quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Do barbante para a estante







Sobre Cordel






Texto escrito a partir da arguição da tese de doutorado Literatura de cordel: visão e revisão, de Aderaldo Luciano dos Santos, orientada pela professora Dra. Helena Parente Cunha, defendida na UFRJ em 30/09/09.



Literatura de cordel: visão e revisão abre com a seguinte epígrafe de Afrânio Coutinho: “A vida são as paixões.” Essa frase sintetiza a relação de Aderaldo Luciano com o Nordeste brasileiro e o seu antigo objeto de estudo: a literatura de cordel. A paixão pelo cordel abrange mais de 20 anos da sua vida, contemplando um período que engloba os cursos de graduação, mestrado e este doutorado.


Dividida em uma introdução, dois longos capítulos mais uma conclusão, a tese sinaliza o domínio formal do autor que é também poeta, autor do livro O Auto de Zé Limeira, lançado em 2008. O seu conhecimento da poesia brasileira, possibilita um profícuo intertexto com autores como Gregório de Mattos, Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira, João Cabral, Marcus Accioly, Waly Salamão e Patativa do Assaré; todos eles pertencentes à pátria do cordel: o Nordeste - país de Antonio Conselheiro, "grande homem pelo avesso", um dos principais mitos e personagens do cordel.
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Em sintonia com esse berço cordelista, a tese atenta para os poetas que “desembocaram” na metrópole do Capibaribe, desde o final do século XIX e início do século XX, sendo a cidade do Recife lida como “ponto de confluência da modernidade” e espaço no qual “floresceu o cordel”. Essa matriz cultural urbana transforma-se na capital nordestina do século XIX - uma espécie de Paris sertaneja, se comparada com a forma como Walter Benjamin leu a patria de Baudelaire, Proust e surrealistas.


Clareza e a concisão são alguns dos atributos desta escrita. Nela não há hermetismos nem utilização de esquemas teóricos que dificultem a leitura. Essa escrita contém uma base oral muito próxima do grau de oralidade que requer a produção do próprio cordel. Essa opção pelo tom oral torna bastante sedutora a “narrativa” acadêmica. As vezes essa sedução parece meio inusitada ou até exagerada. Isso acontece quando deparamos com termos e expressões como, por exemplo, “tome conta” ou “alguns clarões”.

A Introdução é encerrada com uma menção ao poeta Patativa do Assaré, não sendo citado nenhum verso do autor. Ao adentrarmos a leitura, constatamos que ele é lido como poeta matuto, não como poeta do cordel. Indago: por que não mencionar, por exemplo, Leandro Gomes de Barros que é citado como marco (1902) e como poeta que formatou o cordel? Além disso, ele é eleito pela maioria dos pesquisadores como pioneiro e como um dos mais representativos poetas do cordel. Ou por que não citar Manoel Camilo dos Santos, relido por Orígenes Lessa, e citado num dos mais belos momentos da tese: “Se Camilo abria boca, eu fechava os olhos, ele ficava, eu saía pelo mundo” (p. 78). Apesar desse desvio, é imperativo salientar que, nos dois capítulos, a poesia de cordel se faz presente numa proporção condizente com a presença dos discursos críticos e teóricos.


Leitura Crítica


A pesquisa de Aderaldo Luciano aciona uma espécie de recepção crítica do cordel. Na “arqueologia” que empreende em torno desta forma literária, o autor elabora uma intensa crítica à maioria dos estudiosos e pesquisadores da historiografia do cordel. Essa crítica tem como base os aspectos folclóricos e culturais eleitos nestes estudos e pesquisas, em detrimento dos elementos literários que esta tese busca priorizar.


O texto inteiro é permeado por um tom crítico. Esse tom é, às vezes, adverso em relação não apenas a esses estudiosos e pesquisadores, mas também a alguns poetas cordelistas. Nem mesmo alguns teóricos ficam de fora desse discurso de tonalidade crítica. Excetuando-se Câmara Cascudo, Victor Aguiar e Angélica Soares, é raro o autor com o qual há total concordância (mesmo o mestre Cascudo recebe, no final da tese, uma contestação quando destaca a marca narrativa no cordel). Como cordelista e pesquisador, recebe elogios um autor contemporâneo chamado Marco Haurélio. Ele seria um dos responsáveis pela modernização desta forma literária, cujas estórias surgiram impressas em livrinhos expostos no barbante e geralmente vendidos em feiras. Neste milênio, esses livrinhos começam a ser transpostos do barbante para a estante - espaço destinado para a maioria dos estudos elaborados em torno do cordel.

Estudiosos e pesquisadores como Teófilo Braga, Silvio Romero, Irani Medeiros (ele copiou Veríssimo?) e, dentre outros, Gonçalo Ferreira da Silva (poeta e Presidente da Academia Brasileira de Literatura de Cordel) são alguns dos nomes que geram discordância nesta tese. Com Sebastião Nunes Batista, por exemplo, a crítica parece-me bastante pertinente. Ele não consegue distinguir as diferenças entre as formas do folheto e do folhetim. Conclui de forma equivocada a sua leitura em torno do cordel. Aderaldo recorre a uma citação de José de Alencar, em relação a publicação de O Guarani, para desfazer o equívoco produzido pelo referido estudioso.


Também vejo pertinência na crítica ao escritor Veríssimo de Melo, um estudioso cuja bibliografia é imprescindível para a compreensão da cultura brasileira, e na qual se destacam as Cartas de Mário de Andrade a Luís da Câmara Cascudo (1991) - livro para o qual ele escreveu introdução e notas. Mas, nesta pesquisa, Veríssimo demonstra limitação ao ler o cordel. Como a maioria dos estudiosos, ele elege os núcleos temáticos e os aspectos folclóricos como características. Elas são rebatidas de forma convincente; inclusive com citação de datas despercebidas pelo estudioso potiguar. Também a questão da supremacia do gênero narrativo defendida pelo autor, não determina, segundo a tese, a essencialidade do cordel (Importante registrar que, em pleno século XXI, Aderaldo jamais duvida de conceitos como essência, originalidade, autoria e, dentre outros, origem e fundamento).


Na pesquisa que empreende em torno da história do cordel, o autor deixa claro que a sua origem está na sintaxe entre elementos rurais e urbanos. Ao contrário da grande maioria dos estudiosos, ele apresenta radicalidade ao assegurar não haver “qualquer semelhança” entre o nosso cordel e o cordel produzido na Península Ibérica. Diz ele: “não tem qualquer ligação, exceto no nome”. Essa polêmica perpassa todo o primeiro capítulo, juntamente com a negativa da vinculação do cordel aos cantadores e repentistas. A tese traça diferenças entre o cordel e o repente. Estuda também, dentre outras formas populares, os diferentes tipos de pelejas.


A Linguagem como "personagem" principal


Seguindo a trilha aberta por M Cavalcanti Proença que lê os aspectos literários do cordel, esta leitura elege a linguagem como um dos principais “personagens” desta literatura. Acredito que o mérito desta tese é exatamente este: trazer para o campo da linguagem e do discurso a especificidade do cordel. Estabelecer, como diz o autor, um “caráter literário da literatura de cordel”. Esta é a grande sacada: atentar para o cordel como produção da linguagem. Linguagem como instrumento que estabelece o nexo entre o poeta, sua percepção e as formas de criar e refletir o mundo. Linguagem que ratifica a tradição literária e cultural de quem cria.


Nestes sentido, a linguagem, a forma e a exploração dos recursos fônicos são os elementos que diferenciam o poema matuto (calcado principalmente na fala coloquial) do cordel (mais voltado para procedimentos da escrita como, por exemplo, o acróstico). No cordel, a fusão de elementos descritos e narrativos com procedimentos poéticos possibilita a construção de um texto híbrido onde mais de um gênero se faz presente.


Na utilização da linguagem do cordel, a forma da sextilha – e não a quadra - é lida como característica histórica desta forma literárial. E mais: a sextilha escrita sem a deixa; já que esta constitui-se num procedimento típico dos cantadores em suas sextilhas orais.

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Cordel atesta a musicalidade da linguagem popular. Resgata as fontes da oralidade, uma das características da escritura clássica. Isso sem falar no recurso clássico que aparece em vários cordéis: a invocação às musas, aos deuses, aos seres inspiradores. Ainda no âmbito dessas relações entre os universos do cordel e do clássico, lembramos o narrador estudado por Walter Benjamin no seu cultuado ensaio "O Narrador". Este narrador benjaminiano é calcado na oralidade e na memória. Ele resgata e repassa experiências relativas à comunidade. Como acontece com vários poetas do cordel, este narrador repassa também uma lição, uma moral, uma norma de vida, um conhecimento utilitário. Com base nestas questões da oralidade, da memória, do repasse da experiência e do recurso da invocação, seria possível afirmar que a literatura de cordel se utiliza mais, em pleno século XX, de procedimentos relacionados à estética clássica do que ao estilo moderno que vigorou nesse século.


Literatura de cordel: visão e revisão sugere ser o Nordeste uma região carente da produção de linguagem, e um espaço para o qual o cordel possibilita a elaboração de uma identidade lingüística. Essa elaboração discursiva leva em conta elementos políticos, estéticos, cotidianos, míticos e imaginários, em sintonia com um contexto histórico que, há séculos, carece de discurso. Neste contexto sócio-literário a linguagem é, portanto, um produto de primeiríssima necessidade.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Clássico Moderno Marginal















Ítalo Calvino
(Cuba, 1923 - Itália, 1985)



Entrevista elaborada para Nonato Gurgel por Michele e Aline – alunas do Curso de Letras / Italiano, Faculdade de Letras da UFRJ, Rio de Janeiro, 2003


1- Italo Calvino surge no cenário literário italiano, num período em que a História tinha de justificar o fazer poético. Porém, como no trecho da canção "Cio da terra, propícia estação e fecundar o chão..." (Milton Nascimento), qual foi, segundo sua análise pessoal, a propícia estação que Calvino aproveitou para fecundar o chão literário de sua época?

NG: Bela pergunta. A história e a estética (no caso, o processo narrativo) possuem uma longa parceria na historiografia crítica e teórica do Ocidente. Walter Benjamin, por exemplo, leu muito bem essa parceria entre os procedimentos estéticos e os conceitos da história. Militante do Partido Comunista, com trânsito pelas Ciências Agrárias e formação em Letras, Calvino é um autor eminentemente comprometido com a modernidade, seus deslocamentos e sua história. Assim sendo, a “propícia estação” que ele utiliza para fecundar sua obra é a "estação" da linguagem. Ele produz uma linguagem leve e concisa a partir da percepção fragmentada do chão do seu tempo – o contexto do pós-guerra italiano. Embora ele seja um autor totalmente sintonizado com a herança formal e lingüística da tradição clássica.


2- Conforme a palestra oferecida em 01/11/03 na Faculdade de Letras aos alunos da disciplina Literatura Italiana V, do professor Marco Lucchesi e, na entrevista para o Rede de Letras, você informou que Calvino influenciou na esquematização dos elementos de análise de sua tese. Como surgiu a escolha do autor e qual foi a obra de Calvino que o inspirou diretamente?

NG: Calvino não apenas “inspirou”: ele deu-me a forma para a escritura da tese Seis poetas para o próximo milênio. Na arte e na cultura, a forma é o elemento social que se transfere de uma geração para outra. Lezioni AmericaneSei proposte per il prossimo millennio podem ser lidas como a “autobiografia estética” de Calvino. Podem também ser lidas como o arquivo de formas através do qual é possível dialogar com autores clássicos, como Dante ou Ovídio, e com um poeta moderno como Montale. Essa escolha do Calvino surgiu porque eu gostaria de ter como referência, como forma, uma escrita que utilizasse procedimentos estéticos contemporâneos, independente dos núcleos temáticos que o autor abordasse.
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Calvino é, para mim, essa forma – o arquivo. Além dessa obra citada, destaco mais dois textos seus que foram fundamentais para a minha tese: Por que ler os clássicos – onde Ovídio, Galileu, Montale e Gadda, dentre outros, já se fazem presentes, e Palomar, cuja contemplação para o exterior e para a superfície ensinou-me a ler a poesia das coisas, das mercadorias, das ruínas. Ou seja: o sr. Palomar leciona a lição do “nada que tudo deseja” (Lucchesi). Além desses três livros, destaco As Cidades Invisíveis, texto cuja lição também leciona essa relação entre espaço, desejo e texto. Este é um livro muito importante. Nele Calvino assume haver concentrado numa único signo – a cidade – todas as suas reflexões, experiências e conjecturas.


3- "Leminski é, dentre os autores da " literatura marginal" , aquele que mais domínio possui do arquivo de formas da tradição. Talvez ele seja, dentre os seis poetas, o mais consciente da importância da forma." Com base nesta sua afirmnativa, quais as principais características da " geração marginal" que permitem a sua conclusão quanto à postura de Paulo Leminski perante a forma?

NG: O domínio formal de Leminski é visível, concreto. Seja como poeta, ensaísta ou tradutor, ele configura uma forma sintética e singular. Do concretismo e do hai kai oriental, por exemplo, o poeta herda o gosto pela concisão e pela parte significante do signo lingüístico; o que está relacionado a esse apreço pelo culto à forma. Essa postura de Leminski, em meio à geração alternativa ou marginal, destaca-se facilmente porque a maioria dos poetas daquele contexto da contracultura estava mais a fim de registrar e intervir na própria existência do que na historiografia literária. Leminski é exatamente o contrário disso: trata-se de um autor fortemente interessado pelo texto, pelo “estoque de formas” da tradição e pela materialidade das línguas. Com base nisso, ele traduziu James Joyce, Samuel Beckett, Yukio Mishima e, dentre outros, o Satyricon, de Petrônio, cujo posfácio – “Latim com gosto de vinho tinto” – é uma saborosa dose textual de clareza e erudição formal.

4-Na entrevista à Rede de Letras, você afirmou que "os paradigmas da totalidade e da universidade se quebraram", mas que elementos aproximaram, dentro das "Seis propostas para o próximo milênio", Leminski e Lucchesi ao comportamento da tradição clássica?

NG: Os paradigmas que se quebraram são aqueles que davam sustentação às grandes verdades, às grandes narrativas, a uma grande ordem universal e invisível que buscava resumir a particularidade de cada espaço. Hoje isso é praticamente impossível. Depois de Nietzsche, Freud e Marx, a raça humana perdeu a inocência. As grandes narrativas clássicas cederam lugar para textos fragmentados e para obras abertas; tão abertas e inacabadas como a identidade do leitor contemporâneo. Mas isso não é uma negação da tradição. Trata-se apenas de uma outra modalidade de ler os clássicos. Existem várias formas de aproximação com a tradição clássica. Essa aproximação está relacionada com a leitura, o olhar e o ouvido que o leitor ou o autor possuem perante essa tradição.
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Leminski e Lucchesi se aproximam da tradição de formas distintas. Uma leitura de autores múltiplos e rápidos como os selecionados na tese Seis Poetas..., possibilita o exercício das confluências, mas também a leitura da “soma das distâncias” (Lucchesi), das diferenças entre essas poéticas. Além do mais, estes dois autores pertencem a contextos bem distintos. O olhar de ambos os poetas, em relação à forma, se aproxima quando eles apostam na concisão, por exemplo. Para falar da importância do simulacro, em Os olhos do deserto, Lucchesi diz: “Persigo nomes. Sereias abstratas. Tróias esquecidas”. Lembra a escrita sintética e telegráfica do Catatau, do Leminski. Mas na questão da oralidade na poesia, vejo diferenças nas linguagens de ambos.


5-" O Silêncio é o nervo da palavra" ( Marco Lucchesi ) . A multiplicidade de Lucchesi concentra-se no silêncio. Esse fato não aproxima sua forma mais para um padrão contemporâneo que propriamente clássico? Por quê?

NG: Concordo plenamente. A multiplicidade de Lucchesi possui, no plano silencioso, uma de suas bases. Esse silêncio remete mais à esfera da oralidade, por exemplo, que é uma das características típicas do texto clássico; enquanto a visibilidade é bem mais representativa dos escritos modernos. Nesse sentido, o plano silencioso de Lucchesi o insere no mundo clássico, enquanto seu trabalho com a forma e com a concisão da linguagem o aproxima do que você chama de “padrão contemporâneo”.


6- Leminski opera, dentro da atribuição de rapidez, uma perversão dos sentidos da palavra. Qual dos clássicos poderia citar para que vejamos a convergência desse fazer poético?

NG: Ovídio. Esse poeta latino é decisivo para a obra do Leminski. Seja na prosa experimental do Catatau, ou na prosa mítica e poética de Metaformose, através da qual o autor viaja pelo imaginário grego. Ou ainda na poesia de Distraídos Venceremos – texto traduzido para o húngaro com o sugestivo título de Nossa Senhora Distraída.


7- Dentre as poesias desse dois autores ( Leminski e Lucchesi ) apresenta-nos uma em que podemos apreciar melhor o comportamento clássico de ambos?

NG: O que gostaria de apreciar não é exatamente o “comportamento clássico” dos dois poetas, mas a influência dos clássicos em suas obras. Ou seja: podemos ler como ambos os poetas se apropriam do arquivo de formas da tradição, resgatando seus autores preferidos. No caso do Leminski, Ovídio é, como citei, uma das formas resgatadas pelo poeta paranaense, além de Descartes e Bashô, dentre outros. Em Lucchesi, basta ler os “Cadernos de Viagem” que compõem Os olhos do Deserto para percebermos como, por meio dos procedimentos da citação e do intertexto, o poeta reverencia a tradição artística e cultural.

sábado, 19 de setembro de 2009

Ouro, um beijo








Leitura da cidade de Ouro Preto-MG, destacando os aspectos históricos, estéticos, afetivos

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Texto escrito em Ouro Preto, de Out a Dez de 2001, e Rio de Janeiro, Fev de 2005.


Ouro Preto chama Paris.

(Milton Nascimento e Wilson Lopes, "Coisas de Minas")


Entrego-me a um vôo que se basta, sem a necessidade de idéias que o justifiquem. Um vôo sem destino. Só assim fundamos uma cidade: permitindo que ela nos funde.

(José Castelo, Fantasma)



A poeta norte-americana Elisabeth Bishop dedicou um de seus mais belos poemas – “Pela Janela: Ouro Preto”[1] – à cidade que dividiu com o Rio de Janeiro a primazia de hospedá-la, por quase duas décadas, aqui no Brasil. Nesse poema escrito na década de setenta do século XX, ela estetiza o antagonismo que se constrói, entre os elementos urbanos da modernidade e o secular conjunto arquitetônico, colocando para os ouropretanos uma aparente contradição que até hoje os mobiliza: como elaborar a sintaxe entre a tradição e a modernidade, o intertexto entre a raiz (o ouro colonial) e a antena (a fumaça de Saramenha). Detentora de um Plutzs – um dos mais importantes prêmios da poesia norte-americana, em “Pela Janela: Ouro Preto” a poeta vê:

um caminhão Mercedes Benz/ enorme e novo,/ chega e domina a cena. Na carroceria/ botões de rosa brilham, enquanto o pára-choque/ anuncia: chegou quem você esperava“.

Em plena seara árcade, o signo do caminhão e o seu texto de parachoque roubam a cena em plenos anos 70. Neste início de milênio, os automóveis continuam circulando pelo cenário colonial, para espanto silencioso dos casarões imóveis e dos mutantes visitantes que contemplam a cidade.

Fundada sob o signo de câncer, em 24 de Junho de 1698, Ouro Preto nos olha. Mas a cidade não se entrega ao primeiro olhar de quem a visita ou vê. Seus mais de trezentos anos emprestam-lhe a segurança de quem sabe ser o tempo pai da forma. Suas fachadas, seus vãos, as treliças e as janelas (fechados ou luzidios) estão sempre a nos espreitar, possibilitando um diálogo óptico através do qual somos mais vistos que vemos. Em Ouro, a luz é sem data, dizia Cecília Meireles. Aqui uma luminosidade suave (nunca indecisa) namora a pele secular das paredes – lição que nos ensina serem a leveza e a superfície princípios vitais da existência e da criação.

Mas não é apenas a visão o sentido solicitado neste espaço. Aqui, a construção do sentido se dá a partir de todos os sentidos. Se o olho alimenta-se pela verticalidade de torres e telhados, e pelo diálogo exuberante das ladeiras e montanhas, ao mirá-las sentimos o cheiro do mato suavizando a porção íngreme das ruas (e se o cheiro é o sentido que mais remete à memória, como sugere Jung, o visitante ouropretano levará consigo matéria para infinitas rememorações). Também o olfato recebe por aqui fortes incentivos. Enquanto perambulamos pelas ruas, ladeiras e becos de Ouro, é comum sentir o cheiro de flores, cheiro de café torrado, de roupa lavada; o que facilmente converte-se em takes que remetem à infância (Tarsila do Amaral disse ter recuperado aqui as cores de sua infância[2]). Em Minas lavamos a alma. Minas vara o tempo. Não apagar nunca é a sina dos que transitam ouvindo sinos, com “sede de viver tudo” (“Fazenda”, Nelson Ângelo).

Pelo ouvido, o sim do sino do Museu da Inconfidência dá noticias dos últimos séculos. Na pele, o vento inscreve uma brisa cuja temperatura promove a movência interna. Se o frio multiplica as sensações e os sentimentos, em Ouro Preto é fácil o sujeito devolver-se a si, livrar-se da alta cota de automatismo que a maioria das grandes cidades e suas agendas exigem de seus habitantes.

Além da visão, do olfato, da audição e do tato, os nativos de Ouro sabem também o poder do paladar. Fazem circular pelo céu de nossas bocas as iguarias mais saborosas: haja queijo, pé-de-moleque, caldos e pães em cores que intensificam o desejo (quem prova, no Hostel Brumas, o bolo de cenoura com chocolate, feito por Tainana, sabe do que estou falando).


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A MODERNIDADE DE OURO


Não apenas Ouro Preto, mas todo o Estado de Minas Gerais constitui-se num dos “personagens” mais importantes da História do Brasil e da Literatura Brasileira. No plano sócio-político os números expressam a dimensão dessa história que também é forte na economia. Segundo Boris Fausto, até a Abolição da escravatura, Minas Gerais foi a província com a maior população do Brasil, e o maior número de escravos. Em 1872, Minhas Gerais abrigava 2,1 milhões de habitantes, sendo considerada a província mais povoada do Brasil. No final do século XIX, Minas Gerais possuía 192 mil escravos, enquanto o Rio de Janeiro tinha 162 mil e São Paulo 107 mil (1887).

A partir da queda da produção aurífera (+ ou - 1760) os números da população começam a mudar. Em 1740, a cidade possuía 20 mil habitantes; em 1804, apenas 7 mil pessoas residiam ali. Depois da queda da produção do ouro, após a Inconfidência delatada (1789) e a transferência da capital para Belo Horizonte (1898), a cidade caiu no ostracismo. Isso se deu em virtude do desprezo das elites republicanas pelo nosso passado colonial e escravista; e pela aversão dessas elites ao estilo barroco. Ser moderno era a meta do novo regime. E para isso era fundamental apagar as pegadas coloniais.

Somente em 1924 a cidade foi redescoberta pelos modernistas Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, dentre outros, na viagem por eles empreendida pelas históricas cidades mineiras. No seu empenho de conciliar o novo com o antigo, os modernistas brasileiros viram por outro ângulo as imagens de decadência e fantasmagoria inscritas pela literatura de viajantes europeus que por aqui passaram no século XIX.

O caso de Ouro Preto com a modernidade é antigo. Além de Bishop, a cidade dormiu com os poetas Manuel Bandeira, Carlos Drummond, Vinícius de Moraes, Murilo Mendes e Maria Ângela Alvim. Em Ouro viveram os pintores Alberto Guignard e Carlos Scliar e, dentre outros, o compositor João Bosco que por lá morou dez anos. Este Ouro é matéria de arte. Não é à toa que ainda hoje pela cidade circula uma gama de poetas, pintores, atores, músicos, escultores e dançarinos. Alguns por aqui permanecem; outros ficam poucas horas. Mas a cidade acostumou-se com a efeméride de seus visitantes. Amiga do tempo, ela sabe que tudo passa; por isso seus hóspedes e visitantes também passarão.

Mas Ouro Preto também diz, em suas curvas e montanhas que a circundam, sobre o tempo do eterno retorno. O resgate da memória e a construção imaginária dos seus visitantes – efêmeros ou permanentes – voltarão nem que seja num retorno que, embora não sendo eterno, é imaginário ou memorialístico.

Aqui onde a memória do ouro, na cumplicidade com a bruma, materializou-se, ficaram as pegadas de nossa conturbada história política e social. Neste passeio pela memória, Ouro leciona o quanto pode existir de futuro nas cores de um jardim, na exatidão de uma ponte, num chafariz que não pára ou numa fachada que resiste.

Quem atravessa algumas das 10 pontes da cidade, mira seus 15 chafarizes, visita suas 12 igrejas e sobe suas inúmeras ladeiras – ritmado pelos sinos –, levará para sempre a cidade consigo; quem leu sua simétrica lição e ouviu “a voz em off” de suas montanhas, descobre ser Ouro Preto um arquivo de formas seculares (Bom lembrar: o próprio ouro é um material generoso, cujas qualidades físico-químicas possibilita múltiplas transformações, fazendo-o “receber” várias formas).

As formas desse arquivo urbano foram relegadas durante décadas ao esquecimento. Somente no contexto político da era Vargas, a cidade passa “a ser reconhecida como patrimônio, monumento do passado. A partir disso, institui-se um verdadeiro culto a Ouro Preto, ao barroco mineiro, à obra escultural do Aleijadinho. Isso é fruto da atuação do SPHAN...”[3], hoje transformado em IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).

A localização de Ouro Preto ao pé de encostas e montanhas é singular. Sobre essa singularidade, ensina-nos o escultor Romã. Segundo ele, o espaço em forma côncava anuncia as infinitas possibilidades de conter e guardar que a cidade possui; ao contrário do espaço convexo que a tudo faz deslizar, desprender-se. Nessa configuração espacial onde tantos ideais de liberdade foram plantados e colhidos, a antiga Vila Rica guarda a memória colonial do Brasil; contém muito do nosso imaginário social e político construído principalmente nos séculos XVIII e XIX.

Aqui, tempestades noturnas podem fazer ecoar os gritos de velhas senzalas ainda hoje visíveis como peças históricas. É também comum ouvir, de quando em vez, um grito no ar, uma palavra áspera rasgando o silêncio da noite. Às vezes, escuta-se uma retórica da cidade noturna que é bastante violenta, e que parece atravessar os séculos. Segundo os historiadores, no século XVIII a violência e a desordem eram “personagens” corriqueiros na antiga Vila Rica. Suas ruas, desde então, passaram a ser “lidas” como “espaço de transgressão”[4].



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SOB O SIGNO DO BARROCO


Mas é também neste cenário do setecentos que a antiga capital de Minas Gerais esplende sob o signo do Barroco. Antes lido como “estilo tropical tosco” e depois resgatado como marco de nossa infância estética, ele influenciou as formas arquitetônicas, o vestuário, a arte, as cerimônias religiosas e as festividades do país. Em Minas, essas influências são caracterizadas pelo “esmero e requinte da ornamentação e da iluminação das ruas, os carros triunfais, com alegorias móveis, danças coreográficas, representações teatrais, torneios poéticos, óperas públicas, batuques...”[5]

Do Barroco, Ouro Preto herdou sua maior riqueza estética. Prova disso são os templos eclesiásticos, sua exuberância, seus excessos. Neles observamos a preferência pelas diagonais, pelas curvas. Podemos observar os contrastes e as dualidades expressos nos tons claros e escuros da maioria das igrejas. Até mesmo as alternadas imagens de luz e sombra que a natureza esculpe em toda parte, por aqui parecem refratar os efeitos luminosos e sombrios dos templos ouropretanos.

Ouro Preto refrata o espaço e o tempo. Dependendo da hora, do clima ou da estação do ano, seu cenário muda. Às vezes, vivifica-se por aqui mais de uma estação no mesmo dia. A riqueza de detalhes da paisagem faz com que o leitor esteja constantemente relendo a cidade, cujas formas e cujos sonhos foram esculpidos em pedra e madeira por Antônio Francisco Lisboa – O Aleijadinho, hoje enterrado na Igreja da Conceição de Antônio Dias. Para este templo, ele esculpiu quatro Suportes de Essa. “...É um silêncio de pedra:/ um silêncio esculpido pelo Aleijadinho/ no frontispício desta noite religiosa” [6].

O registro da obra do Aleijadinho é notório em várias cidades mineiras: Congonhas, Sabará, São João del Rei, Tiradentes. Em Ouro Preto, sua marca está presente em várias obras. Atribui-se a ele, por exemplo, o projeto da igreja de São Francisco, sua capela-mor, os púlpitos, a portada e o lavabo. São obras de um autor cuja preferência pelas formas vigorosas e pelos corpos atléticos de olhos amendoados o caracterizam. Acerca dele e sua arte, ouçamos o poema “São Francisco de Assis” dedicado à referida igreja por Carlos Drummond de Andrade:

Senhor, não mereço isto.
Não creio em vós para vos amar.
Trouxeste-me a São Francisco
E me fazeis vosso escravo.

Não entrarei, senhor, no templo,
Seu frontispício me basta.
Vossas flores e querubins
São matéria de muito amar.

Dai-me, Senhor, a só beleza
destes ornatos. E não a alma.
Pressente-se dor de homem,
Paralela à das cinco chagas.

Mas entro e, Senhor, me perco
Na rósea nave triunfal.
Por que tanto baixar o céu?
Por que esta nova cilada?

Senhor, os púlpitos mudos
Entretanto me sorriem.
Mais que vossa igreja, esta
Sabe a voz de me embalar.

Perdão, Senhor, por não amar-vos
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A imponência das igrejas, seus adros e torres, constitui-se em Ouro num espetáculo à parte. Mas até esses suntuosos templos do cristianismo, apesar de sua solidez secular, sofrem mutação na paisagem onde nada permanece igual. Acontece que por aqui a natureza dialoga com a cultura impondo também suas leis. Assim sendo, é possível presenciar, da Igreja de São Francisco de Paula, ao desaparecimento das igrejas de Nossa Senhora do Carmo e de Santa Efigênia, frente ao poderio sutil da bruma na primavera.

A movência da bruma é outro espetáculo que contribui para a leitura da paisagem ouropretana. Da cor da bruma, o macho atravessou os séculos e seu poder continua visível e enorme como aquele automóvel que Bishop introduz no poema. Takes rápidos e cotidianos registram esse secular domínio viril da raça branca. Num balcão, o gordo senhor claro de bigodes pretos ainda recebe o carregamento de laranjas das adolescentes de costas negras; numa igreja, enquanto a moça branca de grife importada ora, a velha senhora preta - vestida de algodão colorido - varre o sagrado chão de Jesus.


Nas esquinas do centro histórico, os vendedores de frutas são na maioria negros, cujos olhos – da cor da jabuticaba que oferecem – parecem janelas que ainda anunciam o quanto de escuridão habitava as senzalas. Ainda hoje, durante as festividades de final do ano, os brancos circulam pelo centro histórico em seus automóveis, enquanto o povo – a maioria negros – se acumula na Praça Tiradentes; em alguns momentos parecem avivar ‘as imagens da antiga rebeldia”[7]

Este chão divino e rebelde serviu de cenário não apenas para o povo e os artistas modernos. Nele está enterrado o escritor romântico Bernardo Guimarães (no cemitério da Igreja de São José).
Também aqui residiram Thomaz Antônio Gonzaga e Cláudio Manoel da Costa (assassinado na Casa dos Contos, em 1789) – os mais importantes poetas do Arcadismo brasileiro. Para a cidade que dividiu com Coimbra a tarefa de acolhê-lo, Claudio dedicou o poema “Villa Rica”[8] – composto de dez cantos e 82 notas –, cujo “argumento principal” é a fundação da cidade. O longo texto exalta os heróis fundadores, constrói um imaginário vigoroso em torno dos sítios naturais e, sobretudo, faz reluzir o ouro e outras pedras preciosas:

Abertas as montanhas, rota a serra,
Vê converter-se em ouro a pátria terra

(p. 217)

As safiras azuis produz a serra
Do itambê, tem rubis aquella terra

(p. 240 - Canto VIII)

Ditosas povoações, que hão de algum dia
Encher de lustre a luza monarchia

(p. 246 - Canto IX)

Vê-se outro mineiro, que se ocupa
Em penetrar por mina o duro monte


(p. 260 - Canto X)

Deste “país” de safiras e rubis, de ouro e da Arcádia, saíram pedras para ornamentar os templos da BA, de PE e do RJ, além da Europa. Segundo historiadores, as cifras arrecadadas nas Minas, de 1714 a 1746, eram altíssimas. Só para termos uma idéia da “sugação” lusitana, no ano de 1734 foram enviadas para Portugal 120 arrobas de ouro em pó e em barras: mais de 221 mil réis em moedas de ouro e 4 milhões em diamantes[9]. Ouro Preto tinha, no auge de sua produtividade econômica, cultural, artística e religiosa, o comércio mais movimentado do país. Além das pedras preciosas e das barras de ouro, outros produtos como algodão, couros, marmeladas e queijos saiam daqui para SP, BA, RJ e MS, dentre outras capitanias.


Essa opulência sócio-cultural e a ganância lusitana fizeram despertar idéias revolucionárias. “Se todos quisessem, poderíamos fazer no Brasil uma grande nação”[10]: Esse, o lema de Tiradentes. Ele e Felipe dos Santos - inconfidentes signos da condição brasileira de liberdade - pagaram um preço altíssimo por seus ideais. (“Em Minas respira-se liberdade”, anuncia um adesivo numa das 70 repúblicas estudantis da cidade; Minas dá bandeira: liberdade ainda que tardia).


Algumas pegadas desta história em busca da liberdade podem ser vistas na Casa do Pilar, situada no centro histórico de Ouro Preto. Ali se encontram livros pertencentes a Tiradentes, como a constituição americana, além dos autos do processo que o levou à morte, junto a documentos dos participantes da Inconfidência Mineira. Como ensinam os manuais de História, Tiradentes pagou caro: foi condenado à forca em 21 de Abril de 1792, e teve seu corpo retalhado e a cabeça exibida na praça de Ouro Preto.


Nenhum outro momento da história brasileira entreteceu com a poesia uma malha tão fecunda como o fez a Inconfidência Mineira. Poesia e Inconfidência são termos mutuamente implicados. Em primeiro lugar, pelo fato de poetas (Tomás Antônio Gonzaga, Alvarenga Peixoto, Cláudio Manuel da Costa...) terem participado do movimento ao lado de militares e liberais de toda sorte. Em segundo lugar, pelo fato de a Conjuração Mineira ter se convertido num tema literário que, despontando com os românticos, atravessa longitudinalmente toda a poesia nacional: de Castro Alves a Cecília Meireles, passando por Olavo Bilac, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e muitos outros.

Parte desse interesse dos poetas pela história mineira e seu solo pode ser mensurada em várias antologias. Dentre essas, destaco Vila Lira Rica, organizada pelos poetas da Cálamo, e a Antologia Poética de Ouro Preto, organizada por Jusberto Cardoso Filho. Essa última se organiza em torno de poetas brasileiros que tematizam a cidade e sua história, e cuja estetização conta com o olhar da maioria dos poetas árcades e, dentre outros, Guilherme de Almeida, Augusto dos Anjos, Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Manuel Bandeira e Vinícius de Moraes. Todos eles escreveram um poema à cidade onde “a flor nasce com força/ de odisséia” (Armando Freitas Filho).


Nesses arquivos históricos encontram-se também recibos e rabiscos pertencentes ao Aleijadinho, e o inventário da própria Marília de Dirceu. Além disso, há um exemplar de 1792 da obra de Thomaz Antonio Gonzaga que tem a musa ouropretana como título (a edição de “Marília de Dirceu” aqui utilizada data de 1862 e encontra-se na biblioteca da Casa dos Contos). De Claudio Manoel da Costa está arquivado, na Casa do Pilar, um tomo volumoso - de tamanho pequeno e capa original - que tem como título Obras Completas. O referido volume, contendo sonetos, fábula e cantatas, dentre outros, data de 1768 – marco inicial do Arcadismo brasileiro.

CORES E CARROS

E qual a cor dessa cidade tão pintada, cartografada e fotografada por artistas, historiadores e turistas? Se Curitiba é verde, como afirma o escritor José Castelo, se Natal é azul claro, como sugere a poeta Iracema Macedo, se é verde-azul o Rio de Janeiro, como entoa Guilherme Arantes e se Nova York é avermelhada, como lê meu amigo Bito, qual é a cor de Ouro Preto? Levando em conta a negritude sugerida pelo próprio nome, as mutantes tonalidades com as quais a natureza tinge a cidade, e de olho na multiplicidade de cores alegres e ousadas de suas fachadas, pode-se ler Ouro Preto como uma colorida cidade coberta de luz e sombra (mas não é o colorido festivo e escarlate da pulsante Salvador o mesmo daqui; em Ouro, a sintaxe das cores se dá de forma sóbria, remetendo a uma outra leitura).

Para melhor ler e contemplar o colorido deste cenário iluminado e sombrio, seria interessante que os seus dirigentes desviassem do centro histórico – principalmente da Rua São José e da Rua Direita – o tráfego de veículos que por ali circula. Esse desvio evitaria danos à cidade. Faria transitar com mais desenvoltura os seus moradores, hóspedes e visitantes. Faria também com que os sobrados e casarões – e não os automóveis, como no poema de Bishop – dominassem a cena. Neste novo trânsito todos sairiam ganhando. Principalmente a cidade de Ouro Preto - patrimônio universal da humanidade. Espaço permanentemente aberto à criação. Uma das raízes tentaculares do Brasil.


BIBLIOGRAFIA

01 - ANASTASIA, Carla Maria Junho et al. “Dos bandeirantes aos modernistas: um estudo histórico sobre Vila Rica” in: Oficina do Inconfidência. Revista de Trabalho. Ano 1, nº 0, Ouro Preto, 1999.

02 - BANDEIRA, Manuel. Guia de Ouro Preto. 4ª Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.


03 - BISHOP, Elisabeth. Poemas do Brasil. Trad. Paulo Henriques Brito. São Paulo: Cia. Das Letras, 1999.


04 – CARDOSO FILHO, Jusberto. Antologia Poética de Ouro Preto. Ouro Preto: Ed. Autor, 1995.


05 - COSTA, Claúdio Manoel da. “Villa Rica” in: Obras Completas. Tomo II. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1903.


06 – FAUSTO, Bóris. História Concisa do Brasil. São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial, 2002.


07 - GONZAGA, Thomaz Antônio. Marília de Dirceu. Rio de Janeiro: Livraria de B. L. Garnier, 1862.


08 - LIMA JUNIOR, Augusto de. Vila Rica do Ouro Preto. Síntese histórica e descritiva. Belo Horizonte: Ed. Do Autor, 1957.


09 - MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.


10 – WEINTRAUB, Fábio. (Org.). Vila Lira Rica. São Paulo: Cálamo, 1994.


NOTAS

[1] Bishop. “Poemas do Brasil”. 1998.
[2] Anastasia. “Oficina do Inconfidência”. 1999. P. 128.
[3] Anastasia. Op. Cit. P. 131.
[4] Anastasia. Op. Cit. P. 73.
[5] Anastasia. Op. Cit. P. 81.
[6] Versos do poeta Guilherme de Almeida na Antologia Poética de Ouro Preto.
[7] Costa. “Villa Rica”. 1903. P. 210.
[8] Costa. “Villa Rica”. 1903.
[9] Junior. “Vila Rica de Ouro Preto”. 1957. P. 33.
[10] Junior. Op. Cit. P. 127.



terça-feira, 15 de setembro de 2009

Sousândrade e a Serpente






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Incompreendido no contexto romântico do Século XIX e ausente do cânone literário brasileiro, o poeta maranhense Sousândrade (1832 – 1902) começa, enfim, a ganhar visibilidade estética e histórica. Renegada por críticos como José Veríssimo, a sua produção literária começa a ter a recepção crítica que merece. Mas, sem drama. O próprio autor parecia ter consciência dessa demora. Ouviu dizer que o seu poema O Guesa (1887), escrito durante 30 anos, seria “lido 50 anos depois”. Demorou bem mais. Esquecido pela crítica até 1964 – quando os irmãos Campos publicaram ReVisão de Sousândrade –, o poeta foi lido até hoje por um seleto grupo de críticos e pesquisadores como Luiza Lobo e Jomar Moraes, dentre poucos.


Esse grupo começa a ganhar dilatação neste milênio. Prova disso é edição, em 2003, de Poesia e prosa reunidas de Sousândrade (Org. Frederick Williams e Jomar Moraes), e a publicação, em 2008, de dois livros relacionados à produção do autor: Sousândrade Melhores Poemas, Seleção e Notas de Adriano Espínola, e A Nação Guesa de SousândradeUma Narrativa em Viagem, de Ana Santana Souza. Em torno deste último texto, resultado de uma tese de doutorado defendida na UFRN, com orientação da professora Ilza Matias de Sousa, farei a leitura que segue.

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Procedimentos modernos e nacionalismo pelo avesso


O livro de Ana começa por introduzir “uma poética de serpente” que reverencia uma lenda maranhense. De olho na cobra que, segundo o imaginário mítico, dorme e cresce submersa na Ilha de São Luís, a autora tece relações entre a narrativa lendária, a poética de Sousândrade e suas figurações ofídicas (“E as serpentes de fogo, iluminadas...”). O ponto de partida é a serpente no paraíso da narrativa bíblica. Com base nela a autora demonstra como a imagem da cobra alimenta o imaginário de várias culturas e nações.


Nas relações que empreende em torno desses discursos imaginários e culturais, Ana envolve o escritor Câmara Cascudo para mostrar como as influências dos mitos ofídicos dessas múltiplas culturas “estão amalgamadas, fundidas” com as nossas tradições populares. Transitando por espaços híbridos onde as fronteiras estéticas e culturais não possuem guarnição, o texto da autora alude à poética da serpente que Sousândrade amalgama e funde ao produzir uma mescla de linguagens que ultrapassam o contexto étnico e lingüístico do Romantismo.


Além da produção de diferentes linguagens, essa poética da serpente caracteriza-se por inscrever uma mescla de idiomas (inclusive línguas indígenas), por apresentar figurações do estrangeiro, do nômade, e pela presença de imagens e elementos móveis, seres errantes, formas múltiplas. Dentre os considerados procedimentos modernos ressaltados pela crítica na leitura dessa poética, a tese destaca o uso do flashback, a intertextualidade, a paráfrase, a paródia, a citação e a criação de um contexto polifônico no qual uma “variação de vozes” são estetizadas.


É claro que a inscrição desses procedimentos estéticos e culturais provoca estranhamento; dificulta a recepção crítica. Daí, uma possível justificativa para a incompreensão do autor num contexto no qual as noções de unidade, pureza, originalidade e totalidade, dentre outros, caracterizavam os textos representativos da idéia de nação e do conceito de literatura. Ao construir a sua narrativa poética a partir de dados referenciais, míticos, históricos e existenciais, Sousândrade confundia narrador e personagem, trazendo para a cena romântica um imaginário bastante complexo. Trazia também um pensamento mítico e uma escrita repleta de elementos que antecipavam o contexto moderno (Ana lembra que os irmãos Campos compara os procedimentos estéticos de Sousândrade aos procedimentos utilizados pelo poeta americano Ezra Pound em seus modernos Cantares).


Segundo Ana, “o estranho Sousândrade revira pelo avesso o nacionalismo romântico.” (p. 26); esse mesmo nacionalismo que tornara canônico o seu conterrâneo Gonçalves Dias. E aqui as diferenças ficam evidentes: enquanto o representante mor da poesia romântica idealiza o indígena e inscreve o mito da nação brasileira, o autor de O Guesa “critica a corrupção do indígena pelo colonizador” (p. 101) e rasura as cores e formas da paisagem original. Além disso, manifesta-se contrário à monarquia. Órfão, viajante de vários espaços – Rio de Janeiro, Paris, Londres, Amazonas, Estados Unidos, América Latina... –, Sousândrade é um poeta para quem a viagem, o exílio e a solidão são motivos presentes na vida, na obra, na morte.



O poeta nos cenários culturais da nação



A “odisséia do Guesa” é resumida numa viagem crítica e inventiva na qual a autora guia o leitor de forma bastante prazerosa. A viagem acontece na companhia de vários autores de diferentes épocas. Conta com a participação de mitos e deuses como Dioniso, Morfeu, Prometeu, Pégaso, Apolo, o sol... Nesta viagem, destaca-se o que de natureza (e metamorfose) e de história (e ruínas) permeiam a nação alegórica reinventada pelo poeta. Munida de estratégias críticas contemporâneas e de um repertório bibliográfico que traça um produtivo intertexto entre vários campos do saber, esta tese estabelece conexões e contrapontos entre estéticas e estilos como Barroco, Romantismo, Simbolismo, Modernismo e Surrealismo, dentre outros.


Destacam-se no texto temas e conceitos como identidade, nação, hibridação, cânone, performance, entre-lugar, mitopoiesis, alegoria... Essa multiplicidade teórica e conceitual retira Sousândrade do esquecimento crítico. Retira-o, sobretudo, do contexto idealizado e emotivo no qual vingou o Romantismo, e possibilita a inscrição da sua poética nos cenários culturais nos quais se move a autora. Segundo ela, “a performance sousandradina está no uso que o poeta faz da cultura das Américas.” (p. 83). (Imagino que essa cultura deveria vir no plural).


Essa inscrição cultural acontece em sintonia com as noções espaciais de descentramento e de multiterritorialidade que perpassa a poética da nação-serpente, propondo a possibilidade do poeta “experimentar diferentes territórios ao mesmo tempo”. (p. 29). Essa experimentação espacial e a idéia de construir uma colagem de vários tempos, no tempo presente, fundamenta a importante tese da autora. Segundo ela, O Guesa é uma alegoria da “América mestiça, reunião de escombros da história, dos sonhos e dos desejos do poeta.” (p. 30).

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Carta da Espinha Ereta aos Hóspedes do Saber

Uma versão deste poema foi publicada in Lima, Fernanda. Entre quartos, ruas e cafés. Imagens da Poesia Homoerótica de K. P. Kaváfis. Rio de Janeiro: nonoar, 2007.


Farto e pai do exílio
humano e suas fomes
Deus tem sede do suor
da carne e sua chuva

Ele fez do altar o leito
onde dúvidas deletou
e de le-gumes e curvas
a humanidade proveu

Deus mediu (com a pluma
que serviu de peso) a exatidão
e da leveza fez o combustível
do desejo que decreta: abra

sábado, 5 de setembro de 2009

WOYZECK – O BRASILEIRO, um épico?













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Para Miriam Juvino, produtora da peça



“Quando tem pilha o coração fica sangrando sem parar”


Essa frase acima refere-se, na peça Woyzeck – O Brasileiro, a uma singela imagem do Coração de Jesus que surge nas mãos de um personagem. Retirada do seu contexto, a fala parece sintetizar o texto, o elenco, a produção, e toda a arquitetura sonora (trilha original de Otto) e cênica que engendra a dramaturgia de Fernando Bonassi e a direção de Cibele Forjaz.

Na referida montagem de 2001, no Rio de Janeiro, o discurso da “pilha” é dito por Woyzeck – um homem ciumento que se alimenta de ervilhas, delírios e reflexões. Ele é uma espécie de Sísifo de olaria que escapa da fome indo para o exército. O seu discurso é proferido para Andres – personagem alimentado pelo canto e pela dança, que faz da ação de empilhar tijolos um roteiro concreto para a sua existência.

A “pilha” é aqui lida como metáfora do afeto que se encerra em nosso peito. “Pilha” que dá ritmo ao homem - bicho que se move num cenário áspero de poeira e barro. Sem ela – a pilha – a respiração não alcança; a circulação interdita a palavra.
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Sem “pilha” o olho nubla. O sangue estanca. O gesto encolhe, não cria sentimentos. O corpo pára de dizer; cala o seu discurso secreto e secular quando falta a “pilha”. Sem ela, a pátria é puta. Ninguém te convida ao salão. A vida passa a ser “uma fera que hiberna precariamente” (Ana C.). O coração é lento quando ela está ausente. Tijolo marrom de barro, imóvel e pesado, é o coração sem "pilha" num canto do cenário.

Woyzeck – O Brasileiro é, pois, uma peça sobre a movência e o mistério que é a “pilha” no corpo falante – o pulso, o pé, o olho, tudo o que respira e move. “Pilha” que é necessária ao homem para ritmar o tempo que o consome neste cenário de barro batido, cujo pó o receberá de volta. O texto alemão do século XIX, escrito por Büchner, antecipa alguns procedimentos das vanguardas do século XX, transformando-se numa aula sobre o ritmo e a movência. Na didática dessa aula, o elenco transita pelo cenário lecionando a “matemática do gesto”, a geometria da perda e a perene possibilidade da forma. Várias formas que contornam o caos. Seja a forma circular do poço – onde indagamos o infinito questionário da existência; seja a vertical forma dos planos no cenário – onde a virilidade exerce a sua potência afirmativa e criadora.
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Do arquivo de formas sociais, estéticas e existenciais que compõem a peça, destaca-se o ainda “olhar esfomeado” da mulher. Ela expressa a forma vibrante do universo feminino, seja ao banhar-se no poço, seja ao amassar o barro. De várias maneiras, Woyzeck ajuda-nos a celebrar a provisória cota diária de compreensão e afeto que nos cabe, e a compreender as nossas sedes e fomes contemporâneas.

Olaria humana em ruínas

Munido da “pilha” do personagem alemão, o ator Matheus Nachtergaele – entre dolorido e esperançoso - escreve no programa da peça um texto que parece ritmado pelo pulsar do coração do elenco que sangra “sem parar”. A partir da visão do espetáculo e da leitura de seu texto, é possível a inscrição das demandas de um corpo cuja mobilidade sa(n)gra o que de reflexivo e imaginário pode captar.
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Um corpo atento aos sons e gestos, às palavras e luzes que nascem da escuridão do barro que por vezes chega a salpicar algumas vestes na platéia. Nesta peça ouve-se o eco das dores daqueles que, ao perderem tudo, não conseguiram retornar do fundo do poço. Não conseguiram fabricar uma outra estação. Uma outra primavera. Uma peça da qual saímos para lavar a roupa suja do barro de onde viemos, da poeira que nos alimenta nesta olaria humana em ruínas.

Segundo Matheus, Woyzeck – O Brasileiro é “uma pedreira... para fazer da dor serviço”. Para a execução desse feito, o elenco contata o abismo da pele e a superfície da alma, com tudo de perda, queda, busca e nudez que isso mobiliza: “o desejo de um conhecimento quase insuportável às nossas potencialidades” (Fernando Bonassi). Nas palavras do ator Nanego Lira, a encenação justifica-se “...pelo tesão físico de expor a nossa carne e o nosso sangue no palco”.

Nessa exposição abissal, o corpo amolado e aceso inscreve – na olaria gestual – o quanto de delongas e demoras reside no ritmo que articula um gesto, produz uma palavra. No texto inacabado de 1837, a palavra produzida por Büchner aos 23 anos dá conta desse ritmo através da fala de algumas de suas personagens.
Ouçamos o Capitão:

“— Calma, Woyzeck, calma; uma coisa depois da outra! ...Convém planificar, Woyzeck!”.

“— Está bem, Woyzeck. Você é um homem bom, um homem bom. Mas pensa demais, isso dói. Você está sempre tão apressado”.

“— Senhor Doutor, não corra assim! Não reme assim no ar, com sua bengala! Assim o senhor está se apressando para a morte”.

“— Ei, Woyzeck – Que pressa de passar pela gente! Venha cá, Woyzeck? Correndo como uma navalha aberta pelo mundo! Seria capaz de cortar a gente”.

Enquanto reflexão acerca do deslocamento, do ritmo e da movência, WOYZECK é um vasto interrogatório das relações entre o espaço, o corpo e a palavra: em qual chão precisamos remexer, revirar, para do barro esculpir o gesto – áspero ou leve – de cada dia? De quantos músculos necessitamos para arremessar os tijolos de nossa inacabada construção? Qual palavra brotará da relação entre a “intenção” e o “gesto”?

Todo o elenco de WOYZECK parece vivificar “o esplendor da queda” e “a violência do abismo” (Iracema Macedo). A queda que é filha da pressa; a violência, da falta de ritmo. No cenário, tem-se às vezes a impressão de que tijolos voadores possam acertar algum espectador. São esses tijolos arremessados por este pequeno Sísifo que dialoga com o ativo personagem Andres na recepção do tijolo – signo da forma e do peso que permeiam as suas próprias existências. Mas aqui a leitura desse signo é bastante ambígua, porque ao tijolo é dada a possibilidade de voar por entre as palavras e os seres humanos.

Sob as bênçãos de Apolo e Dioniso

Se pensarmos no signo que é WOYZECK e sua concepção estética, podemos acionar o Nordeste brasileiro como significante (a forma) e a Alemanha como significado (o conteúdo). Do Nordeste como significante, o elenco recolhe sons, formas e materiais; a significação alemã pode estar relacionada às idéias de “derrocada do idealismo romântico e o desenvolvimento da concepção materialista do mundo” (Cibele Forjaz – diretora).

Nestes dois extremos podemos situar a peça: entre a moderna arquitetura dos versos nordestinos de autores como João Cabral de Mello Neto e Joaquim Cardoso, e a pós-moderna filosofia alemã de autores como Nietzsche. Da concepção poética moderna, WOYZECK – O brasileiro herda o rigor e a exatidão, o culto à forma e a secura temática da pedra, do barro, do pó que esculpe a linguagem cabralina.
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Contra o perene otimismo da lógica e a favor da capacidade de suportar a contradição, WOYZECK tem de nietzcheano uma certa ternura para o que nos causa estranheza, e o desejo de estetizar continuamente a existência. Com enorme gozo estético e social, a peça sugere também a dionisíaca crença nietzchiana num Deus e num homem que saibam dançar, que saibam voar. Afinal, é com pés de pomba que se governa o mundo, conforme a lição do filósofo.

Além de Büchner e Nietzsche, um terceiro autor alemão pode ser relacionado à peça: o escritor Walter Benjamin. Para ele, épico é o teatro gestual – aquele teatro que possui o gesto como material e questiona o caráter de diversão atribuído à arte. Neste sentido, podemos pensar que ao assistir a WOYZECK – O Brasileiro, estamos diante de um épico. Não um épico na sua inteireza enquanto gênero que narra a grandiosidade dos fatos históricos e faz apologia ao herói; mas um épico de ruptura, fragmentado, pós-moderno. A peça exibe uma epicidade que, ao estetizar as condições históricas e existenciais de suas personagens, dá conta da nossa subjetividade aflita e contemporânea.

Ao eleger como signos o espaço da movência, o ritmo da palavra e a precisão do gesto, a peça parece traduzir a olaria em ruínas onde amassamos o barro da nossa alteridade, onde construímos os tijolos de tudo o que move, salta, busca saída. Ao lecionar a didática do arremesso, da movência, do salto, Büchner e Matheus lavam nossa alma. Sim, Matheus, seu evangelho nos salvou. Aprendemos que até para morrer é preciso ritmo. Ao sairmos do teatro parece que continuamos a ouvi-lo: vão dançar, vão trabalhar, vão suar, vão foder, vão viver...

Sob a bênção de Dioniso esquecemos, por instantes, a assepsia limitada do shopping. Deletamos o olhar cartesiano e previsível. Rasuramos o pragmatismo dos garotos saudáveis... Melados de saliva e suor, desejamos cair no poço. Almejamos chafurdar na lama. Voltar ao barro. Tudo isso sob a bênção de Apolo, é claro. Porque dele nasce a forma, o ritmo, o gesto.
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BIBLIOGRAFIA
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BENJAMIN, Walter. "Que é o teatro épico? Um estudo sobre Brecht" in Magia e Técnica, Arte e Política. 5a ed. São Paulo: Brasiliense, 1993.
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PROGRAMA DA PEÇA. Woyzeck - O Brasileiro. Textos de Matheus Nachtegaele et ali. Rio de Janeiro, 2001.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Saramago: o mago narrador









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Uma versão deste ensaio foi publicada na Revista Folhas de Relva, Ano 03 - nº 03, Natal, 2000


O romancista, dramaturgo e poeta português José Saramago parece ser o exemplo raro de um autor cujos narradores relacionam-se às três categorias destacadas por Walter Benjamim, em seu ensaio “O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”[1]. Neste ensaio, Benjamin trata do narrador clássico, calcado na oralidade, destaca o solitário narrador do romance, surgido no seio da burguesia ascendente, e ressalta um narrador contemporâneo que busca apenas uma informação – forma de comunicação que ostenta a imagem como fundamento e que, segundo Benjamin, seria a grande suspeita da morte da narrativa.

Os narradores erigidos por Saramago parecem relacionados a estas três modalidades narrativas sugeridas por Benjamin. Vejamos. Do narrador clássico, o autor português resgata a oralidade e utiliza-se da memória como evocação – instrumento que aciona a produção de linguagem. Exemplo disso é a colheita de ambas – memória e oralidade – nos campos do Alentejo, para onde Saramago dirigiu-se em meados dos anos 70. Nascido no nordeste português, o autor buscou nesta região do sul de Portugal, a forma – encontrada no Alentejo – para contar suas histórias. Essa forma passou a ser visível a partir do romance Levantados do chão – texto escrito em 1979 e publicado em 1980. Sobre a dimensão dessa experiência do Alentejo em sua obra, diz Saramago[2]:

... alguma coisa aconteceu... eu havia estado com essa gente, ouvindo, escutando-os, estavam contando-me as suas vidas, o que tinha acontecido com eles... é como se, na hora de escrever, eu subitamente me encontrasse no lugar deles, só que agora narrando a eles o que eles me haviam narrado.

Em seguida, Saramago assume a aquisição da oralidade, advinda dessa “gente de uma qualidade humana impressionante”, habitantes da região do Alentejo: “Eu estava devolvendo pelo mesmo processo, pela oralidade, eu havia recebido deles. A minha maneira tão peculiar de narrar, se tiver uma raiz, penso que está aqui.”[3]

Quando diz da sua “maneira peculiar de narrar”, Saramago refere-se, principalmente, à produção de um texto cuja forma rompe com as regras gramaticais de pontuação, tornando nivelados os discursos diretos e indiretos. Além disso, essa "maneira peculiar" atenta para as noções de ritmo e sonoridade que baseiam sua escrita.

Estas noções são também lidas por Luciana Picchio que destaca em Saramago “una oralidad mentalizada, evocada dentro del narrador omnisciente”[4]. Embora não credite ao fragmentado narrador contemporâneo a classificação de onisciente, concordo com a autora quando ela resgata a oralidade – sentido bastante evidente no texto de Saramago. Segundo ela,


el estilo oral de Saramago, constituído por entonaciones, por rasgos supra-segmentales, por subrayados, por cambios de voz y de tono, presupone una ejecoción coletiva, multivocal, en la que cada una de las voces se distingue por la individualidad del timbre...




Para Picchio, essa “individualidad del timbre” “está sujeita a las reglas rigurosas de una partitura”. Meio complicado é distinguir essas “reglas” dessa “partitura” no moderno narrador do romance. Como não dispõe de uma experiência vivenciada a ser transmitida, o narrador do romance, diferentemente do narrador clássico, não ostenta nenhuma regra, nenhuma moral a ser repassada ao leitor. Do seu isolamento, ele tenta captar apenas algo que postule um sentido para a sua narrativa.

Talvez o que mais aprimore os narradores de Saramago do moderno narrador do romance seja a relação entre o tempo e o “estatuto histórico” das formas. Resgatando Lukács e sua Teoria do romance, Benjamin diz no referido ensaio que “o sentido da vida” é o centro em torno do qual se movimenta o romance; enquanto que “a moral da história” fazia desenvolver-se a narrativa.

A apreensão desse “sentido da vida” e a inscrição do tempo parecem constituir uma busca constante nos romances de Saramago. Sobre a dimensão temporal, diz ele de “um tempo que não é sucessão diacrônica”; um tempo “...em que o que acontece projecta-se numa imensa tela e tudo fica ao lado de tudo”. Sem dimensões do passado nem do futuro, segundo o autor de Ensaio Sobre a Cegueira “o que vai ser já está a acontecer”[5].

Já a questão da busca de um sentido é explícita na vasta obra do autor. Pensemos, por exemplo, no sentido que saramago constrói para a existência de pessoas comuns, como a personagem principal de Todos os Nomes, por exemplo, ou para Raimundo Silva – o revisor de livros de A história do cerco de Lisboa.

Do narrador contemporâneo, aquele que busca apenas uma informação, podemos identificar alguns traços nos históricos narradores de Saramago. Estes, de posse de uma informação a reconstrói, possibilitando uma nova interpretação, cujo sentido – embora remeta ao passado – está diretamente ligado ao contexto no qual é narrado. Exemplar dessa histórica informação relida é o romance O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991). Neste, as personagens contatam uma espécie de nostalgia do tempo no qual o Senhor “manifestava-se em presença todos os dias, não apenas nas suas obras”[6]. Neste mesmo romance, o Messias – relido por uma óptica questionadora, cultural e terrena –, pede perdão para o seu Pai, e tem na morte uma experiência que o aproxima da precária condição da forma humana.

Este terceiro tipo de narrador – calcado na informação –, tem na imagem e na visualização suas referências imediatas. Daí porque ele é, geralmente, um narrador urbano, de olho no repertório de imagens e sinais inscritos na cidade. Dentre os elementos que “concorrem para formar a parte visual”[7] do imaginário literário deste narrador, Ítalo Calvino destaca os seguintes:

. a observação direta do mundo real

. a transfiguração fantasmática e onírica


. o mundo figurativo transmitido pela cultura em seus vários níveis


. e um processo de abstração, condensação e interiorização da experiência sensível, de
importância decisiva tanto na visualização quanto na verbalização do pensamento.

Trata-se, portanto, de um narrador centrado na ação do olhar. Olhar que é palavra e desejo; sentido e inscrição. Para este narrador, a visão constitui-se no sentido mais requisitado na fundamentação de sua narrativa. Na obra de Saramago, o Ensaio sobre a Cegueira (1995) talvez seja o texto que melhor exemplifique essa forma de narrar. Segundo o autor, o Ensaio sobre a cegueira deu início a uma “trilogia involuntária” que passa por Todos os nomes e continuará com A Caverna – próximo texto a ser escrito, onde as personagens novamente não terão nomes.

A idéia da caverna já está presente na crônica “Saudades da Caverna”, incluída no livro A Bagagem do Viajante. Sempre preocupado com o roteiro do homem neste contexto violento, mutante e veloz, Saramago indaga nesta crônica: “Andaremos nós à procura de uma nova inocência, de um recomeço?” Parece difícil ter respostas ou mesmo dar nomes às coisas quando, “em escala jamais imaginada são alteradas as relações do homem com a natureza, rompidas tradições, às vezes milenares, deslocadas populações inteiras...”[8]

Como a isso nomear? Nome possui, segundo o crítico Horácio Costa, a trilogia de autores com os quais dialoga Saramago, inscrevendo-se na tradição histórica do romance português. Segundo o autor de José Saramago – O período formativo, esta trilogia autoral seria composta por Almeida Garret, Alexandre Herculano e Eça de Queiroz[9].

Para Horácio, o “método digressivo” de Saramago possui relação com a estética romântica de Garret. De Alexandre Herculano, o autor de História do Cerco de Lisboa teria recebido, como influência, o “espírito libertador do imaginário histórico; e Saramago aproximar-se-ia de Eça de Queiroz através de um “esquema formal” e de uma postura crítica que tem na ironia sua base mais destacada.

A digressão, relacionada Garret, os valores ideológicos, fornecidos por Herculano, e a forma – apontando para a postura crítica e irônica de Eça –, parecem presentes no Ensaio sobre a cegueira. Nesse texto, utilizando-se do procedimento intertextual, Saramago dialoga com a pedra drummondiana (p.63), faz referências a Homero e sua Ilíada (p.36), “enxerga” Borges ao vislumbrar o “interior de uma glória luminosa” (p.94), parodia o texto bíblico (p. 253-54), e faz alusão a pintores de várias épocas (p. 130-31). Além disso, elabora uma extensiva releitura dos ditos populares (p.84). Relê principalmente, claro, os ditos que envolvem a cegueira:

- candeia que vai adiante alumia duas vezes



- o amor, que dizem ser cego, também tem a sua palavra a dizer



- olhos que não vêem, coração que não sente



- o pior cego foi aquele que não quis ver...



- se queres ser cego, sê-lo-ás



- o medo cega

O autor consegue, com estes intertextos, referências estéticas e releituras culturais , elaborar uma polifonia vocal através da qual várias personagens têm voz, e não apenas o narrador (ou o autor?). Constrói, com isso, uma narrativa na qual reflete-se a sua visão de mundo, já que para ele a figura do narrador não existe, sendo o autor o responsável pelo o que narra. Sobre essa responsabilidade autoral, ele afirma: “... a figura do narrador não existe,... só o autor exerce função narrativa real na obra de ficção, qualquer que ela seja, romance, conto ou teatro...”[10]


Para demonstrar sua “teoria” em torno da arte de narrar, Saramago usa a pintura como parâmetro, lembrando não haver mediação entre o pintor e a pessoa que contempla sua tela. Sobre isso ele diz:


... não há, objectivamente, nenhuma diferença essencial entre a mão que guia o pincel ou o vaporizador sobre a tela, e a mão que desenha as letras sobre o papel ou as faz aparecer no ecrã (tela) do computador, que ambas são, com adestramento e eficácia similares, prolongamentos de um cérebro...[11]

O cérebro de Saramago acata essa responsabilidade narrativa. Olhando a história pelo retrovisor, ele introduz neste olhar uma forte dose de imaginação, através da qual os oprimidos ganham voz. Além disso, o autor diagnostica as contradições sociais e o mal-estar causados, principalmente, pela cegueira do “individualismo contemporâneo” patrocinado pelo sistema capitalista. Apesar disso, segundo Benjamin Abdala Jr., há nos romances do autor “... um horizonte para onde ele olha, um horizonte de sonho, contra a indiferença social do individualismo contemporâneo”.[12]

É na linha desse “horizonte” que se inscreve a narrativa do Ensaio sobre a cegueira. Apesar da estranheza causada pela cegueira, o olhar “humanista” (ou “relativista”) de Saramago devolve a visão e a cidade aos homens acometidos pela cegueira branca. Resta a estes, a partir da releitura do passado, construir um outro olhar.

[1] Benjamin. Magia e Técnia. Arte e Política. 1993. P. 197.
[2] Saramago. Revista CULT. Nº 17. São Paulo: Dez. de 1998 (Entrevista concedida a Horácio Costa, p.19).
[3] Saramago. Op. Cit. P. 21.
[4] Picchio. Revista espacio Espaço escrito. Nº 9-10. Badajoz, 1993-94.
[5] Saramago apud E. M. de Melo e Castro. In: “Saramago entrevisto”. Revista espacio Espaço escrito. Nº 9- 0.Badajoz, 1993-94.
[6] Saramago. O Evangelho Segundo Jesus Cristo. 1990. P. 110.
[7]Calvino. Seis propostas para o próximo milênio. 1990. P. 110.
[8] Bueno, André. “Cidades brasleiras modernas: velocidade e violência”, in: Terceira Margem. 1995. P. 104.
[9] Costa. Revista USP. Nº 40. São Paulo: Dezembro/Janeiro, 1998-99. P. 99.
[10] Saramago. Revista CULT. Nº 17. 1998.
[11] Saramago. Op. Cit. 1998.
[12] Abdala Jr. Revista TD, 40. Fev./Mar./Abr. 1999.