quinta-feira, 9 de julho de 2009

...e o lugar da letra?














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Texto publicado nO Jornal de Hoje, Natal, 30-31/10/1999


Em texto recentemente publicado em Folhas de Relva (Revista da Escola Doméstica de Natal - Ano 2 nº 02, setembro / 1999), a profª. Ilza Matias escreve sobre “a literatura como máquina de visão”. Neste instigante ensaio, ela indaga se a literatura terá um papel como um dos fluxos criativos da afirmação humana, em meio à paisagem eletrônica que se desenha nos centros urbanos. Noutras palavras: haverá espaço para a arte literária em meio a tantas tecnologias e as excessivas cópias e re-produções da mídia?

Não se trata de uma pergunta simples. Numa época na qual alguns departamentos literários (principalmente das universidades americanas) perdem cada vez mais espaço para a abrangência dos estudos culturais, respaldados pela extensão da mídia e dos seus domínios, faz-se necessário indagar o “papel” da literatura e investigar o seu lugar em meio às tecnologias intelectuais. Para responder a essa delicada questão, a autora construiu um texto no qual ecoa a contemporaneidade de vozes como Ítalo Calvino, Félix Guattari e Pierre Lévy, dentre outros. Junto a esse time de autores, Ilza ressalta os modos como a tecnologia e os seus aparatos audiovisuais, ao produzirem novas subjetividades, modificam os paradigmas culturais.


A técnica entra em cena



Desde o final do século passado e do início deste século que chega ao seu final, as artes - e principalmente aquelas construídas a partir do signo verbal, como a literatura - ganharam novo impacto a partir do desenvolvimento tecnológico. A criação de objetos e máquinas como a lâmpada elétrica, o automóvel, o cinematógrafo, o vídeo, a TV e a máquina de escrever transformaram radicalmente o cenário e os costumes da vida urbana. Nas cidades, as ações cotidianas passaram a ser mais imediatas, o que de certa forma interferiu na produção e na recepção da arte. Some-se a isso o aparecimento da imprensa diária, contribuindo para a mudança de hábitos e formando um novo tipo de leitor com um outro ritmo de leitura. A literatura passaria a ter uma forma mais apressada de recepção; e gêneros como o romance, por exemplo, sofreria influência do jornal.

Difícil não perceber que a entrada de tanta tecnologia em cena contribuiu para a mudança de percepção do sujeito. E a lição de Walter Benjamin nos ensina que quando muda essa percepção, transformam-se os modos de existência da coletividade e os seus meios de produzir arte e cultura. Cria-se, com essa transformação perceptiva, uma re-leitura do contexto (o poeta Paulo Leminski já demonstrou que não apenas as formas, mas até os sentimentos são históricos; e portanto, mutantes). A possibilidade de poder-se observar imagens que se locomovem na tela, a transformação do ritmo temporal gerado pelos meios de locomoção, a leitura do jornal e a criação de uma escrita automática, por exemplo, são alguns dos motivos que contribuíram para que o texto literário ganhasse um novo ritmo ainda no início desse século. Agora esse ritmo torna-se mais radical, a partir do advento da informática, dos roteiros da computação e sua escrita virtual.

A inscrição da literatura como técnica evidencia, pois, a tão propalada perda da aura - outra sacada genial do Walter Benjamin, pelos meados dos anos 30, quando a gente sequer tinha produzido a Formação da Literatura Brasileira, escrita por Antônio Cândido na década de 50. Mas sem drama: naquela década a gente já podia ler os textos de Mário e Oswald de Andrade e os romances de Graciliano Ramos, por exemplo. E também nesse período predominava por aqui gêneros menos “nobres” como a crônica, o conto, as palestras, os discursos e os artigos para a imprensa que, de certa forma, tiveram neste século um papel decisivo para o desenvolvimento da técnica literária e para a circulação dos textos no Brasil.

A história demonstra que a literatura atravessou o século numa interação constante com as artes e os produtos culturais, como a fotografia, o cinema, a TV, o vídeo, a pintura, o jornal... Essa interação provocou novas mudanças na produção e na recepção do código literário. Hoje, as formas de ler e narrar são mediadas pela tecnologia, o que tem a ver com esta nova subjetividade urbana produzida no cenário tecnológico ou na "paisagem eletrônica" (Ilza Matias).



A letra mutante



O ritmo da leitura, a construção da personagem, os múltiplos focos narrativos, os deslocamentos temporais do poema e da narrativa - tudo isso está associado às transformações técnicas e culturais do século XX. Todos esses procedimentos estéticos remetem ao eco mecânico que Mário de Andrade escutava, ao datilografar na sua primeira máquina de escrever, e à linguagem “telegráfica” dos textos de Oswald de Andrade, cuja produção estética dá notícia das mídias e do aparato tecnológico surgidos nas primeiras décadas deste século.

Agora, de olho no início do próximo milênio, percebemos as “tecnologias da inteligência” (Lévy) interferindo na literatura e na produção das demais artes e dos produtos culturais. Percebemos também que a literatura prossegue no seu intuito de construir produtos vinculados ao imaginário e ao que o humano possui de demasiado humano: sua desejante marca diferencial. Essa marca constitui-se num diferencial da maior importância, embora seja ela um traço que a mídia e o seu aparato tecnológico, na maioria das vezes, insistem em homogeneizar, ou até apagar. A letra ativa, pois, o elemento ficcional e a necessidade de imaginar a nossa diferença, inscrevendo a multiplicidade de discursos e possibilitando que a narração da história seja viável a partir de vários pontos de vista.

Sintonizada com esse diferencial humano e de olho na potencialidade do olhar, a literatura adentra o próximo século como “hipertexto”, e sintonizada com as mutações contextuais e estéticas. E para os leitores deveras preocupados, as palavras finais do texto de Ilza Matias projetam um bom espaço para a arte literária:

...a literatura escapa de ser estática por configurar-se num campo de virtualidade que lhe permite expressar o devir histórico, a cultura e o sujeito hiperestético.

Como máquina de visão, a literatura destina-se, portanto, a ver. Destina-se a fazer do próprio leitor uma máquina de visibilidade. E ao fazer com que o senhor leitor veja, a literatura ocupa o lugar onde a cegueira ensaia a sua eterna repetição em meio a tantos clones e tantas cópias.