terça-feira, 14 de julho de 2009

De ouvido atento ao redor










Texto publicado na Revista Suíte Rio, ano 3 . n 12 - Rio de Janeiro, abr/maio, 2006


Pop, cult, eclética, pós-moderna. Esses são alguns dos adjetivos com os quais a cantora carioca Marisa Monte foi saudada pela crítica, em 1989, ao lançar um vinil intitulado com o próprio nome, depois de divulgar as canções numa intensa relação com o palco e o público.

Nesse primeiro trabalho, ela inovou ao optar pela noção de multiplicidade. Mostrou-se à vontade ao entoar gêneros e ritmos díspares – samba, pop, jazz, xote, rock –, e já sinalizava a diva que viria a ser na década seguinte, quando inscreveu-se como intérprete da poesia urbana e contemporânea de Arnaldo Antunes (“Comida”, “Flores”, “Alta Noite”...), e depois como compositora no CD Mais.

Esse talento para compor ficou cada vez mais audível nas cinco das treze canções que compõem Verde anil amarelo cor de rosa e carvão. Considerado um clássico de nossa música contemporânea, este CD de 1994 tem participações de Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Laurie Anderson e Época de Ouro, dentre outros, e nele Marisa canta “Ao meu redor” – uma bela canção na qual Nando Reis, ainda como membro dos Titãs, inscrevia sua marca diferencial. Entoados, portanto, desde o século passado, os sons e as imagens que estão ao redor da cantora continuam a dar o tom da sua trilha. Prova disso são estes dois CDs solos, que vêm à luz após a maternidade de Marisa, e cujos títulos sugerem um diálogo entre os seus roteiros estéticos e existenciais: Universo ao meu redor (sambas) e Infinito particular (pop).


As formas demoram


Ao contrário da maioria dos artistas que demarcam os prazos midiáticos de seus lançamentos, Marisa demora na produção de sua obra. Ela sabe que a construção das formas artísticas e culturais requer tempo e maturação. Enquanto geram seus ritmos, suas imagens e rimas, as formas demoram na construção do diálogo entre o espaço e o tempo. Isso demonstram as 27 canções que agora vêm a público após Crônicas, memórias e declarações de amor, de 2000. Entre essas duas safras-solo, Marisa produziu trabalhos de antigos sambistas; produziu também o CD que gravou em parceria com os tribalistas em 2002, quando mergulhou no nosso imaginário afetivo. Nesse mergulho, fez o país inteiro resgatar a sua porção lúdica e entoar o fato de ter como melhor amigo o próprio ser amoroso ("Velha Infância").

Parir fez bem à cantora. Sua voz está cada vez mais leve. Seus timbres e nuanças imprimem uma cadência particular às canções; e ela arrasa na viagem que faz, por exemplo, no “Bonde do Dom” e em “Satisfeito” (belíssimos sambas em parceria com os tribalistas Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown). Essa cadência é também audível na interpretação de sambas como “Três Letrinhas” (Moraes e Galvão, de Acabou Chorare, 1971) e “Vai saber?” Nessa última canção, Adriana Calcanhoto celebra sua fé na dúvida e na linguagem contraditória dos amantes, e cria um universo musical onde ressoa a precisão marítima de Caymmi e a suavidade vocal de João Gilberto. A canção é um marco.

Para construir a sua cadência marcante, Marisa capta e recria a “atmosfera do samba”, através do diálogo com a Velha Guarda de escolas cariocas. Para reciclar o pop, a cantora opta pela competência melódica (“Pra ser sincero” e “o rio”), audível nos arranjos de Philip Glass, Eumir Deodato e João Donato, e nas composições de seus parceiros mais recorrentes: Arnaldo e Brown.

Fã de estúdios, gerânios e eletrodomésticos, a cantora alia a seus projetos estéticos o domínio técnico e vocal, o ecletismo de um repertório que não pára de se reinventar e uma excelente recepção pública. Coisas de quem ouve como reza o barulho do rio, e de quem assume ir aonde a leva sua voz. Materializada em sons e sins, ela (en)canta um universo particular onde “a alma aproveita pra ser a matéria e viver”.