parece associar-se a uma moral, moral da ação. No texto esta moral está relacionada à realidade da classe média argentina. Segundo Horácio, a ação dessa classe serviria para tirar o corpo da realidade nacional e de qualquer outra noção do real, e para julgar-se a salvo do vazio que a rodeava13 . Renunciando à dialética da ação, nossa personagem busca fugir do universo às vezes automatizado da classe média, no qual a dúvida inteligente cede espaço para a esclerose, a definição; para a cena repetitiva e previsível.



Nesta cena, Cortázar estetiza as máquinas do conformismo - responsáveis, em grande parte, pelo automatismo nosso de cada dia e pela nossas dificuldades em relação às leituras do devir. Contrário ao que se estabelece a priori, e em sintonia com a pulsação proposta pelas personagens de Cortázar, ouçamos o escritor cubano Severo sarduy: ...nada na vida tem um sentido prévio... a missão do homem é precisamente dar sentido à vida, forçar o sentido: esse é o único sentido14 .


A história tem demonstrado ser a arte um dos espaços nos quais a construção desse sentido postula uma gama de possibilidades de inscrição do real. A própria noção de utopia pode ser lida como um gênero literário, uma espécie de ficção política cujo desejo de mutação afirma-se no plano imaginário. (Imperativo observar que o espírito utópico pode, por um processo de sublimação, gerar obras de arte que exprimem - de modo simbólico - o estado desejável a que ele aspirava mas que não conseguiu materializar15 ). Ao criar sua obra, o artista pode tentar iluminar o real ou mesmo criar uma outra noção de realidade, consciente de que a verdadeira realidade - sempre incompleta - consiste em algo que se produz a partir de nós (em sintonia com a alteridade).


O que Cortázar parece propor com seu jogo é a produção de uma realidade a partir de um saber com sabor, como queria Barthes, e não apenas da informação pura - o simples referente -, descartada da experiência sensorial. Isso evidencia-se na fala do narrador ao assumir que descreve e deseja o rio, enquanto nada a Maga - personagem que, frente às situações, decide-se, muitas vezes, epidermicamente. O real pode ser também saboreado na assertiva de Etienne, por exemplo, ao dizer que pinta com todo o corpo e ao contrapor-se à idéia do Logos compreendido exclusivamente como verbo. Esta contraposição aposta na crença de um real construído a partir de diferenças, da assimilação de pluralidades ou mesmo de uma circularidade que parece perpassar a existência de todas as coisas, criando sentidos inusitados, tecendo percepções múltiplas; tecitura essa que pressupõe o fim do raciocínio binário.


Estas noções de realidade - vivificadas por Maga e Etinne - sintonizam-se com as ambigüidades do projeto utópico da maioria das personagens. Esta sintonia que pode ser lida na interpretação que elas fazem do real levando em conta a alteridade, e não apenas ansiando uma espécie de satisfação narcísica que permeia pequenas sociedades fechadas - o que não se aplica ao Clube da Serpente. Neste sentido, imperativo seria apreender a unidade em plena pluralidade, que a unidade fosse como o vértice de um turbilhão e não a sedimentação do mate, lavado e frio16 .

Esse princípio de pluralidade (e de circularidade, poderíamos acrescentar) possibilita múltiplos estados perceptivos e remete a várias leituras do universo; dentre elas, uma que o interpreta a partir da forma labiríntica. Em Rayuela, a própria Paris, segundo o narrador, é lida como labirinto onde as fórmulas pragmáticas conduzem à perda. Com base nessa perspectiva borgeana, entendemos que a realidade não é somente aparência, mas sentimento e também imaginação, e o mundo não é um caos, mas um labirinto, um cosmo que se oculta, e temos a tarefa de descobri-lo17 .


Para a consecução dessa descoberta, a múltipla leitura do contexto possibilita a inscrição do real. Às vezes isso se dá de forma indireta como, por exemplo, quando o sujeito lê, no rosto da mulher amada, a rua de uma cidade. Noutras páginas, são luzes que brilham num olhar, remetendo à nuvens, a um viaduto ao anoitecer (cap.11). Às vezes, essa leitura é típica de quando uma mulher se transporta num homem - em sua pele, em seus cabelos, nos seus olhos - e assim atinge uma outra mulher (A Maga, por exemplo, sentindo a existência de Pola em Horácio).

Outras vezes a real tessitura do próprio espaço urbano é lida através do tapete desbotado (embora todos assumam viver um grande amor às cegas por ela - a cidade), que desbota ao rés do chão. Mesmo no pantanoso terreno dos afetos, descobre-se ser a leitura do espaço viável quando entramos no Jogo, ...atraindo-se e rejeitando-se, como é necessário quando não se quer que o amor termine em cromo ou em romance sem palavras. (...) nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura...18

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Não apenas no discurso amoroso, mas também no discurso estético, a busca de desvendar o labirinto, na tentativa de fundar o real, está presente no jogo vivido pelas personagens. Após discutirem a pintura no capítulo 9, o capítulo 10 e o 17, por exemplo, evidenciam a música, destacando a importância do blues e do jazz. A música compõe a estética de Rayuela: tece a realidade e o ser. Isso nos remete novamente aos Cenários em Ruínas que, ao colocar sob o refletor a figura do estrangeiro, evidencia a descoberta de musicais elementos identitários incorporados pelo sujeito que viaja, emigra. Diz Nelson Brissac, como se dissesse das personagens de Cortázar: Eles descobriram no blues, música dos desterrados americanos, daqueles que tiveram de partir, que perderam tudo, a expressão de sua própria deriva, do seu estranhamento19 .


Em Rayuela, a própria música é ouvida como personagem migrante: ...o jazz é... um pássaro... que imigra ou transmigra, salteador de barreiras, contrabandista, algo que corre, que se difunde... (cap. 17). Pássaro à deriva sobre os espaços... Salteador cujo estranhamento desautomatiza, educa tímpanos... Essa deriva do jazz é também vivificada no diabólico divórcio das formas e dos conteúdos, às vezes lido por Etienne (cap. 16); o estranhamento jazístico pode expressar-se na forma como Gregorovius define Oliveira para a Maga: sujeito patologicamente sensível à imposição de tudo aquilo que o rodeia... Em resumo: ...despedaçado pela circunstância (cap. 17). Esse despedaçamento do sujeito pode expressar-se na voz do narrador. Ao relacionar o ser ao jazz, ele improvisa com o que de mais e de menos distingue o humano de sua criação musical:

...um homem é sempre mais do que um homem e sempre menos do que um homem, mais do que um homem por encerrar em si aquilo que o jazz faz sentir e até antecipa, e menos do que um homem em virtude de ter feito dessa liberdade um jogo estético ou moral, um tabuleiro de xadrez onde se reserva ser o bispo ou o cavalo, uma definição de liberdade que se ensina nas escolas...20

Neste jazz e neste jogo, a epifania é lida como iluminação que ordena o caos aparente de cada dia. Da desordem transformada em texto - som ou imagem - gera-se, a partir de um olhar utópico, uma outra ordem. O espírito da utopia ajuda a olhar com mais acuidade e sutileza o contexto. Pode, por exemplo, buscar sentido numa tela de Mondrian que, mesmo aparentando não possuir ar, sugere outro modo de respirar. Essa sugestão nasce quando a naturalidade e a realidade se tornam inimigas (cap. 21), e o passado debate-se com a realidade presente.
Na ciranda do tempo, o Jogo da amarelinha diz da necessidade de reinstalar-se no presente e chover internamente para que sejam descartados os olhos que olham sem ver. Neste jogo faz-se bom uso do próprio silêncio e o humor torna-se ingrediente imprescindível, tipo numa cena onde os fósforos começam a falhar, um após o outro. É quando o real expõe sua cárie - sua precária noção de limite. Mas, qual chama que arde no tostado corpo feliz, a noção de limite é também mutante; movência que anuncia outro fósforo, outra luz, outra cor.


Muitas vezes nenhum fósforo e nenhuma luz são usados pelo Clube da Serpente ao travar discussões acerca do real (cap. 28). A tecitura do que seja a realidade faz-se, às vezes, pouco luzidia, com traços miúdos de um cotidiano coletivo cuja oralidade detona as dicotomias ocidentais. No Clube, os avisos debaixo da pele comunicam o que o dicionário pode omitir. Exemplo: para o Clube, às vezes, a audição da chuva serve como trilha sonora... Nestes momentos, percebe-se

que o homem parece seguro somente quando se encontra em terrenos que não o tocam a fundo: quando se distrai, quando conquista, quando arma os seus mais diversos disfarces históricos à base do “ethos”, quando delega o mistério central a “cura” de qualquer revelação21 .

Rayuela às vezes radicaliza ao eleger a revelação e os movimentos utópicos, dentre outros, como elementos representativos da noção de profundidade. Nossa provisória condição humana e moderna demonstra, principalmente ao fitarmos as imagens que nos cercam, que plainar na superfície, distrair-se e conquistar podem ser verbos de um outro jogo que, sem abrir mão da construção do real, o lê de outra forma.


V

Do lado de lá a discussão sobre o real envolve todo o Clube. Para o pragmático Ronald, ...o problema da realidade não se enfrenta com suspiros. Gregorovius questiona. Ronald insiste no fato de não necessitar de qualquer palavra para sentir, e a isso chama de realidade. Oliveira concorda, mas lembra a eterna impossibilidade de captação da totalidade e da incomunicabilidade existente entre os seres, já que eles dispõem apenas dos sentidos e das palavras - elementos dos quais preferem desconfiar. Para ele, cada ponto de vista pessoal possibilita um ângulo de leitura diferente do real, e referindo-se a Ronald, diz: ...o seu egocentrismo barato não lhe dá qualquer realidade válida. Só lhe dá uma crença fundada no terror, uma necessidade de afirmar tudo que o rodeia...22




Oliveira sabe que perante um momento de crise a realidade precipita-se e o sujeito renuncia à dialética. Criticando o absurdo de um mundo ordenado, ele diz que a razão só serve para dissecar a realidade na calma, ou para analisar as suas futuras tormentas, nunca para resolver uma crise instantânea23 . Essa lógica parece apontar para a necessidade de, em alguns momentos, ser necessário descartar a dialética e os históricos valores herdados (a verdade e a bondade, por exemplo) a fim de alcançar outras instâncias do real. Ou, como sugere Gregorovius, talvez essa lógica seja estranha e inexplicável como os sonhos e as revelações, por exemplo. Mas tudo isso é tão imprevisível e mutante quanto o movimentado roteiro das pedras e das perdas no jogo... Mas tudo isso é tão dúbio e difícil quanto chegar com a pedrinha ao céu no jogo da amarelinha (cap. 36). Será por isso que precisamos inventar o Éden, colher brisa, escrever poemas, tecer utopias? Talvez seja por esse motivo que o moderno Oliveira anseie por um bonde menos incômodo, uma noção de centro, de unidade, de ubiqüidade. Outras chaves e cifras. Ele sabe da necessidade de intuirmos o que constitui nosso real, do ser ao verbo, não do verbo ao ser (cap. 99).




Dessa forma poderemos expressar o desejo de anular a distância entre o que a ordem social é e o que deveria ser, caso fosse possível torná-la satisfatória24. A essa expressão do desejo chamam de utopia. Construindo leis e roteiros existenciais para a sociedade contra a qual se volta, a criação utópica oscila, segundo Benedito Nunes, entre a compreensão reflexiva das possibilidades humanas ainda em suspenso e a negação imaginária do real que se desprendem25. Mas, embora negue este real, a utopia revela, por outro lado, as possibilidades objetivas que ele contém. A partir disso, uma de suas principais funções consiste em estimular a imaginação criadora a fim de criar um começo de modelagem - projetar linguagens e ações futuras. Com base nesse estímulo imaginário, torna-se viável a invenção de possibilidades coletivas, jamais imóveis ou individuais, patrocinadoras de ações e relações entre os homens.




O exercício destas ações e relações humanas parece expressar seu significado no capítulo 56, no qual as duas personagens situam-se em territórios diferentes, entre o limite e a passagem. Talvez a distinção entre ambos - limite e passagem - esteja no exercício da voz (mais sonora e vibrante) oriunda da máscara, construção da persona. Ao ressaltar que o dionisíaco Oliveira mistura as realidades e as recordações de um modo sumamente não-euclidiano, diz Traveler: Estar vivo parece sempre ser o preço de alguma coisa. E você não quer pagar nada. Nunca o quis. Uma espécie de pureza existencial. Ou César ou nada, esse tipo de definições radicais26 .
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Tão radical quanto o poema rápido e certeiro do polêmico Paulo Leminski: Para que cara feia?/ Na vida/ Ninguém paga meia27.


Notas

1- PEIXOTO, Nelson Brissac. “Imagens” in Cenários em Ruínas. A realidade imaginária contemporânea. São Paulo: Brasiliense, 1987. P. 155.


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2- Idem, p. 153.


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3- BUENO, André. “Viagens pelo mundo desencantado” in Terceira Margem. Viagens e Outros Ensaios. Revista de Pós-Graduação em Letras da UFRJ. Ano IV/V - Nº 5-6, 1997-1998. P. 16.


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4- CORTÁZAR, Julio. O Jogo da Amarelinha. Trad. Fernando de Castro Ferro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. (Col. Biblioteca do leitor moderno, vol. 124). P. 414.


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5- BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Obras escolhidas. Vol. I. Trad. Sergio Paulo Rouanet. 5ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. P. 169.


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6- CORTÁZAR. Op. cit. p. 505.
7- Idem, p. 04.
8- Idem, p. 05.
9- Idem, p. 09.
10- Idem, p. 21.
11- Idem, p.14.


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12- JOSEF, Bella. Diálogos Oblíquos. 34 escritores falam de literatura latino americana. Entrevistas a Bella Jozef. 1ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1999. P. 117.


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13- BOUDON, Raymond. & BOURRICAUD, François. “Utopia” in Dicionário Crítico de Sociologia. Trad. Maria Letícia Guedes Alcoforado e Durval Ártico. São Paulo: Ed. Ática, 1993. P. 593.
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14- CORTÁZAR. op. cit. p. 72.



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15- BORGES, Jorge Luís. “Realidade” in O Dicionário de Borges. O Borges oral, o Borges das declarações e das polêmicas. Org. Carlos R. Stortini. Trad. Vera Mourão. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. P. 179.


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16- CORTÁZAR. op. cit. p. 27 e p. 29.
17- PEIXOTO. op. cit. p. 151.
18- CORTÁZAR. op. cit. p. 64.
19- Idem, p. 141.
20- Idem, p. 143.
21- Idem, p. 145.
22- BOUDON. Op. cit. p. 598.


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23- NUNES, Benedito. “Das utopias” in O Dorso do Tigre. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1976. (Col. Debates, 17). p. 31.


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24- CORTÁZAR. op. cit. p. 297.


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24- PAULO, Leminski. Caprichos e Relaxos. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 131.