terça-feira, 1 de setembro de 2009

Saramago: o mago narrador









.
.
.
Uma versão deste ensaio foi publicada na Revista Folhas de Relva, Ano 03 - nº 03, Natal, 2000


O romancista, dramaturgo e poeta português José Saramago parece ser o exemplo raro de um autor cujos narradores relacionam-se às três categorias destacadas por Walter Benjamim, em seu ensaio “O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”[1]. Neste ensaio, Benjamin trata do narrador clássico, calcado na oralidade, destaca o solitário narrador do romance, surgido no seio da burguesia ascendente, e ressalta um narrador contemporâneo que busca apenas uma informação – forma de comunicação que ostenta a imagem como fundamento e que, segundo Benjamin, seria a grande suspeita da morte da narrativa.

Os narradores erigidos por Saramago parecem relacionados a estas três modalidades narrativas sugeridas por Benjamin. Vejamos. Do narrador clássico, o autor português resgata a oralidade e utiliza-se da memória como evocação – instrumento que aciona a produção de linguagem. Exemplo disso é a colheita de ambas – memória e oralidade – nos campos do Alentejo, para onde Saramago dirigiu-se em meados dos anos 70. Nascido no nordeste português, o autor buscou nesta região do sul de Portugal, a forma – encontrada no Alentejo – para contar suas histórias. Essa forma passou a ser visível a partir do romance Levantados do chão – texto escrito em 1979 e publicado em 1980. Sobre a dimensão dessa experiência do Alentejo em sua obra, diz Saramago[2]:

... alguma coisa aconteceu... eu havia estado com essa gente, ouvindo, escutando-os, estavam contando-me as suas vidas, o que tinha acontecido com eles... é como se, na hora de escrever, eu subitamente me encontrasse no lugar deles, só que agora narrando a eles o que eles me haviam narrado.

Em seguida, Saramago assume a aquisição da oralidade, advinda dessa “gente de uma qualidade humana impressionante”, habitantes da região do Alentejo: “Eu estava devolvendo pelo mesmo processo, pela oralidade, eu havia recebido deles. A minha maneira tão peculiar de narrar, se tiver uma raiz, penso que está aqui.”[3]

Quando diz da sua “maneira peculiar de narrar”, Saramago refere-se, principalmente, à produção de um texto cuja forma rompe com as regras gramaticais de pontuação, tornando nivelados os discursos diretos e indiretos. Além disso, essa "maneira peculiar" atenta para as noções de ritmo e sonoridade que baseiam sua escrita.

Estas noções são também lidas por Luciana Picchio que destaca em Saramago “una oralidad mentalizada, evocada dentro del narrador omnisciente”[4]. Embora não credite ao fragmentado narrador contemporâneo a classificação de onisciente, concordo com a autora quando ela resgata a oralidade – sentido bastante evidente no texto de Saramago. Segundo ela,


el estilo oral de Saramago, constituído por entonaciones, por rasgos supra-segmentales, por subrayados, por cambios de voz y de tono, presupone una ejecoción coletiva, multivocal, en la que cada una de las voces se distingue por la individualidad del timbre...




Para Picchio, essa “individualidad del timbre” “está sujeita a las reglas rigurosas de una partitura”. Meio complicado é distinguir essas “reglas” dessa “partitura” no moderno narrador do romance. Como não dispõe de uma experiência vivenciada a ser transmitida, o narrador do romance, diferentemente do narrador clássico, não ostenta nenhuma regra, nenhuma moral a ser repassada ao leitor. Do seu isolamento, ele tenta captar apenas algo que postule um sentido para a sua narrativa.

Talvez o que mais aprimore os narradores de Saramago do moderno narrador do romance seja a relação entre o tempo e o “estatuto histórico” das formas. Resgatando Lukács e sua Teoria do romance, Benjamin diz no referido ensaio que “o sentido da vida” é o centro em torno do qual se movimenta o romance; enquanto que “a moral da história” fazia desenvolver-se a narrativa.

A apreensão desse “sentido da vida” e a inscrição do tempo parecem constituir uma busca constante nos romances de Saramago. Sobre a dimensão temporal, diz ele de “um tempo que não é sucessão diacrônica”; um tempo “...em que o que acontece projecta-se numa imensa tela e tudo fica ao lado de tudo”. Sem dimensões do passado nem do futuro, segundo o autor de Ensaio Sobre a Cegueira “o que vai ser já está a acontecer”[5].

Já a questão da busca de um sentido é explícita na vasta obra do autor. Pensemos, por exemplo, no sentido que saramago constrói para a existência de pessoas comuns, como a personagem principal de Todos os Nomes, por exemplo, ou para Raimundo Silva – o revisor de livros de A história do cerco de Lisboa.

Do narrador contemporâneo, aquele que busca apenas uma informação, podemos identificar alguns traços nos históricos narradores de Saramago. Estes, de posse de uma informação a reconstrói, possibilitando uma nova interpretação, cujo sentido – embora remeta ao passado – está diretamente ligado ao contexto no qual é narrado. Exemplar dessa histórica informação relida é o romance O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991). Neste, as personagens contatam uma espécie de nostalgia do tempo no qual o Senhor “manifestava-se em presença todos os dias, não apenas nas suas obras”[6]. Neste mesmo romance, o Messias – relido por uma óptica questionadora, cultural e terrena –, pede perdão para o seu Pai, e tem na morte uma experiência que o aproxima da precária condição da forma humana.

Este terceiro tipo de narrador – calcado na informação –, tem na imagem e na visualização suas referências imediatas. Daí porque ele é, geralmente, um narrador urbano, de olho no repertório de imagens e sinais inscritos na cidade. Dentre os elementos que “concorrem para formar a parte visual”[7] do imaginário literário deste narrador, Ítalo Calvino destaca os seguintes:

. a observação direta do mundo real

. a transfiguração fantasmática e onírica


. o mundo figurativo transmitido pela cultura em seus vários níveis


. e um processo de abstração, condensação e interiorização da experiência sensível, de
importância decisiva tanto na visualização quanto na verbalização do pensamento.

Trata-se, portanto, de um narrador centrado na ação do olhar. Olhar que é palavra e desejo; sentido e inscrição. Para este narrador, a visão constitui-se no sentido mais requisitado na fundamentação de sua narrativa. Na obra de Saramago, o Ensaio sobre a Cegueira (1995) talvez seja o texto que melhor exemplifique essa forma de narrar. Segundo o autor, o Ensaio sobre a cegueira deu início a uma “trilogia involuntária” que passa por Todos os nomes e continuará com A Caverna – próximo texto a ser escrito, onde as personagens novamente não terão nomes.

A idéia da caverna já está presente na crônica “Saudades da Caverna”, incluída no livro A Bagagem do Viajante. Sempre preocupado com o roteiro do homem neste contexto violento, mutante e veloz, Saramago indaga nesta crônica: “Andaremos nós à procura de uma nova inocência, de um recomeço?” Parece difícil ter respostas ou mesmo dar nomes às coisas quando, “em escala jamais imaginada são alteradas as relações do homem com a natureza, rompidas tradições, às vezes milenares, deslocadas populações inteiras...”[8]

Como a isso nomear? Nome possui, segundo o crítico Horácio Costa, a trilogia de autores com os quais dialoga Saramago, inscrevendo-se na tradição histórica do romance português. Segundo o autor de José Saramago – O período formativo, esta trilogia autoral seria composta por Almeida Garret, Alexandre Herculano e Eça de Queiroz[9].

Para Horácio, o “método digressivo” de Saramago possui relação com a estética romântica de Garret. De Alexandre Herculano, o autor de História do Cerco de Lisboa teria recebido, como influência, o “espírito libertador do imaginário histórico; e Saramago aproximar-se-ia de Eça de Queiroz através de um “esquema formal” e de uma postura crítica que tem na ironia sua base mais destacada.

A digressão, relacionada Garret, os valores ideológicos, fornecidos por Herculano, e a forma – apontando para a postura crítica e irônica de Eça –, parecem presentes no Ensaio sobre a cegueira. Nesse texto, utilizando-se do procedimento intertextual, Saramago dialoga com a pedra drummondiana (p.63), faz referências a Homero e sua Ilíada (p.36), “enxerga” Borges ao vislumbrar o “interior de uma glória luminosa” (p.94), parodia o texto bíblico (p. 253-54), e faz alusão a pintores de várias épocas (p. 130-31). Além disso, elabora uma extensiva releitura dos ditos populares (p.84). Relê principalmente, claro, os ditos que envolvem a cegueira:

- candeia que vai adiante alumia duas vezes



- o amor, que dizem ser cego, também tem a sua palavra a dizer



- olhos que não vêem, coração que não sente



- o pior cego foi aquele que não quis ver...



- se queres ser cego, sê-lo-ás



- o medo cega

O autor consegue, com estes intertextos, referências estéticas e releituras culturais , elaborar uma polifonia vocal através da qual várias personagens têm voz, e não apenas o narrador (ou o autor?). Constrói, com isso, uma narrativa na qual reflete-se a sua visão de mundo, já que para ele a figura do narrador não existe, sendo o autor o responsável pelo o que narra. Sobre essa responsabilidade autoral, ele afirma: “... a figura do narrador não existe,... só o autor exerce função narrativa real na obra de ficção, qualquer que ela seja, romance, conto ou teatro...”[10]


Para demonstrar sua “teoria” em torno da arte de narrar, Saramago usa a pintura como parâmetro, lembrando não haver mediação entre o pintor e a pessoa que contempla sua tela. Sobre isso ele diz:


... não há, objectivamente, nenhuma diferença essencial entre a mão que guia o pincel ou o vaporizador sobre a tela, e a mão que desenha as letras sobre o papel ou as faz aparecer no ecrã (tela) do computador, que ambas são, com adestramento e eficácia similares, prolongamentos de um cérebro...[11]

O cérebro de Saramago acata essa responsabilidade narrativa. Olhando a história pelo retrovisor, ele introduz neste olhar uma forte dose de imaginação, através da qual os oprimidos ganham voz. Além disso, o autor diagnostica as contradições sociais e o mal-estar causados, principalmente, pela cegueira do “individualismo contemporâneo” patrocinado pelo sistema capitalista. Apesar disso, segundo Benjamin Abdala Jr., há nos romances do autor “... um horizonte para onde ele olha, um horizonte de sonho, contra a indiferença social do individualismo contemporâneo”.[12]

É na linha desse “horizonte” que se inscreve a narrativa do Ensaio sobre a cegueira. Apesar da estranheza causada pela cegueira, o olhar “humanista” (ou “relativista”) de Saramago devolve a visão e a cidade aos homens acometidos pela cegueira branca. Resta a estes, a partir da releitura do passado, construir um outro olhar.

[1] Benjamin. Magia e Técnia. Arte e Política. 1993. P. 197.
[2] Saramago. Revista CULT. Nº 17. São Paulo: Dez. de 1998 (Entrevista concedida a Horácio Costa, p.19).
[3] Saramago. Op. Cit. P. 21.
[4] Picchio. Revista espacio Espaço escrito. Nº 9-10. Badajoz, 1993-94.
[5] Saramago apud E. M. de Melo e Castro. In: “Saramago entrevisto”. Revista espacio Espaço escrito. Nº 9- 0.Badajoz, 1993-94.
[6] Saramago. O Evangelho Segundo Jesus Cristo. 1990. P. 110.
[7]Calvino. Seis propostas para o próximo milênio. 1990. P. 110.
[8] Bueno, André. “Cidades brasleiras modernas: velocidade e violência”, in: Terceira Margem. 1995. P. 104.
[9] Costa. Revista USP. Nº 40. São Paulo: Dezembro/Janeiro, 1998-99. P. 99.
[10] Saramago. Revista CULT. Nº 17. 1998.
[11] Saramago. Op. Cit. 1998.
[12] Abdala Jr. Revista TD, 40. Fev./Mar./Abr. 1999.