domingo, 5 de julho de 2009

Corpo como pasto, te(x)to ou altar?





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Ensaio apresentado no Encontro de Estudantes de Pós-Graduação da UERJ, em 2002, e publicado numa versão ampliada na Revista Ipotesi v. 6 - n. 2 - jul/dez - 2002 - Juiz de Fora, Editora UFJF, 2003


A inscrição de uma educação pelo corpo
na poética de Fernando Fábio Fiorese Furtado



Eu sempre escrevi com meu corpo, com toda minha vida:
não conheço problemas puramente espirituais.
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Nietzsche, Assim falava Zaratustra


O corpo é a grande personagem da poética de Fernando Fábio Fiorese Furtado. No volume Corpo Portátil, a ambigüidade expressa no próprio título remete aos “ritmos galopantes”, às pulsações corpóreas e ao que de aparentemente cartesiano e/ou linear expressa o adjetivo portátil: de fácil transporte, de pequeno volume ou pouco peso, que se pode armar e desarmar. Esse contraste sugerido pelas sinuosidades corporais e a linearidade proposta pela adjetivação deste Corpo... é expresso na construção de uma sintaxe que, entre intertextos e múltiplas percepções temporais, simula a pulsação do próprio corpo escrevente.

Corpo Portátil é um título instigante e paradoxal. Isso acontece porque nos cenários maquínicos da contemporaneidade, as perdas de um “eu mínimo” (que se encolhe e se expande na velocidade da paisagem eletrônica) não parecem ser facilmente transportáveis num corpo. A consciência desse paradoxo que instiga - a necessidade de conduzir de modo portátil o corpo, os seus ritmos nem sempre afinados, e o que de rigoroso sugere o adjetivo portátil - pode ser ouvida numa labiríntica “Conversa na alfaiataria”, em que o autor costura a definição de seu título:

Corpo é como ter o mar na gaveta,
um cômodo a cumular nossas perdas,
uma pausa conspirando o relógio.
...
Para colocar um terno de pé,
há de cortá-lo entre o sempre e o sequer,
há de manter os músculos sob fiança
...


Bendita tensão essa que, ao contradizer, estetiza o objeto de sua própria inscrição: não apenas o corpo escrevente, mas também o do outro, numa intersubjetividade que produz a escrita. Entre a ternura e o corte, na musculatura do texto de Corpo Portátil o outro é visivelmente a personagem que ganha corpo no volume, como declara o autor em nota: “Escrever semelha às muitas tentativas de assentar a mão à rubrica. E tal rubrica não é de modo algum pessoal e intransferível, pois que urdida pelos gestos de muitos” [FURTADO: 2002, 177].

A urdidura e os procedimentos estéticos dessa poética corpórea lecionam a necessidade de “arremessar o corpo ao longe/ (mesmo com séculos de espera)/ para do outro fazê-lo ponte”. Pela estetização desses versos e de olho na “nota do autor”, percebe-se a distância que situa a sua geração da estética romântica, e mesmo da geração alternativa ou marginal, na qual Torquato Neto - assumidamente isolado - reverenciava em seu “Cogito” [CAMPEDELLI: 1995, 36] um eu pouco sintonizado com o outro: “eu sou como eu sou/ pronome/ pessoal intransferível/ do homem que iniciei/ na medida do impossível”.


A marginal “medida do impossível” é aqui substituída pela contemporânea desmedida das possibilidades. Apesar da morte assinalada por Carlos Nejar no prefácio de Corpo Portátil, nele Fiorese constantemente reivindica o corpo e sua ação, numa pedagogia que intenta inscrever a “memória da pele” e a alfabetização gestual. Ao fazê-lo, o poeta estetiza uma subjetividade que ultrapassa as esferas interiores e parece descartar as possibilidades da morte.

Relacionamos essa estetização subjetiva à noção de exterior, ensaiada por Roberto Corrêa dos Santos, e que possui nos gestos e na experiência do exterior, de Nietzsche e Foucault, sua base. Roberto ressalta a importância de tratarmos o exterior “como categoria teórica” [SANTOS: 1999, 33], e como princípio fundamental do saber e da produção artística contemporânea. Segundo o autor:

O corpo não está escrito de dentro para fora; o corpo, escreve-se sobre. As personagens grafitam sobre eles a sua vontade. Diz-se ‘não’ à fragilização corporal. Diz-se ‘sim’ ao embate. Por isso, o corpo resiste e o pensamento estrutura-se. ... Há o exterior, esquadrinhado por um saber que com o corpo se desenvolve, e se salva.

Com base nesse pensamento que renuncia ao abismo e mergulha numa natureza exterior, anuncia-se a vida. Anuncia-se também o prumo portado por este Corpo... produtor de pequenas quedas; porto de mortes diárias. Exemplar dessa relação entre prumo e queda, vida e morte, é o texto “Esboço para três serpentes”, onde se lê:

Morrer é um excesso e seus relhos,
é o que alguma vez existiu
e nos depura com a sua ausência,
é a chuva vista da varanda,
estes domingos sem infância
e quanto demove a palavra.



Mesmo quando esse morrer insurge, a pujança do próprio verso afirma - por meio de uma metodologia dos contrários - a consistência corpórea, a potência vital ali contidas. Na estrofe acima, o ato de depurar, por si só, reflete essa potência; além do que encerra de movência, de desvelo e de força o verbo demover. Essa mesma metodologia e esse mesmo potencial residem latentes em outros textos. Isso acontece quando um “corpo discorde” busca afinação em outro, ou quando um outro corpo purga o que “será furor, ferida ou frase”. Acontece também quando o tempo anuncia o afastamento de tudo, ou quando “o rosto acolhe uma filiação incerta”. Em todas essas instâncias de prumar e cair, existir e findar, há sempre um corpo portando, na vertical, seu arsenal de dúvidas, suas soluções portáteis; além dos gestos poéticos que tecem o discurso e a paisagem.

Uma educação pelo corpo

As relações entre a forma, a escritura e o corpo que as produzem demonstram o desejo do poeta de tornar-se texto, transformar-se em templo da escritura. Neste sentido, o poema é lido como espaço no qual o sujeito introduz o desejo e atualiza sua própria constituição [GURGEL: 1998, 9]. A partir desse pressuposto estético, procuro inscrever - na poética de Fábio Fiorese - uma pedagogia que usa o corpo como instrumento hermenêutico, na tentativa de erigir uma interpretação da vida. Poesia construída, portanto, como leitura do sujeito e do mundo.

É imperativo ressaltar que, nesta poética, o autor aponta para as três “direções” através das quais, segundo Freud, o sofrer nos ameaça: o nosso próprio corpo, o espaço do mundo externo e as relações com o outro [FREUD: 1978, 141]. Embora exista um “caráter de inseparabilidade” entre essas três “direções”, talvez a relação com o outro seja a mais difícil de ser administrada. Mas é imprescindível assinalar ser esse mesmo outro o parâmetro para a noção de identidade, de saber e de construção da verdade; além de corpo significante com o qual se estabelecem as possibilidades do gozo e da inscrição da letra.

“A severa matemática” do gesto e as grafias do afeto


As ações desta poética corpórea parecem destinar-se a lecionar a história das formas, a geometria do corpo e “a geografia das cicatrizes”. Sua pedagogia pode ser aferida no didatismo expresso no belíssimo poema “II/Dona Geralda, professora de altura”:

Leciono nesta altura
Quase sem respirar.

Em estante livro não presta.
Prefiro a escada para guardá-lo,
Um degrau acima da nuvem.

Faz escuro na cátedra.
Carrego um eclipse
Para nunca extingui-lo.

Sem luz nem luneta
No aluno me ensino.

Leciono nesta altura
- não sei outro desamparo.


No “desamparo” dessa lição poética, o corpo amolado e aceso inscreve, no capítulo da gesticulação, o quanto de delongas e demoras reside no ritmo que articula um gesto, que produz uma "letra". Aprende-se assim a apurar e acolher o que move. Aprende-se a sagrar essa movência, no desejo de delinear uma forma; mesmo que essa forma - ainda em construção - brote “de um gesto sem esplendor ou veneno/ (músculos apurando o movimento)”.

Corpo Portátil poderá, portanto, ser lido como um pequeno dicionário de gestos. Nele encontramos “verbetes” cujas imagens poetizam gestos geométricos ou desengonçados, gestos afetivos ou agressivos; gestos “sem pausas” porque colhidos em território áspero, ou suaves porque tradutores de leveza. Encontramos também os gestos no cio – “e a carne/ em verbo se desvelava”. Acerca da dança da criação e do desvelo com os gestos, diz Roberto Corrêa dos Santos: “Criar, apesar e por causa do estilo, consiste em uma espécie de tolerância para consigo mesmo, um curvar-se ate a inevitabilidade do gesto repetido” [SANTOS: 1999, 85].

Essa “inevitabilidade” da repetição é estetizada na aprendizagem de Dona Geralda, em sua didática do “desamparo”. Munida do combustível da “tolerância”, essa “professora de altura” parece assinalar o desejo de perdoar a si própria pelo “quase” da respiração, por não saber lidar com “outro desamparo”. Não se trata de fácil perdão... É interessante perceber como o próprio poema repete o verbo lecionar e o espaço de sua inscrição – a altura – como se sugerisse o inevitável exercício da repetição ensaiada por Roberto Correa.

Nessa gramática do corpo, a memória constitui-se num capítulo à parte: “o que falta resolve/ toda a memória”. Embora uma certa nostalgia de plenitude e esplendor permeie alguns versos deste Corpo Portátil, o poeta sabe que o poema não se tece apenas com lembranças, mas também com as imagens do não dito, do esquecido; ele aprendeu a importância de conjugar o verbo esquecer; sabe ser necessário “ao que não for assimilável a resposta saudável do esquecimento” [SANTOS: 1999, 68].

Da matéria “assimilável” resultam os muitos poemas dedicados a parentes e familiares. São textos que lecionam uma pedagogia ancestral, e/ou são “inspirados” em amigos e personagens do cotidiano, da história da arte e da cultura. Nos significantes familiares, por exemplo, este Corpo... nos ensina a redondez afetiva inscrita na lição materna (“e doía a mãe de tanto amar”), e remete a temporalidades diversas gerando, no espaço da paternidade, o seu discurso. Essa geração é audível num dos poemas mais marcantes -“Casa paterna”:
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há idades esperando
em cada cômodo da casa
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Para estar aqui
atravessamos muitas mortes.
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Da grafia ancestral partimos para o discurso amoroso. Desde o Romantismo - e passando pelo eu-lírico da modernidade - aprendemos que entre a entrega amorosa e a experiência poética há muito mais águas do que supõe nossa infinita sede de formas [GURGEL: 2002, 121]. Mas, diferentemente de algumas poéticas contemporâneas que elegem Eros como “padroeiro” e a partir disso expressam infinitos desejos através de uma “metalinguagem erótica”, nenhum strip-tease, nenhum desnudamento existe aqui como procedimento poético.

Essa lírica ensina que as “alegrias” ”servidas” pelo corpo podem também residir em sonoros monólogos fragmentados. Aqui, até os sustos, as “sonoridades dissonantes” anunciadas pelos líquidos corporais postulam uma forma. Nesta fonética lição poética aprende-se que tais “sonoridades” lecionam o futuro: “os ruídos”, se “incomodam”, anunciam distância; são corpos afiando caules e calos.

Dessa sintaxe dos afetos emerge uma tonalidade interrogativa, audível num discurso no qual a forma labiríntica ganha espaço: “De quanta distância preciso/ para o amor/ que me assombra?”. “Mas e o amor,/ o amor onde estava?/ na epiderme do vento?/ nas têmporas da palavra?”. Essas indagações tonificam o infinito questionário afetivo e remetem nunca ao centro, mas ao labirinto. A forma labiríntica é a mesma insinuada pelo poeta ao ensaiar acerca de “A literatura na cena finissecular” [FURTADO: 1999, 122]. No referido ensaio, após sugerir o círculo, a espiral e o labirinto como formas de alcançar o horizonte de sua viagem, diz o poeta:
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... foi ao labirinto que nos condenamos: as muitas indagações o indicam. ... insistimos em encontrar um centro quando só havia margens, desvãos, e precários horizontes.

A morfologia labiríntica dessa letra amorosa - que mais sugere e indaga do que afirma - leciona sua poética matéria de prova: tecer, neste “itinerário provisório” o intertexto cujos diálogos elegem a alteridade (seja Augusto dos Anjos ou Murilo Mendes, Rosa ou Drummond, Edimilson ou Iacyr) como parâmetro. Nestes intertextos, o autor estetiza com cortes e alinhavos sua costura poética. Dá conta dos múltiplos tecidos do texto. Sabe cerzir vazios internos e na pele pressente o quanto de adorno ou dor reside num alfinete. Assim, o poeta instrui a “doméstica linha”. Seja essa a linha da mão, da página ou da costura. Como o seu conterrâneo Murilo Mendes, Fábio Fiorese sabe ser o poeta um alfaiate ótico. Feito “Nelsa, enquanto costureira“, Fiorese pode dizer: “De corpo entendo”. De poesia também, acrescente-se.

Referências Bibliográficas

CAMPEDELLI, Samira Youssef. Poesia Marginal dos anos 70. São Paulo: Scipione, 1995.
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FIORESE FURTADO, Fernando Fábio. Corpo Portátil. São Paulo: Escrituras, 2002.
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_____ “Exercício de tensões: Leitura de um poema de Iacyr Anderson Freitas”. In: “Ipotesi”.
Revista de Estudos Literários. Juiz de Fora: Editora UFJF. V. 5 – n 1 – Jan./Jun. – 2001.
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_____ “A literatura na cena finissecular”. In: Globalização e Literatura. Discursos Transculturais. Vol 1. LOBO, Luiza. Org. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.
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_____ Dançar o Nome. Juiz de Fora: UFJF, 2000. Trad. Miriam Volpe e Prisca Agustoni. (Em co-autoria com Edimilson de Almeida Periera e Iacyr Anderson Freitas).
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FREUD, Sigmund. “O mal-estar na civilização”. In: Os Pensadores. Trad. José Octávio de Aguiar Abreu. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
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GURGEL, Nonato. “O desejo gerador do texto de Ana C.” In: Jornal O Galo. Natal, 1998.
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_____ “O mais profundo é a pele”. In: Gênero e representação na Literatura Brasileira.
DUARTE, Constância Lima et al. (Org.). Belo Horizonte: UFMG, 2002. (Col. Mulher & Literatura, v. 2).
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SANTOS, Roberto Corrêa dos. Modos de saber, modos de adoecer. O Corpo, a Arte, o Estilo, a História, a Vida, o Exterior. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.