sexta-feira, 17 de julho de 2009

Há um fio narrativo na voz em off, ouça





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Texto publicado na Revista pequena morte. Antologia comemorativa de dois anos. Rio de Janeiro, Oficina Raquel, 2008.


Leonardo Gandolfi lançou no entanto d`água, o seu primeiro livro de poemas, em 2006. Há nesse livro uma voz que se constrói às vezes meio secreta, aparentemente leve, dialogando em vários tons. Alguns desses tons são mais agudos, outros menos; e outros há com ecos de porão e rua. Essas pistas vocais, seus andamentos e alguns compassos paisagísticos estão presentes com vigor na sua nova lavra de poemas (“Os espiões”, “– Todas as minhas coisas são tuas” e “Mande nem que seja um telegrama”).


Nessas novas paisagens textuais, o poeta confirma-se exímio na fabricação de títulos e versos, na retirada do peso da linguagem e na construção de personagens poéticos em trânsitos narrativos. Para erigir a oralidade dessas micro-narrativas, ele garimpa versos banais de canções populares, recicla nomes de narrativas comuns, recorta o discurso de personagens bíblicos, ouve ecos da tradição literária. Nessa audição, o poeta brinca com a aparente rigidez dos gêneros e põe, no contexto dialógico do poema, o assassino do filme B, a mulher instruída, o músico, o detetive do romance policial e a sua propensão a “perceber essa mesma ponta de felicidade/ resignada se abater sobre cada um deles.” ("Os espiões").


Nessa inversão estética e contextual, não é exatamente a personagem que mata, o homem que toca, a instrução feminina ou os meandros do crime que interessam: o poeta se apossa do que esses personagens possuem, no cerne da sintaxe, de precioso – a fala da deriva, os prazos e as pausas do desvio silencioso, o discurso da sedução da linguagem. Essas são as armas de quem relê alguma partida na qual, mais do que saber, o ser pensa e atua: “Penso num carro de retrovisor partido/ lançando-se urgente por estradas,/ avenidas, cidades, crianças, canções”(“Mande nem que seja um telegrama”).


A uma geração de autores sem credos nem manifestos pertence Leonardo. Nenhuma sombra metafísica ronda sua página. Se a sua poesia inicial sugere a inscrição do "sangue derramado do carneiro” ou do assassino “como condição de leitura”, o seu poema possui a saúde de não evocar aura, ideologia, bula estética (Isso dá um alívio!). Por isso, a sua linguagem inunda o ouvido da paisagem, rompe com “os hábitos da percepção”. Sua poética é feita de avisos do corpo para ouvir a voz em off – legião – da paisagem e suas cores: “O que está em vermelho indica o começo do caminho”. (“Mande nem que seja um telegrama”).


Os espiões

(“Dans un moi dans um an”, Françoise Sagan)

Escreviam cartas como se cortassem
as unhas. Atenção e distração redobradas.
Ao meu filho, além de um revólver,
eu deixo certa propensão tocante
para o arrependimento e para a deserção.
Aliados ou não, foram indispensáveis.
Minha estátua de sal já está pronta,
mas seria preciso pelo menos outros 27 anos,
agora de diligência, para a gente começar a pensar
em algo como lealdade ou remissão.
Em vários outros momentos podemos
perceber essa mesma ponta de felicidade
resignada se abater sobre cada um deles.
O que – verdade seja dita – já é alguma coisa
numa época em que nada se abate sobre nada.



– todas as minhas coisas são tuas


Quando fiz Do you know the way to San Jose ,
preparei algumas variantes que acabaram
ficando de fora da versão final, gravada
em 1968 por Dionne Warwick. A mais importante
delas talvez tenha sido uma pequena quebra
de andamento mais ou menos na metade da música,
indicada sobretudo por uma mudança de nota
no terceiro dos cinco trompetes que, naquele
instante, preenchiam os espaços em branco. Isso,
apesar de rápido, sempre me remetia a um tempo
em que meu pai me levava ao bar a meio quilômetro
da nossa casa. As notas de um piano que eu nunca
mais ouviria. Anos depois, toda vez que toco
Do you know the way to San Jose , penso no meu pai,
mãos no bolso. A música que fiz com certeza
não fala disso, a suspeita a um só tempo oportuna
e desacreditada que nos separa dos nossos. Frio
antigo e úmido que, como depois percebi, da ação
até a demora não leva nem mesmo alguns segundos.

Mande nem que seja um telegrama

(“Half away”, W.H. Auden)


O que está em vermelho indica o começo
do caminho. E em amarelo, sua metade.
Já estas indicações são possíveis campos
de batalha e as letras em gótico marcam
lugares de interesse apenas arqueológico.
É essa a minha herança, a minha divisa.
Aceitar do novelo a linha, um catálogo
dos nomes, datas, barcos que me levam
para atrás das promessas e do esquecimento.
O tal sujeito vai contigo até a torre
de tiro. Daí em diante terá que ir sozinha.
Numa semana ou duas as coisas podem
mudar. Em Bigsweir procure por Kelpie
e não deixe que um tal de Mr. Wren
te veja, senão tudo vai por água baixo.
Não mandarei nenhum telegrama ou qualquer
coisa do tipo. Toda batalha, eu sei,
é perdida e se ainda penso ou falo
algo é só para confirmar que sigo
dentro do incêndio, avançando pela parte
mais superficial do dia, sem olhar
para trás à procura de pistas ou marcas
do que achamos que ainda é nosso.
Faz mais de um ano e nada. Para todos
os efeitos ninguém se lembra de você.
Algo mais? Ótimo. Agora pode ir.
Quando lembro da minha outra vida,
a que não foi secreta porque nunca
correu o risco de ter sido o oposto disso,
penso num carro de retrovisor partido
lançando-se urgente por estradas,
avenidas, cidades, crianças, canções.