sábado, 5 de setembro de 2009

WOYZECK – O BRASILEIRO, um épico?













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Para Miriam Juvino, produtora da peça



“Quando tem pilha o coração fica sangrando sem parar”


Essa frase acima refere-se, na peça Woyzeck – O Brasileiro, a uma singela imagem do Coração de Jesus que surge nas mãos de um personagem. Retirada do seu contexto, a fala parece sintetizar o texto, o elenco, a produção, e toda a arquitetura sonora (trilha original de Otto) e cênica que engendra a dramaturgia de Fernando Bonassi e a direção de Cibele Forjaz.

Na referida montagem de 2001, no Rio de Janeiro, o discurso da “pilha” é dito por Woyzeck – um homem ciumento que se alimenta de ervilhas, delírios e reflexões. Ele é uma espécie de Sísifo de olaria que escapa da fome indo para o exército. O seu discurso é proferido para Andres – personagem alimentado pelo canto e pela dança, que faz da ação de empilhar tijolos um roteiro concreto para a sua existência.

A “pilha” é aqui lida como metáfora do afeto que se encerra em nosso peito. “Pilha” que dá ritmo ao homem - bicho que se move num cenário áspero de poeira e barro. Sem ela – a pilha – a respiração não alcança; a circulação interdita a palavra.
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Sem “pilha” o olho nubla. O sangue estanca. O gesto encolhe, não cria sentimentos. O corpo pára de dizer; cala o seu discurso secreto e secular quando falta a “pilha”. Sem ela, a pátria é puta. Ninguém te convida ao salão. A vida passa a ser “uma fera que hiberna precariamente” (Ana C.). O coração é lento quando ela está ausente. Tijolo marrom de barro, imóvel e pesado, é o coração sem "pilha" num canto do cenário.

Woyzeck – O Brasileiro é, pois, uma peça sobre a movência e o mistério que é a “pilha” no corpo falante – o pulso, o pé, o olho, tudo o que respira e move. “Pilha” que é necessária ao homem para ritmar o tempo que o consome neste cenário de barro batido, cujo pó o receberá de volta. O texto alemão do século XIX, escrito por Büchner, antecipa alguns procedimentos das vanguardas do século XX, transformando-se numa aula sobre o ritmo e a movência. Na didática dessa aula, o elenco transita pelo cenário lecionando a “matemática do gesto”, a geometria da perda e a perene possibilidade da forma. Várias formas que contornam o caos. Seja a forma circular do poço – onde indagamos o infinito questionário da existência; seja a vertical forma dos planos no cenário – onde a virilidade exerce a sua potência afirmativa e criadora.
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Do arquivo de formas sociais, estéticas e existenciais que compõem a peça, destaca-se o ainda “olhar esfomeado” da mulher. Ela expressa a forma vibrante do universo feminino, seja ao banhar-se no poço, seja ao amassar o barro. De várias maneiras, Woyzeck ajuda-nos a celebrar a provisória cota diária de compreensão e afeto que nos cabe, e a compreender as nossas sedes e fomes contemporâneas.

Olaria humana em ruínas

Munido da “pilha” do personagem alemão, o ator Matheus Nachtergaele – entre dolorido e esperançoso - escreve no programa da peça um texto que parece ritmado pelo pulsar do coração do elenco que sangra “sem parar”. A partir da visão do espetáculo e da leitura de seu texto, é possível a inscrição das demandas de um corpo cuja mobilidade sa(n)gra o que de reflexivo e imaginário pode captar.
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Um corpo atento aos sons e gestos, às palavras e luzes que nascem da escuridão do barro que por vezes chega a salpicar algumas vestes na platéia. Nesta peça ouve-se o eco das dores daqueles que, ao perderem tudo, não conseguiram retornar do fundo do poço. Não conseguiram fabricar uma outra estação. Uma outra primavera. Uma peça da qual saímos para lavar a roupa suja do barro de onde viemos, da poeira que nos alimenta nesta olaria humana em ruínas.

Segundo Matheus, Woyzeck – O Brasileiro é “uma pedreira... para fazer da dor serviço”. Para a execução desse feito, o elenco contata o abismo da pele e a superfície da alma, com tudo de perda, queda, busca e nudez que isso mobiliza: “o desejo de um conhecimento quase insuportável às nossas potencialidades” (Fernando Bonassi). Nas palavras do ator Nanego Lira, a encenação justifica-se “...pelo tesão físico de expor a nossa carne e o nosso sangue no palco”.

Nessa exposição abissal, o corpo amolado e aceso inscreve – na olaria gestual – o quanto de delongas e demoras reside no ritmo que articula um gesto, produz uma palavra. No texto inacabado de 1837, a palavra produzida por Büchner aos 23 anos dá conta desse ritmo através da fala de algumas de suas personagens.
Ouçamos o Capitão:

“— Calma, Woyzeck, calma; uma coisa depois da outra! ...Convém planificar, Woyzeck!”.

“— Está bem, Woyzeck. Você é um homem bom, um homem bom. Mas pensa demais, isso dói. Você está sempre tão apressado”.

“— Senhor Doutor, não corra assim! Não reme assim no ar, com sua bengala! Assim o senhor está se apressando para a morte”.

“— Ei, Woyzeck – Que pressa de passar pela gente! Venha cá, Woyzeck? Correndo como uma navalha aberta pelo mundo! Seria capaz de cortar a gente”.

Enquanto reflexão acerca do deslocamento, do ritmo e da movência, WOYZECK é um vasto interrogatório das relações entre o espaço, o corpo e a palavra: em qual chão precisamos remexer, revirar, para do barro esculpir o gesto – áspero ou leve – de cada dia? De quantos músculos necessitamos para arremessar os tijolos de nossa inacabada construção? Qual palavra brotará da relação entre a “intenção” e o “gesto”?

Todo o elenco de WOYZECK parece vivificar “o esplendor da queda” e “a violência do abismo” (Iracema Macedo). A queda que é filha da pressa; a violência, da falta de ritmo. No cenário, tem-se às vezes a impressão de que tijolos voadores possam acertar algum espectador. São esses tijolos arremessados por este pequeno Sísifo que dialoga com o ativo personagem Andres na recepção do tijolo – signo da forma e do peso que permeiam as suas próprias existências. Mas aqui a leitura desse signo é bastante ambígua, porque ao tijolo é dada a possibilidade de voar por entre as palavras e os seres humanos.

Sob as bênçãos de Apolo e Dioniso

Se pensarmos no signo que é WOYZECK e sua concepção estética, podemos acionar o Nordeste brasileiro como significante (a forma) e a Alemanha como significado (o conteúdo). Do Nordeste como significante, o elenco recolhe sons, formas e materiais; a significação alemã pode estar relacionada às idéias de “derrocada do idealismo romântico e o desenvolvimento da concepção materialista do mundo” (Cibele Forjaz – diretora).

Nestes dois extremos podemos situar a peça: entre a moderna arquitetura dos versos nordestinos de autores como João Cabral de Mello Neto e Joaquim Cardoso, e a pós-moderna filosofia alemã de autores como Nietzsche. Da concepção poética moderna, WOYZECK – O brasileiro herda o rigor e a exatidão, o culto à forma e a secura temática da pedra, do barro, do pó que esculpe a linguagem cabralina.
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Contra o perene otimismo da lógica e a favor da capacidade de suportar a contradição, WOYZECK tem de nietzcheano uma certa ternura para o que nos causa estranheza, e o desejo de estetizar continuamente a existência. Com enorme gozo estético e social, a peça sugere também a dionisíaca crença nietzchiana num Deus e num homem que saibam dançar, que saibam voar. Afinal, é com pés de pomba que se governa o mundo, conforme a lição do filósofo.

Além de Büchner e Nietzsche, um terceiro autor alemão pode ser relacionado à peça: o escritor Walter Benjamin. Para ele, épico é o teatro gestual – aquele teatro que possui o gesto como material e questiona o caráter de diversão atribuído à arte. Neste sentido, podemos pensar que ao assistir a WOYZECK – O Brasileiro, estamos diante de um épico. Não um épico na sua inteireza enquanto gênero que narra a grandiosidade dos fatos históricos e faz apologia ao herói; mas um épico de ruptura, fragmentado, pós-moderno. A peça exibe uma epicidade que, ao estetizar as condições históricas e existenciais de suas personagens, dá conta da nossa subjetividade aflita e contemporânea.

Ao eleger como signos o espaço da movência, o ritmo da palavra e a precisão do gesto, a peça parece traduzir a olaria em ruínas onde amassamos o barro da nossa alteridade, onde construímos os tijolos de tudo o que move, salta, busca saída. Ao lecionar a didática do arremesso, da movência, do salto, Büchner e Matheus lavam nossa alma. Sim, Matheus, seu evangelho nos salvou. Aprendemos que até para morrer é preciso ritmo. Ao sairmos do teatro parece que continuamos a ouvi-lo: vão dançar, vão trabalhar, vão suar, vão foder, vão viver...

Sob a bênção de Dioniso esquecemos, por instantes, a assepsia limitada do shopping. Deletamos o olhar cartesiano e previsível. Rasuramos o pragmatismo dos garotos saudáveis... Melados de saliva e suor, desejamos cair no poço. Almejamos chafurdar na lama. Voltar ao barro. Tudo isso sob a bênção de Apolo, é claro. Porque dele nasce a forma, o ritmo, o gesto.
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BIBLIOGRAFIA
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BENJAMIN, Walter. "Que é o teatro épico? Um estudo sobre Brecht" in Magia e Técnica, Arte e Política. 5a ed. São Paulo: Brasiliense, 1993.
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PROGRAMA DA PEÇA. Woyzeck - O Brasileiro. Textos de Matheus Nachtegaele et ali. Rio de Janeiro, 2001.