sábado, 28 de novembro de 2009

Escrita Pop na Academia

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Texto escrito para a arguição da dissertação de mestrado Renato Russo e Cazuza: a poética da travessia, de José Roberto Silveira, defendida na Universidade Federal de São João Del Rey em 2007, sob orientação da Professora Dra Suely Quintana.
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Poéticas em Trânsito
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Eu tenho esperança, eu fiz o que pude
Cazuza
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Tudo está perdido mas existem possibilidades
Renato Russo

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A dissertação Renato Russo e Cazuza: a poética da travessia, de José Roberto Silveira, é um texto que denota sensibilidade crítica, domínio da escrita e o apuro formal do seu autor. Seja na eleição dos objetos da pesquisa, na contemporaneidade do seu recorte vocabular, na competência do corpus bibliográfico ou até na seleção das epígrafes – “Vem comigo/ no caminho eu te explico” –, o texto erigido pelo autor tornam pertinentes as relações por ele engendradas.

Dilatando os conceitos de literatura, de música e de texto, Roberto ouve as letras das canções de Renato Russo e de Cazuza como poemas; sugere que “suas escritas podem ser lidas como memórias coletivas”, já que elementos biográficos e subjetivos podem esboçar algo em prol da coletividade. A partir disso, ele propõe a audição desta dupla de compositores como criadores da trilha sonora de um país em trânsito, e atribui a eles uma performance intelectual que questiono. Trata-se, como anuncia o próprio título, de uma poética da travessia e das metamorfoses de um Brasil que retoma o rumo da democratização.

Sem aura nem ufanismo, um outro país é musicalmente entoado (ou seria berrado?) por Renato, por Cazuza e pelo próprio Roberto. Que país é este? Sai de cena a propriedade ufanista, a “terra de Nosso Senhor” e pergunta-se “o nome do teu sócio”. Nada de coqueiros que dão coco nem mulatas arrastando o vestido pelos salões; agora, a garota midiática do Fantástico e o cartão de crédito que “é uma navalha” são os signos que dão o tom deste novo discurso. Nesta nova geografia musical da nação, o “Brasil” entoado por Cazuza e relido por Roberto corta como “uma espécie de Aquarela do Brasil ás avessas...”

Essa redemocratização do país se dá a partir dos anos 80, período no qual Renato e Cazuza intensificam suas “escritas musicais”, entoando “um berro” que faria ecoar “o registro urgente do agora”। Esse eco sinaliza um discurso mediado pela clareza, pela tom visceral e pela concretude das palavras do rock, um gênero híbrido, representativo da chamada pós-modernidade। (Essa clareza é audível, principalmente no texto do Renato, que ostenta um discurso direto e possui menos figuras de linguagens, se comparado ao texto metafórico da cultuada MPB. É sintomático que versos como “Lá em casa tem um poço mas a água é muito limpa” sejam cortados do texto de Roberto Silveria).

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Uma nova sensibilidade no ar
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A leitura destas poéticas sugere a produção de um texto que, ao confesar, estetiza a própria existência. É como “memórias - presentes e registro autobiográfico e confessional” que o autor lê as escritas destes dois compositores. Essa leitura se dá em sintoniza com o tempo no qual os dois autores se situam: um tempo que não pára, de ouvido em Cazuza; ou uma poética cujas estruturas rítmicas são calcadas numa sucessão de ciclos, dias, horas, momentos, datas e estações entoadas por Renato.

Essa sintonia temporal se dá em consonância com os procedimentos artísticos e culturais do final de século XX; procedimentos esses que transcendem a esfera do moderno। Neste contexto, surge uma outra sensibilidade। Captada nas artes, nas ciências e no comportamento cotidiano das sociedades mais avançadas, essa sensibilidade cognominada de pós-moderna tem origem na arquitetura e na computação dos anos 50. Passa depois pelo movimento pop dos anos 60 (cujos ritmos são audíveis nesta pesquisa), envereda pelos becos escuros dos anos 70, criticando a supremacia de Dona Razão (Barthes, Foucault, Derrida...), e aporta no cais das artes e culturas (inclusive da moda) e no cotidiano informatizado (mais informação, menos energia).

A arte e a cultura produzidas a partir desse cotidiano e dessa nova sensibilidade apostam na releitura do signo, e na fabricação do simulacro, do pastiche, da alegoria. Apostam também na consciência do outro como parâmetro para a construção da identidade, para a celebração da diferença, e para a re-proposição da alteridade. Atento a esses procedimentos estéticos e culturais, Roberto Silveira dialoga com um instrumental teórico bastante pertinente, a partir do qual constrói um texto polifônico. Nele ecoam, dentre outros, as vozes de Derrida, Bakhtin e Octavio Paz (“O homem se traduz no ritmo, cifra de sua temporalidade”).

Em sua introdução, o autor elenca os pioneiros no estudo da música no Brasil. Destaca Silvio Romero, Mário de Andrade e Augusto de Campos como pesquisadores cujas abordagens ultrapassam o campo da estética, o domínio da forma. A partir daí, a música adentra o universo acadêmico. José Miguel Wisnik, Beatriz Resende, Eneida Maria de Souza e Silviano Santiago, dentre outros, munidos de reflexões propostas principalmente pelos Estudos Culturais, elegem a canção e outros gêneros considerados “menores” (cartas, diários, entrevistas, relatos e tudo aquilo que Bakhtin enquadra no grupo especial de gêneros) como textos a partir dos quais é possível pensar o país.

O conceito de texto estético, e mais especificamente o conceito de texto literário, vem sofrendo diversas transformações ao longo da história. Um dos leitores mais importantes dessas transformações foi o pensador alemão Walter Benjamin, lido nesta dissertação como o autor que substitui o valor de culto da obra de arte pelo valor de exposição. Sua lição, ainda nos anos 30 do século XX, nos ensina que quando uma comunidade muda sua percepção, transformam-se seus modos sentir, de existir, criando assim outros meios de produzir arte e cultura.

Para Benjamin, a massa é a matriz a partir da qual surge uma atitude nova em relação á arte. Na leitura empreendida pelo pensador alemão, a quantidade passa a ser um paradigma que produz um novo modo do sujeito participar e se inscrever, alterando a própria noção de qualidade. (E aqui eu penso nos atuais mega espetáculos esportivos e musicais, nas ostentosas bienais livrescas, nas quilométricas filas nas visitações dos museus... nas legiões de fãs de Renato e Cazuza, nas suas comunidades virtuais, nas camisetas dos transeuntes urbanos com inscrições de suas letras ...)

Essa noção da quantidade influindo na qualidade da criação estética cria uma outra leitura do contexto. Essa leitura atenta para a historicidade das formas às quais o artista nasce submetido, e para o que de histórico existe na percepção e nos sentimentos (e aqui lembro outra lição: dessa vez a do velho e sempre contemporâneo Karl Marx, que primava pela educação dos sentido e que, via Leminski, nos ensina que até os sentimentos são históricos).

Ao contrário dos rituais mágicos ou religiosos que zelavam mais pela existência da obra de arte do que pela sua exposição, os produtos da indústria cultural, os ritos eletrônicos e cibernéticos prescrevem a exibição maciça de todos os seus signos; exílio é gol contra. Só o que é da ordem do visível, só o que é passível de audição parece apontar para a sua própria existência, como demonstram essas duas poéticas da travessia (pensar na idéia de circulação da obra e nas gavetas póstumas).

Na Antiguidade clássica e na Idade Média, a literatura, a filosofia e a teologia eram as formas destacadas de produção estética. A única forma de análise desses textos se dava por meio da escrita. Como sabemos, não havia naqueles períodos históricos os suportes tecnológicos e midiáticos que começaram a aparecer, principalmente a partir do século XX, quando surgem o gravador, o vídeo e o cinema, dentre outros. A aparição desses novos suportes torna viável a análise do texto falado, e possibilita outras formas de perceber e de ler o mundo.

O impacto do texto falado, musicado e imagético no universo das letras é inegável। Os processos tecnológicos e as chamadas tecnologias da inteligência, patrocinadas pelo universo virtual, possibilitam outras políticas da escrita e do imaginário। Historicizam uma outra subjetividade que dá origem a um outro paradigma estético e literário. O texto falado e o diálogo com a letra no cenário virtual puseram em cheque as formas clássicas de representação (Roberto lê a subjetividade estetizada nas letras de Renato e de Cazuza como “encenação e representação”); esse mesmo texto falado, essa mesma letra virtual questionam a produção do sentido e a noção de valor estético, fazendo com que os profissionais das artes e culturas repensem seus parâmetro estéticos e os preceitos canônicos que são, na maioria das vezes, pautados nos valores erigidos na Antiguidade e na Idade Média. Não é o que acontece nesta pesquisa.
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Geração sem


Dividida em três partes, a dissertação de Roberto Silveira elege “O sujeito da travessia e do desconcerto” como o sujeito que vivifica a década do eu. A construção identitária desse sujeito é lida em contraposição às décadas anteriores, quando, segundo o testemunho de autores como Ana Cristina Cesar, havia mais aflição no ar; embora, diz a poeta, as pessoas estivessem mais articuladas, e as identidades fossem construídas a partir de projetos grupais.

Contrapondo esse contexto ao tempo vivificado por Renato e Cazuza, Roberto refere-se à geração 80 como “...uma geração que aprendeu a viver com o que possui, sem ideologia, sem expectativas de tomada de poder, sem heróis...” Isso denota as diferenças com aquele contexo no qual havia projetos ideológicos aos quais era possível haver filiação, e quando o comportamento era lido como elemento crítico.

De ouvido atento ao recorte vocabular de Renato e Cazuza, Roberto elabora leituras inusitadas. Por exemplo: o significante “bruma” da canção desloca-se na letra produzida por Roberto, e embaça as vestes coloridas da geração 80; a “névoa” que pairou sobre o século XIX pode ainda embaçar a noite do século XX. Essas sacadas perpassam algumas das melhores páginas da dissertação. Roberto é um exímio leitor de contextos. Contextos estéticos e existências. Contextos de culpas e afetos, de poemas e canções.

Gosto muito das conexões tecidas entre as canções de diferentes tempos e lugares (no caso do Renato, por exemplo, as alusões ao folclore americano ou às canções portuguesas do século XIII; no caso do Cazuza, a sugestão do que pode haver dos poetas beats americanos, dos compositores Cartola e Dolores Duran em sua letra pop). Gosto também das leituras comparativas entre diferentes décadas, entre diferentes séculos (seria isso uma releitura do deus Tempo, divindade tão presente na obra dos dois poetas, principalmente nas letras do Renato?).

A segunda parte, “A escrita e a inscrição do eu: a poética confessional de R Russo e Cazuza”, trata dos novos suportes tecnológicos na cena estética contemporânea, e de questões referentes aos atos de escrever e confessar. Neste texto, o autor lê a inscrição do sujeito e principalmente a escrita autobiográfica como confissão, revelação por meio da palavra. Esse é o capítulo mais teórico da dissertação. Nele ouvem-se as vozes de Derrida (seu “animal autobiográfico” é relacionado ao poeta “fingidor” de Pessoa), Foucault e Eneida Maria de Souza, além de um belíssimo intertexto com poetas díspares e imprescindíveis como Borges, Olavo Bilac, Carlos Drummond, e Arnaldo Antunes, dentre outros. Esse permanente diálogo entre o teórico e o estético, torna polifônico o texto do próprio Roberto, sugerindo altas taxas de oralidade e o quanto de reflexivo e imaginário compõem os discursos críticos e teóricos na contemporaneidade.

Ao inscrever o sujeito, Roberto Silveira destaca a “encenação discursiva” sugerida pelas produções de Renato e Cazuza, ressaltando a escrita e o corpo como instâncias dessa “encenação”. “São só palavras: teço ensaio e cena/ Cada ato enceno a diferença” (Os barcos). Esses versos do Renato e a leitura do Roberto apontam para uma preocupação com o nível textual dessa escrita que possui na encenação o seu norte.

As relações entre corpo e escritura ressaltam um texto que parece deixar em segundo plano o nível temático, mais representativo dos modelos modernos e realistas, e que evidencia a construção do texto enquanto corpo, isto é: uma escrita que elege como prioritária a relação entre a escritura e o corpo que a produz e encena. Para o autor, “tanto o eu da obra poética como o eu da obra documental dos autores supõem uma encenação”. Essa me parece ser a leitura mais convincente em relação a essas produções estéticas contemporâneas, já que a idéia da representação não dá conta da dimensão textual proposta por esta “letra” que se tece nas malhas do múltiplo, da rasura, da simulação.

“Vozes que compõem o rock da travessia...” intitula a terceira, última e, na minha opinião, a parte mais instigante e criativa desta dissertação. A epígrafe de Baudelaire que a introduz, sugere a filiação dos dois poetas a um tempo no qual feiúra e encantamento dialogam. Nesta terceira parte, os conceitos vocais e intertextuais de Bakhtin, Derrida e Octavio Paz são retomados para a leitura da constituição do homem e da poesia como revelação.

Além da proposição da reflexão, Renato e Cazuza lecionam uma espécie de pedagogia dos afetos. Suas letras propõem uma sintaxe dos desejos que transcende a questão do tempo e da classe social (Embora Cazuza consiga ser ouvido em várias classes sociais e em diversas faixas etárias, sempre me instigou uma proeza do Renato: ele consegue alcançar dos tímpanos agrários aos ouvidos urbanos com a mesma intensidade). Chamar de salvação o amor estetizado por Renato, e de perdição o sentimento amoroso que se engendra a partir dos ingredientes sedutores de Cazuza – sexo, drogas, rock and roll e dor-de-cotovelo –, é outra sacada genial desta pesquisa. Apesar disso, é aqui que a questão da culpa se acentua e se repete de forma que poderia, a meu ver, ser melhor elucidada. Indago se toda confissão rima com culpa. Ou seja: será que não poderia haver menos culpa na escrita do Roberto?

A leitura de “Monte castelo” a partir das apropriações é um dos mais belos momentos desta escrita; embora a remissão aos “intertextos” do encarte não me convençam. Mas isso não reduz em nada a importância da leitura. Embora eu prefira, aos procedimentos utilizados por Renato, chamar de apropriações (como em alguns momentos o autor admite) ou até de simulacros, já que nem sempre a referência ao texto original vem demarcada na canção, como caracteriza o procedimento intertextual.

Parabenizo a Roberto Silveira pela clareza de sua escrita fluente, do seu texto criativo। Considero de fôlego intelectual esta pesquisa que merece desdobramento. Parabenizo a Suely Quintana pelos roteiros. Parabenizo principalmente pela coragem dela de bancar a orientação de um tema novo e ainda conflitante para o espaço acadêmico, que é a leitura da letra de música popcomo produção poética.