segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Paisagens

I

Paisagens Afetivas


carríssimo público


Nascido de corpo inerte, confesso: alguns cativos, cativantes raros interessam. Entre mouros e piranhas, movido pela fé, mestre e escravo fui. Ministro solos quentes e cadeados bocais. Depois da prisão, ganhei senha ad infinitum: não nascer. Parido de corpo manso, protejo partos que é uma beleza.

o sabor que lhe convém

O que mais me comove neste homem que adentra o coletivo vendendo biscoitos Wave, não é a perna que lhe falta. Comove-me a resignação expressa na sua voz. A forma como ele indaga o único passageiro que o atende – à minha frente – acerca do sabor que lhe convém: “abacaxi, limão ou morango?” Uma certa elegância - no tom e no ritmo dessa pergunta - faz dele um homem.

a paisagem é um estar em mim

Depois da treva daquele olhar, colho ritmo ao som dos autos e do trem da vila. Na pedagogia do desassossego, a lição dos corpos de Botafogo e a alma das ruas ensinam ouro aliado e o peso de quem opta pelo extremo. Por pouco, teu corpo não tomba feito torre e cai. Passo o comando à margem e desço na Central. Lado esquerdo pelos batentes às pressas. Papéis de chocolate brilham feito teus olhos. Afiado. No mesmo vagão.

II

Paisagens Urbanas

moto nada paterna

Sobe na traseira. Viaduto em trânsito. Salta da moto a mil e pega, no asfalto, o capacete do outro. Capacete na mão colhido em pleno sol. Quente, meu. Laranjeiras no final da tarde “satisfeito sorri e entro...” Desce no ponto.

viagem vermelha

No ônibus da empresa Viaje Bem, cadeira do corredor vazia, voz plena:
- Entra na Linha Vermelha?
- Sim, diz a boca vermelha da janela aberta.
Lado a lado - pela janela – paisagem e pele. Silêncio cúmplice.
Quando entra na Linha vermelha, as curvas: do asfalto, das pernas, da vida...


flechas velozes

Um Sebastião urbano na sua plenitude provisória. Aos passantes, leciona curvas, gestos mínimos, escoras. Suaves escoras. No poste de ferro da parada de ônibus, ele reina, fluído, “com disciplina de gato se lambendo”. Arregaça a camiseta. Olha ao redor e, disfarçadamente, lambe o próprio músculo. Massageia com a língua. Um Sebá flechado pela velocidade das motos que, de raspão, fitam a cena. Nu poste. À espera do coletivo. Puta demora! Santo, monta na primeira moto muda. Quem viu?