segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Paisagens

I

Paisagens Afetivas


carríssimo público


Nascido de corpo inerte, confesso: alguns cativos, cativantes raros interessam. Entre mouros e piranhas, movido pela fé, mestre e escravo fui. Ministro solos quentes e cadeados bocais. Depois da prisão, ganhei senha ad infinitum: não nascer. Parido de corpo manso, protejo partos que é uma beleza.

o sabor que lhe convém

O que mais me comove neste homem que adentra o coletivo vendendo biscoitos Wave, não é a perna que lhe falta. Comove-me a resignação expressa na sua voz. A forma como ele indaga o único passageiro que o atende – à minha frente – acerca do sabor que lhe convém: “abacaxi, limão ou morango?” Uma certa elegância - no tom e no ritmo dessa pergunta - faz dele um homem.

a paisagem é um estar em mim

Depois da treva daquele olhar, colho ritmo ao som dos autos e do trem da vila. Na pedagogia do desassossego, a lição dos corpos de Botafogo e a alma das ruas ensinam ouro aliado e o peso de quem opta pelo extremo. Por pouco, teu corpo não tomba feito torre e cai. Passo o comando à margem e desço na Central. Lado esquerdo pelos batentes às pressas. Papéis de chocolate brilham feito teus olhos. Afiado. No mesmo vagão.

II

Paisagens Urbanas

moto nada paterna

Sobe na traseira. Viaduto em trânsito. Salta da moto a mil e pega, no asfalto, o capacete do outro. Capacete na mão colhido em pleno sol. Quente, meu. Laranjeiras no final da tarde “satisfeito sorri e entro...” Desce no ponto.

viagem vermelha

No ônibus da empresa Viaje Bem, cadeira do corredor vazia, voz plena:
- Entra na Linha Vermelha?
- Sim, diz a boca vermelha da janela aberta.
Lado a lado - pela janela – paisagem e pele. Silêncio cúmplice.
Quando entra na Linha vermelha, as curvas: do asfalto, das pernas, da vida...


flechas velozes

Um Sebastião urbano na sua plenitude provisória. Aos passantes, leciona curvas, gestos mínimos, escoras. Suaves escoras. No poste de ferro da parada de ônibus, ele reina, fluído, “com disciplina de gato se lambendo”. Arregaça a camiseta. Olha ao redor e, disfarçadamente, lambe o próprio músculo. Massageia com a língua. Um Sebá flechado pela velocidade das motos que, de raspão, fitam a cena. Nu poste. À espera do coletivo. Puta demora! Santo, monta na primeira moto muda. Quem viu?

sábado, 28 de novembro de 2009

Escrita Pop na Academia

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Texto escrito para a arguição da dissertação de mestrado Renato Russo e Cazuza: a poética da travessia, de José Roberto Silveira, defendida na Universidade Federal de São João Del Rey em 2007, sob orientação da Professora Dra Suely Quintana.
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Poéticas em Trânsito
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Eu tenho esperança, eu fiz o que pude
Cazuza
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Tudo está perdido mas existem possibilidades
Renato Russo

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A dissertação Renato Russo e Cazuza: a poética da travessia, de José Roberto Silveira, é um texto que denota sensibilidade crítica, domínio da escrita e o apuro formal do seu autor. Seja na eleição dos objetos da pesquisa, na contemporaneidade do seu recorte vocabular, na competência do corpus bibliográfico ou até na seleção das epígrafes – “Vem comigo/ no caminho eu te explico” –, o texto erigido pelo autor tornam pertinentes as relações por ele engendradas.

Dilatando os conceitos de literatura, de música e de texto, Roberto ouve as letras das canções de Renato Russo e de Cazuza como poemas; sugere que “suas escritas podem ser lidas como memórias coletivas”, já que elementos biográficos e subjetivos podem esboçar algo em prol da coletividade. A partir disso, ele propõe a audição desta dupla de compositores como criadores da trilha sonora de um país em trânsito, e atribui a eles uma performance intelectual que questiono. Trata-se, como anuncia o próprio título, de uma poética da travessia e das metamorfoses de um Brasil que retoma o rumo da democratização.

Sem aura nem ufanismo, um outro país é musicalmente entoado (ou seria berrado?) por Renato, por Cazuza e pelo próprio Roberto. Que país é este? Sai de cena a propriedade ufanista, a “terra de Nosso Senhor” e pergunta-se “o nome do teu sócio”. Nada de coqueiros que dão coco nem mulatas arrastando o vestido pelos salões; agora, a garota midiática do Fantástico e o cartão de crédito que “é uma navalha” são os signos que dão o tom deste novo discurso. Nesta nova geografia musical da nação, o “Brasil” entoado por Cazuza e relido por Roberto corta como “uma espécie de Aquarela do Brasil ás avessas...”

Essa redemocratização do país se dá a partir dos anos 80, período no qual Renato e Cazuza intensificam suas “escritas musicais”, entoando “um berro” que faria ecoar “o registro urgente do agora”। Esse eco sinaliza um discurso mediado pela clareza, pela tom visceral e pela concretude das palavras do rock, um gênero híbrido, representativo da chamada pós-modernidade। (Essa clareza é audível, principalmente no texto do Renato, que ostenta um discurso direto e possui menos figuras de linguagens, se comparado ao texto metafórico da cultuada MPB. É sintomático que versos como “Lá em casa tem um poço mas a água é muito limpa” sejam cortados do texto de Roberto Silveria).

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Uma nova sensibilidade no ar
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A leitura destas poéticas sugere a produção de um texto que, ao confesar, estetiza a própria existência. É como “memórias - presentes e registro autobiográfico e confessional” que o autor lê as escritas destes dois compositores. Essa leitura se dá em sintoniza com o tempo no qual os dois autores se situam: um tempo que não pára, de ouvido em Cazuza; ou uma poética cujas estruturas rítmicas são calcadas numa sucessão de ciclos, dias, horas, momentos, datas e estações entoadas por Renato.

Essa sintonia temporal se dá em consonância com os procedimentos artísticos e culturais do final de século XX; procedimentos esses que transcendem a esfera do moderno। Neste contexto, surge uma outra sensibilidade। Captada nas artes, nas ciências e no comportamento cotidiano das sociedades mais avançadas, essa sensibilidade cognominada de pós-moderna tem origem na arquitetura e na computação dos anos 50. Passa depois pelo movimento pop dos anos 60 (cujos ritmos são audíveis nesta pesquisa), envereda pelos becos escuros dos anos 70, criticando a supremacia de Dona Razão (Barthes, Foucault, Derrida...), e aporta no cais das artes e culturas (inclusive da moda) e no cotidiano informatizado (mais informação, menos energia).

A arte e a cultura produzidas a partir desse cotidiano e dessa nova sensibilidade apostam na releitura do signo, e na fabricação do simulacro, do pastiche, da alegoria. Apostam também na consciência do outro como parâmetro para a construção da identidade, para a celebração da diferença, e para a re-proposição da alteridade. Atento a esses procedimentos estéticos e culturais, Roberto Silveira dialoga com um instrumental teórico bastante pertinente, a partir do qual constrói um texto polifônico. Nele ecoam, dentre outros, as vozes de Derrida, Bakhtin e Octavio Paz (“O homem se traduz no ritmo, cifra de sua temporalidade”).

Em sua introdução, o autor elenca os pioneiros no estudo da música no Brasil. Destaca Silvio Romero, Mário de Andrade e Augusto de Campos como pesquisadores cujas abordagens ultrapassam o campo da estética, o domínio da forma. A partir daí, a música adentra o universo acadêmico. José Miguel Wisnik, Beatriz Resende, Eneida Maria de Souza e Silviano Santiago, dentre outros, munidos de reflexões propostas principalmente pelos Estudos Culturais, elegem a canção e outros gêneros considerados “menores” (cartas, diários, entrevistas, relatos e tudo aquilo que Bakhtin enquadra no grupo especial de gêneros) como textos a partir dos quais é possível pensar o país.

O conceito de texto estético, e mais especificamente o conceito de texto literário, vem sofrendo diversas transformações ao longo da história. Um dos leitores mais importantes dessas transformações foi o pensador alemão Walter Benjamin, lido nesta dissertação como o autor que substitui o valor de culto da obra de arte pelo valor de exposição. Sua lição, ainda nos anos 30 do século XX, nos ensina que quando uma comunidade muda sua percepção, transformam-se seus modos sentir, de existir, criando assim outros meios de produzir arte e cultura.

Para Benjamin, a massa é a matriz a partir da qual surge uma atitude nova em relação á arte. Na leitura empreendida pelo pensador alemão, a quantidade passa a ser um paradigma que produz um novo modo do sujeito participar e se inscrever, alterando a própria noção de qualidade. (E aqui eu penso nos atuais mega espetáculos esportivos e musicais, nas ostentosas bienais livrescas, nas quilométricas filas nas visitações dos museus... nas legiões de fãs de Renato e Cazuza, nas suas comunidades virtuais, nas camisetas dos transeuntes urbanos com inscrições de suas letras ...)

Essa noção da quantidade influindo na qualidade da criação estética cria uma outra leitura do contexto. Essa leitura atenta para a historicidade das formas às quais o artista nasce submetido, e para o que de histórico existe na percepção e nos sentimentos (e aqui lembro outra lição: dessa vez a do velho e sempre contemporâneo Karl Marx, que primava pela educação dos sentido e que, via Leminski, nos ensina que até os sentimentos são históricos).

Ao contrário dos rituais mágicos ou religiosos que zelavam mais pela existência da obra de arte do que pela sua exposição, os produtos da indústria cultural, os ritos eletrônicos e cibernéticos prescrevem a exibição maciça de todos os seus signos; exílio é gol contra. Só o que é da ordem do visível, só o que é passível de audição parece apontar para a sua própria existência, como demonstram essas duas poéticas da travessia (pensar na idéia de circulação da obra e nas gavetas póstumas).

Na Antiguidade clássica e na Idade Média, a literatura, a filosofia e a teologia eram as formas destacadas de produção estética. A única forma de análise desses textos se dava por meio da escrita. Como sabemos, não havia naqueles períodos históricos os suportes tecnológicos e midiáticos que começaram a aparecer, principalmente a partir do século XX, quando surgem o gravador, o vídeo e o cinema, dentre outros. A aparição desses novos suportes torna viável a análise do texto falado, e possibilita outras formas de perceber e de ler o mundo.

O impacto do texto falado, musicado e imagético no universo das letras é inegável। Os processos tecnológicos e as chamadas tecnologias da inteligência, patrocinadas pelo universo virtual, possibilitam outras políticas da escrita e do imaginário। Historicizam uma outra subjetividade que dá origem a um outro paradigma estético e literário. O texto falado e o diálogo com a letra no cenário virtual puseram em cheque as formas clássicas de representação (Roberto lê a subjetividade estetizada nas letras de Renato e de Cazuza como “encenação e representação”); esse mesmo texto falado, essa mesma letra virtual questionam a produção do sentido e a noção de valor estético, fazendo com que os profissionais das artes e culturas repensem seus parâmetro estéticos e os preceitos canônicos que são, na maioria das vezes, pautados nos valores erigidos na Antiguidade e na Idade Média. Não é o que acontece nesta pesquisa.
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Geração sem


Dividida em três partes, a dissertação de Roberto Silveira elege “O sujeito da travessia e do desconcerto” como o sujeito que vivifica a década do eu. A construção identitária desse sujeito é lida em contraposição às décadas anteriores, quando, segundo o testemunho de autores como Ana Cristina Cesar, havia mais aflição no ar; embora, diz a poeta, as pessoas estivessem mais articuladas, e as identidades fossem construídas a partir de projetos grupais.

Contrapondo esse contexto ao tempo vivificado por Renato e Cazuza, Roberto refere-se à geração 80 como “...uma geração que aprendeu a viver com o que possui, sem ideologia, sem expectativas de tomada de poder, sem heróis...” Isso denota as diferenças com aquele contexo no qual havia projetos ideológicos aos quais era possível haver filiação, e quando o comportamento era lido como elemento crítico.

De ouvido atento ao recorte vocabular de Renato e Cazuza, Roberto elabora leituras inusitadas. Por exemplo: o significante “bruma” da canção desloca-se na letra produzida por Roberto, e embaça as vestes coloridas da geração 80; a “névoa” que pairou sobre o século XIX pode ainda embaçar a noite do século XX. Essas sacadas perpassam algumas das melhores páginas da dissertação. Roberto é um exímio leitor de contextos. Contextos estéticos e existências. Contextos de culpas e afetos, de poemas e canções.

Gosto muito das conexões tecidas entre as canções de diferentes tempos e lugares (no caso do Renato, por exemplo, as alusões ao folclore americano ou às canções portuguesas do século XIII; no caso do Cazuza, a sugestão do que pode haver dos poetas beats americanos, dos compositores Cartola e Dolores Duran em sua letra pop). Gosto também das leituras comparativas entre diferentes décadas, entre diferentes séculos (seria isso uma releitura do deus Tempo, divindade tão presente na obra dos dois poetas, principalmente nas letras do Renato?).

A segunda parte, “A escrita e a inscrição do eu: a poética confessional de R Russo e Cazuza”, trata dos novos suportes tecnológicos na cena estética contemporânea, e de questões referentes aos atos de escrever e confessar. Neste texto, o autor lê a inscrição do sujeito e principalmente a escrita autobiográfica como confissão, revelação por meio da palavra. Esse é o capítulo mais teórico da dissertação. Nele ouvem-se as vozes de Derrida (seu “animal autobiográfico” é relacionado ao poeta “fingidor” de Pessoa), Foucault e Eneida Maria de Souza, além de um belíssimo intertexto com poetas díspares e imprescindíveis como Borges, Olavo Bilac, Carlos Drummond, e Arnaldo Antunes, dentre outros. Esse permanente diálogo entre o teórico e o estético, torna polifônico o texto do próprio Roberto, sugerindo altas taxas de oralidade e o quanto de reflexivo e imaginário compõem os discursos críticos e teóricos na contemporaneidade.

Ao inscrever o sujeito, Roberto Silveira destaca a “encenação discursiva” sugerida pelas produções de Renato e Cazuza, ressaltando a escrita e o corpo como instâncias dessa “encenação”. “São só palavras: teço ensaio e cena/ Cada ato enceno a diferença” (Os barcos). Esses versos do Renato e a leitura do Roberto apontam para uma preocupação com o nível textual dessa escrita que possui na encenação o seu norte.

As relações entre corpo e escritura ressaltam um texto que parece deixar em segundo plano o nível temático, mais representativo dos modelos modernos e realistas, e que evidencia a construção do texto enquanto corpo, isto é: uma escrita que elege como prioritária a relação entre a escritura e o corpo que a produz e encena. Para o autor, “tanto o eu da obra poética como o eu da obra documental dos autores supõem uma encenação”. Essa me parece ser a leitura mais convincente em relação a essas produções estéticas contemporâneas, já que a idéia da representação não dá conta da dimensão textual proposta por esta “letra” que se tece nas malhas do múltiplo, da rasura, da simulação.

“Vozes que compõem o rock da travessia...” intitula a terceira, última e, na minha opinião, a parte mais instigante e criativa desta dissertação. A epígrafe de Baudelaire que a introduz, sugere a filiação dos dois poetas a um tempo no qual feiúra e encantamento dialogam. Nesta terceira parte, os conceitos vocais e intertextuais de Bakhtin, Derrida e Octavio Paz são retomados para a leitura da constituição do homem e da poesia como revelação.

Além da proposição da reflexão, Renato e Cazuza lecionam uma espécie de pedagogia dos afetos. Suas letras propõem uma sintaxe dos desejos que transcende a questão do tempo e da classe social (Embora Cazuza consiga ser ouvido em várias classes sociais e em diversas faixas etárias, sempre me instigou uma proeza do Renato: ele consegue alcançar dos tímpanos agrários aos ouvidos urbanos com a mesma intensidade). Chamar de salvação o amor estetizado por Renato, e de perdição o sentimento amoroso que se engendra a partir dos ingredientes sedutores de Cazuza – sexo, drogas, rock and roll e dor-de-cotovelo –, é outra sacada genial desta pesquisa. Apesar disso, é aqui que a questão da culpa se acentua e se repete de forma que poderia, a meu ver, ser melhor elucidada. Indago se toda confissão rima com culpa. Ou seja: será que não poderia haver menos culpa na escrita do Roberto?

A leitura de “Monte castelo” a partir das apropriações é um dos mais belos momentos desta escrita; embora a remissão aos “intertextos” do encarte não me convençam. Mas isso não reduz em nada a importância da leitura. Embora eu prefira, aos procedimentos utilizados por Renato, chamar de apropriações (como em alguns momentos o autor admite) ou até de simulacros, já que nem sempre a referência ao texto original vem demarcada na canção, como caracteriza o procedimento intertextual.

Parabenizo a Roberto Silveira pela clareza de sua escrita fluente, do seu texto criativo। Considero de fôlego intelectual esta pesquisa que merece desdobramento. Parabenizo a Suely Quintana pelos roteiros. Parabenizo principalmente pela coragem dela de bancar a orientação de um tema novo e ainda conflitante para o espaço acadêmico, que é a leitura da letra de música popcomo produção poética.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

O sussurro dos fatos








O Estranho é o quinto livro de ficção da escritora carioca Carmem Moreno. A epígrafe de Clarice Lispector que abre o volume sugere a filiação da contista a uma linhagem literária que possui na autora de A Legião Estrangeira e em textos como Estranhos Estrangeiros, de Caio Fernando Abreu, dentre outros, seus precursores. A leitura dos oito contos (três deles premiados) confirma essa sugestão filial.

Carmem cria inusitados finais para estranhos personagens. Eles transitam principalmente por hospitais (“Depois da Queda”), abrigos psiquiátricos (“O Reencontro”) e sessões de análise (“O Corno”). Nesses cenários, um narrador contata o reino mineral (“O que eu chamava de carne e osso virou carne, osso e ferro.”), e subverte mitos como a queda e a espera. Este último mito, romanticamente lido como feminino, é relido por um homem que procura nos cenários provisórios e soturnos que o circundam, o melhor ângulo de digerir a paisagem; mesmo que seja esta paisagem o submundo hospitalar. “Depois da queda” é um texto pedagógico: leciona a regar, em meio ao cotidiano áspero e automatizado, pequenas promessas. Promessas que viram rezas que viram metas que viram sílabas que viram textos como “Dora”.

“Dora” é um conto detentor de dois prêmios. Nele, a miudeza das sílabas no papel picado anuncia, na sua fragmentação amassada, com quantos paus se faz uma relação afetiva cotidiana. A estratégia da carta, a cortante presença da ausência e a seqüência de mulheres que engendram o texto – Rose, Dora, Júlia, Cândida.... – estruturam, nas cinco cenas da narrativa, um pequeno tratado sobre a traição. Possuída por um dos mais moventes pecados capitais – a raiva – e com um olhar habituado a batizar entranhas, a narradora freqüenta mini temporadas infernais numa travessia que vai da claridade ao breu. São falas miúdas. Frases que fariam arrepiar os filhos de René Descartes, para quem corpo e alma são lidos como coisas distintas. Diz a narrativa: “...uma lembrança congela meu estômago” ou “Não penso, não intuo. Sou bruta.”. Essa sintaxe seca e cortante dá o tom; embora eu sinta, neste conto onde a raiva é o principal combustível, saudades de uma escrita ainda mais alegórica e antropofágica, como no Pau... e nos biscoitos bruscos de Oswald de Andrade ou nas luvas de Ana C em seu belíssimo A teus pés.

Em “O Reencontro” Julia inscreve a dança da loucura. Pela ótica do afeto e da amizade, ela narra como Mira vai perdendo o riso e o ritmo diários, restando precária a própria respiração (aliás, o ar, seus fluxos, seus ritmos – ou sua falta – é um dos “elementos-personagens” marcantes em O estranho). Essa narrativa denota a opressão lingüística que jaz latente nas relações, sejam elas entre irmãos, amigos ou amantes. Relações regidas por uma lógica silenciosa, geralmente afetiva e perversa, que engendra e ornamenta uma linguagem na qual a sedução e seus desvios anunciam o que de fascista e autoritário compõe o discurso patrocinador de quedas.

Um dos mais belos finais do livro encontra-se em “O Estranho”. Neste texto, João é um motorista em quem a vida passou a perna. Isso se dá numa velocidade na qual a crueldade faz dançar os que tentam abreviar os roteiros cotidianos que a vida propõe, traça. A autora demonstra mestria ao virilizar as vozes de um dos personagens desse conto e da narrativa seguinte: “A Dor”. Aos trinta e oito anos um homem petrifica-se. Desejante de um “grande fato”, ele tem pressa. Seus ritmos não escondem a sombra que habita sua face. O discurso de morte, desculpas, perdão e dor ganha musicalidade na medida em que sua confissão fere a mulher, despertando-lhe um intenso prazer.

São assim os personagens de Carmem Moreno: seres movidos pelo desejo de captar o instante, acionar a senha que o devir anuncia।De ouvido atento ao sussurro que clariceanamente emana dos fatos; de olho no futuro armado logo ali, ao redor (“O espelho da outra”). Embora, como nos contos de Caio, trata-se às vezes de uma narrativa do olhar invisível: um olho que vê, mas nem sempre se deixa ver.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Cuba, sin perder la musica jamás









Rio de Janeiro, Fevereiro de 2000
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a câmara canta, chora

“Wim Wenders não aparece, mas sua câmara também chora em vários momentos”. Essa assertiva de Marcelo Janot (Revista Programa - Jornal do Brasil, 18/02/00) diz muito da emoção que toma conta do diretor, dos músicos e da platéia de Buena Vista Social Club. Frente às sonoras paisagens cubanas muitos choram. E embora o crítico assegure não haver “investigações políticas”, do prólogo - no qual Fidel vence Che Guevara, numa partida de golfe - à cena final da bandeira cubana no palco do Carnell Holl, a política insinua-se. Embora seja a música, claro, a grande personagem desta história.

O novo filme do diretor de Paris, Texas elege não apenas a música como personagem principal, mas a vida e parte do cotidiano cubanos. Ao transpor para a tela a história e a obra de artistas cubanos como Ibrahim Ferrer, Rubén Gonzales e Omara Portundo, dentre outros, Wim Wenders refaz a trilha sonora deste tempo globalizado. Para isso, o diretor alemão - de olho nas poéticas imagens cubanas -, lança mão do ouvido e da voz destes músicos que brilharam em meados do século XX, apresentando-se em Moscou, Bucareste e países da América Latina, e que estavam praticamente esquecidos (Ibrahim Ferrer, por exemplo, vivia como engraxate em Cuba, até que Ry Cooder - músico predileto das trilhas de Wim - o resgatou).

música sob estrelas

O documentário é de uma beleza comovente. Nas ruas de Havana ou New York, a vida e a música da Velha Guarda cubana celebram a existência e sua sonoridade, descartando perdas, rancores, mesquinharias. Tempo e espaço parecem parceiros de uma longa melodia que se vai tecendo ad infinitum... Nada soa piegas ou exótico. É incrível como um filme - repleto de pessoas antigas - contém tanto viço, ostenta tanta pulsão. Um senhor de 90 anos deseja fazer mais um filho. Outro senhor mostra - num banco de jardim - a fotografia desbotada de um saudoso cego com quem tocara num momento marcante de sua trajetória. Um outro homem diz do músico que tirava altas notas sob as estrelas. Uma mulher de vestes coloridas passeia cantando pelas ruas de Havana... Ninguém quer morrer. Todos parecem encarar a vida de frente. A vida no peito, à vista, sem crediário.

Na tela reluz também as vozes interiores de quem canta. A percussão sutil destes músicos ajuda a sonorizar a aridez de nossas entranhas. Saindo da esfera da sombra e de olho nas luminárias da forma, vê-se que nos sobrados de cores berrantes e nos requebros sonoros dessa gente, a vida pulsa sua amplidão através de coisas miúdas: a solidão amarela de um girassol sobre a mesa; o charuto da negra nativa “matando” o tempo; um móvel decadente arrastado pela vizinhança; o caminhar sensual do pai carregado pela mão do filho... Cuba é aqui.

Wim Wenders capta a música e a poesia que residem na banalidade e na própria carência cotidianas. Cenas da vida privada são ritmadas por melodias que parecem fazer parte do nosso imaginário musical. Seja nas enferrujadas marcas de automóveis que trafegam por Cuba ou no colorido de seus mares e jardins outonais, seja na fala concisa e consciente dos músicos, ou ainda no discurso coerente de seus corpos, a câmara reflete a vida desta Velha Guarda. Reflete e refrata em nós o que há de vivo, ritmado, edificante.

Enfim: um musical ativo que, ao celebrar as ações factuais, espanta a morte mesquinha de cada dia। Impossível não lembrar a lição psicanalítica de que a libido tem possibilidade de manifestar-se durante toda nossa existência. Pena que este universo globalizado teime em reduzir essa manifestação; pena que as imagens do capital e do poder nem sempre traduzam a música que há na sutileza das coisas. Bom seria se houvesse mais paisagens sonoras para alimentar a fome do nosso olho, o jejum do nosso desejo. Num tempo no qual a indústria cinematográfica banaliza tanto a morte e vende a adrenalina do medo e da guerra como receita existencial, nada melhor que o ritmo da Velha Guarda cubana para restaurar a trilha sonora da vida.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Relações entre espaço e escrita na “letra” de Luiza Lobo





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Literatura e Cultura / Projeto Litcult - ano 09 - vol 1 - 2005
http://www.litcult.net/revistamulheres_vol9.php?id=911


é sempre mais difícil
ancorar um navio no espaço

Ana C., Cenas de Abril


Parto de uma “antiviagem”. Nela, o navio de Ana C. simula a narrativa que se deseja recuperada, enquanto o espaço no qual esse navio deseja ancorar é lido como metáfora do espaço de inscrição de quem narra.

Afogada e dissolvida a grande “metáfora da navegação” que engendrou a narrativa épica, partimos de uma pergunta: qual seria nesta leitura, nesta “antiviagem”, a dificuldade encontrada pelo navio – a narrativa – para ancorar no espaço de sua inscrição? Esta, a indagação norteadora deste texto. Sei, de antemão, não existir uma única resposta para nomear essa dificuldade. No entanto, uma possível senha pode ser colhida em “Antiviagens” [1] – ensaio de Luiza Lobo no qual a autora propõe “uma leitura textual a partir da noção de antipériplo, antiépica ou de uma antiviagem ou viagem ao revés”. Referindo-se à desconstrução do gênero épico e sua travessia do epos, canto “coletivo e melódico” de um povo, para uma “produção” individualizada, a autora situa essa transformação épica numa história que ostenta o seguinte roteiro:

...uma história cada vez menos totalizadora e universal, porque dedica menos espaço ao sobrenatural, ao mitológico, e mais importância aos acontecimentos factuais e à forma como são vividos, tornando-se mais fragmentária e existencial...

Assumindo colher na leitura da modernidade de Walter Benjamin sua senha, Luiza nos dá um possível ponto de partida para a “antiviagem” empreendida a partir daquela indagação inicial: qual a dificuldade da narrativa para ancorar – inscrever-se – no espaço da escrita? Uma outra possível resposta para esta dificuldade pode estar na leitura das relações entre o espaço e a escrita, sugeridas no conto “O chupador acadêmico” [2] – o 6º dentre os dez textos que compõem o volume de Estranha Aparição. Neste conto Luiza Lobo estetiza uma pesquisadora acadêmica, cujas “narinas de fera sanguinária” farejam as empoeiradas páginas de uma antiga biblioteca universitária. Em seu “passeio lodoso pelas catacumbas do saber”, essa narradora contata um velho professor que está escrevendo uma enciclopédia, e vivifica [3]

...um universo lingüístico de quando a literatura era a rainha do mundo e único instrumento de lazer, uma era dourada anterior ao rádio, ao cinema, à televisão e ao vídeo, à história em quadrinhos e ao telefone.

Acrescente-se a esses suportes materiais o computador. Com base neste cenário maquínico e virtual e naquela história fragmentada – na qual a noção de totalidade perdeu o sentido – inscreve-se a escrita da geração de Luiza. Neste cenário circula um sujeito órfão dos “valores mítico-históricos e heróicos da Idade Média” [4], dos ideais humanísticos herdados do Renascimento e das idéias de representação e de produção do sentido cultivadas pela modernidade.

Se aos modernos coube a releitura dos valores transcendentes e a representação da cena do assassinato divino, à geração da autora restou uma simulação meio “portátil”: questionar a construção dos modernos valores metafísicos e transplantar o céu – antigo espaço de leitura do conhecimento – para a tela luzidia do computador. Um “céu” no qual, convenhamos, anjos, demônios e “chupadores” virtuais “navegam” por cenários em ruínas inscrevendo o mal-estar da civilização, da pós-modernidade.

É a partir deste espaço mutante – problematizado pela intensificação da ação da letra nele “ancorar”, ou seja, inscrever-se – que se projeta a escrita contemporânea. A leitura dessa escrita pode ser ouvida no registro de uma voz representativa da própria geração da autora: “Luiza Lobo lançou um muito belo livro de contos” [5]. Com essa frase, a poeta Ana Cristina Cesar encerrava uma carta de 1976 para Cecília Londres – sua ex-professora de Letras na PUC –, que se encontrava na Europa.

O livro ao qual a poeta de A teus pés faz referência intitula-se Por trás dos muros. Depois dele Luiza lançou, além de vários textos ensaísticos, Vôo Livre (1982), Maçã Mordida (1992), Sexameron (1997) e Estranha Aparição (2000). Na orelha deste quinto livro de ficção, o poeta Sebastião Uchoa Leite ressalta uma letra erótica que incursiona por zonas de estranhamento e indefinição, recorrendo freqüentemente ao humor. Mas, segundo o poeta de A ficção Vida , é de uma certa “mescla cultural” “que Luiza Lobo retira a súmula do seu poder inventivo”.

Esse “poder inventivo” da autora pode ser aferido já no conto “As ostras do sexo” que abre o volume de Estranha Aparição. No referido texto estão presentes alguns dos procedimentos estéticos dos quais a autora lançará mão nos contos seguintes. Dentre esses procedimentos destaca-se a predileção por uma escrita que possui na visibilidade um dos principais sentidos de sua inscrição. Plugado numa dimensão sensorial que aciona inusitadas comparações, o referido texto é fortemente centrado no sentido da visão, no “efeito da cor sobre a carne”.

Mas em Estranha Aparição – conto homônimo ao título do volume – a ação do olhar parece se fazer ainda mais visível. Constrói-se no referido texto uma espécie de didática do olhar atestada no uso de lexias[6], como: “dardejado um olhar”, “chegado ao olho mágico”, “olhos eram de louco”, “os olhos lhe perfurando o cérebro”, etc. Essa ação óptica presente no livro Estranha Aparição define, em textos como “As ostras do sexo”, a utilização de um recorte vocabular voltado para artes imagéticas como a fotografia e o cinema (cena, off, Setting, flashback, luz branca vazada, the end, ending...). Além disso, destaca-se em vários contos do mencionado volume o repertório da referida “mescla cultural”, como atesta o vasto intertexto histórico e literário tecido pela autora.

A predileção de Luísa Lobo pela linguagem visual é também visível em sua produção ensaística, como lemos no texto “Globalização e Ideologia” [7]. Neste ensaio, a autora reflete acerca das mutações ocorridas nos espaços da arte e da cultura, a partir das mudanças de percepções acionadas pela reprodutibilidade técnica, cuja inscrição se dá com base na recepção óptica de Walter Benjamin e na dialética da negatividade de Theodor Adorno. Segundo Luiza,

... a linguagem visual e cinematográfica apresenta a simultaneidade de sons, falas, movimentos, que se intercalam numa ordem aparentemente aleatória e numa velocidade impressionante.

Com base nessa linguagem, o conto “As ostras do sexo” apresenta – como numa montagem cinematográfica – imagens que se multiplicam na memória, sugerindo vários epílogos possíveis no decorrer da própria narrativa. Nesta inscreve-se uma letra que possui no intertexto com Stern, Drummond, Mário de Andrade, Marx e Mallarmé, dentre outros, sua base. A autora sabe que “a literatura pós-moderna se constitui de antipériplos, intertextualidades e antiviagens” [8].

Além desses autores com os quais Luiza aciona o procedimento da intertextualidade, dois poderosos mitos passeiam de mãos dadas neste espaço textual: Eros – promotor da vida e da desordem, e Mnemosyne – a deusa da reminiscência. Mas é aqui imperativo ressaltar a incompletude memorialística (“ostras boiando na memória apagada”), e a vivência de uma afetividade e uma sexualidade que geralmente descambam para o espaço dos questionamentos existenciais. Isso é notório na conclusão do citado conto, “As ostras do sexo”, onde a narradora cala e seu discurso interrogativo compartilha com o leitor a palavra final:

Não haveria um limite, um princípio, uma medida, uma causa, um enredo, afinal? Sorvia o café e não atinava com a resposta [9]



A Aindagação final da pesquisadora parece reportar à própria dificuldade de inscrição da letra num espaço no qual as noções de “medida” e “limite” foram destruídas pelas vanguardas। Podem, sobretudo, remeter aos princípios dos paradigmas artísticos e culturais desconstruídos pelo Estruturalismo e à releitura identitária acionada pelos Estudos Culturais. Para essa corrente teórica, o espaço de inscrição da identidade passa a ser enquadrado a partir do “espaço da escrita” e não mais do “campo de visão” do sujeito. Ou seja: para Homi Bhabha importa “o lugar discursivo e disciplinar de onde as questões de identidade são estratégica e institucionalmente colocadas” [10].

Com base nessa revisão histórica, esses estudos se voltam para o passado relendo a cultura não como viagem de retorno, mas como produção sintonizada com um devir; o que possibilita indagar o que poderemos fazer com nossa tradição e não o que ela, a tradição, poderá fazer conosco (Stuart Hall). Neste olhar para a cultura e a tradição, vislumbra-se também a releitura dos valores que fundamentam o cânone literário – um dos itens mais abordados no nível temático de textos como ”O Chupador Acadêmico”.

Podemos imaginar ainda que a falta de respostas e as indagações conclusivas da narradora de “As ostras do sexo” traduzem um tempo no qual a utopia parece debilitada e o sujeito cata uma causa, uma ideologia a partir da qual possa elaborar algum trajeto político e/ou existencial. Da narrativa tecida a partir desta problemática – os limites formais das vanguardas, a desconstrução canônica, a perda do sentido, a releitura identitária e o vazio ideológico – não restou mais do que uma viagem via linguagem. Uma “antiviagem”. Ou, como diz o “Chupador Acadêmico”, existe apenas “um simulacro de mistura de enredos”.

Ancorando o navio no espaço

É justamente neste conto – “O chupador acadêmico” – onde talvez possa ser vislumbrada, com mais nitidez, uma resposta àquela indagação inicial – a dificuldade encontrada pela escrita contemporânea para “ancorar” no espaço de sua inscrição. No referido texto Luiza utiliza-se, dentre outros, dos mesmos procedimentos entrevistos em “As ostras do sexo”: o repertório da “mescla cultural”, a mixagem de imagens visuais, a inscrição de Eros e Mnemosyne como mitos a partir dos quais o discurso da narradora se constrói e o intertexto literário.

Além da intertextualidade, em “O chupador acadêmico” – como o próprio título sugere – predominam procedimentos artísticos de apropriação da escrita e de vampiragem estética, como a simulação, a colagem e o “mosaico de citações” (Walter Benjamin). A partir disso, tornam-se audíveis no texto de Luiza as vozes de, dentre outros, Castro Alves, Olavo Bilac, Jane Austen, Machado de Assis, Shakespeare e Borges.

Essas vozes são audíveis num espaço no qual à escrita impressa imprime-se forte polifonia, e à letra virtual resta a releitura do nosso vasto arquivo de formas. Com a mesma desenvoltura, a narradora transita pelo polifônico espaço físico da página e da biblioteca e pelo imagético espaço da virtualidade. É interessante confrontar as diferenças entre esses espaços pelos quais ela circula. Enquanto os espaços da página e da biblioteca se prestam a um “passeio lodoso pelas catacumbas do saber”, ao virtual cabe a seguinte descrição[11]:

A cultura lépida e ‘clean’ da informática puritana tinha colocado em desuso velhos ranços da tradição parnasiana acadêmica, com seus lápis, canetas e fitas de máquina que borravam as mãos e deixavam os dedos rançosos de manuscritos herdados de velhos eremitas.

Neste asséptico espaço da cultura lépida e clean, uma nova escrita se inscreve. Ela se produz sob as bênçãos do computador – um “novo deus Thot” (o antigo deus da escrita), possibilitando a produção de um pensamento “de forma vulcânica, não aristotélica, pós-cartesiana e não dicotômica” [12]. Assim ocorre no conto “O chupador acadêmico”: a interação entre a escrita e o espaço físico, a página literária e o espaço virtual se dão de forma eminentemente sincrônica.

Ao imergir no espaço da escrita persuasiva de Jane Austen [13], a narradora tem a “idéia” “tétrica e delirante, mas também prática e atraente” de permanecer trancada por uma noite no deserto subterrâneo da biblioteca. Desse espaço de imersão – nas entranhas da biblioteca e depois na página de Jane Austen – a pesquisadora salta para o espaço da virtualidade, ao “ouvir um cicio como de uma cobra ou de um drive sujo de algum computador com problemas de hardware” [14]. É aqui que os três espaços da escrita – delineados pela movência de quem narra e sua sensorial demanda corporal – se articulam: o físico, o literário, o virtual.

Rastreemos, pois, o roteiro espacial da narradora, após adentrar os subterrâneos bibliotecários. Mergulhada no espaço do texto de Austen, ela colhe na página literária a senha para a sua permanência no espaço físico – o subterrâneo deserto da própria biblioteca; daí ela alcança o espaço da virtualidade onde contata o “Chupador Acadêmico”, sua fome intelectual de recarga e sua predileção pelos clássicos. Após ouvir o “ruído estranho” que a colocaria em interação com o “Chupador...” [15], a personagem sentiu-se

...envolvida num manto de esquecimento, como se o seu corpo tivesse desaparecido, e apenas os olhos vermelhos e empoeirados penetrassem nas páginas das obras, numa imensa web, sem comandos de sua parte.

Sem comandos de sua parte... Enquanto no espaço físico da biblioteca e no espaço da página literária a narradora comandava, de certa forma, os atos de ler e refletir, no espaço virtual ela passa a ser dirigida pelo “Chupador”. Nestes dois primeiros espaços físicos – a biblioteca e a página do livro –, o diferencial operado pelos sentidos comanda as ações e as reflexões da pesquisadora; enquanto no espaço da virtualidade essas ações passam a ser delineadas e traçadas pelo “Chupador Acadêmico” – presença virtual sem a qual a personagem assume não mais conseguir viver.

Apesar disso, é nos personagens literários das “páginas empoeiradas dos livros”, que a pesquisadora busca a sensual “presença” daquele que “constantemente” suga sua mente, suas forças. No espaço da página escrita ela tenta diariamente contatar o “Chupador Acadêmico”. Ou seja: para “ancorar” no espaço de sua inscrição, o “navio” da narrativa contemporânea requer a sincronia entre vários e diferenciados tempos e espaços. Principalmente o espaço da página escrita – espaço a partir do qual Luíza inscreve a letra de sua Estranha Aparição.


BIBLIOGRAFIA

01 - BHABHA, Homi. “Interrogando a Identidade” in: O Local da Cultura. Trad. Ávila, Myriam. et. al. Belo Horizonte: UFMG, 1998.

02 - CESAR, Ana Cristina. Correspondência Incompleta. Freitas Filho, Armando. e Holanda, Heloisa Buarque de. (org.). Rio de Janeiro: IMS/Aeroplano, 1999.

03 - ___ A teus pés. 6ª. Ed. São Paulo: Brasiliense, s/d.

04 - LOBO, Luiza. Estranha Aparição. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

05 - ___ “Globalização e Ideologia”. In: Globalização e Literatura. Discursos Transculturais. Vol. 1. LOBO, Luiza. (Org.). Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.

06 - ___ “Antiviagens”. In: Revista Terceira Margem. Viagens & Outros ensaios. Revista da Pós- Graduação em Letras da UFRJ. Ano IV/V – nº 5-6 – 1997-1998.

07 - ___ “A der(rota) na metáfora da navegação, de Jorge de Lima a Ana Cristina Cesar”. In: Perspectivas – Modernidades. Rio de Janeiro: UFRJ, 1988.

08 - SANTOS, Roberto Correia dos. e SZKLOS, Gilda Salem. “Leitura em fragmentos” in: Perspectivas 2. Ensaios de Teoria e Crítica. Rio de Janeiro: UFRJ, 1985.


NOTAS


[1] Lobo. Terceira Margem. 1997-8. p. 80.
[2] Lobo. Estranha Aparição. 2000. p. 83-101.
[3] Lobo. Op. Cit. 2000. p. 94.
[4] Lobo. Op. Cit. 1997-8. p. 80.
[5] Cesar. Correspondência Incompleta. 1999. p. 133.
[6] Aqui lida como espaço de possibilidades para a construção do sentido.
[7] Lobo. Globalização e Literatura. 1999. p. 39.
[8] Lobo. Op. Cit. 1997-8. p. 84.
[9] Lobo. Estranha Aparição. 2000. p. 32.
[10] Bhabha. O local da cultura. 1998. p. 81.
[11] Lobo. Op. Cit. 2000. p. 91.
[12] Lobo. Op. Cit. 1999. p. 40.
[13] Da autora da Ilustração inglesa, Luiza traduziu o romance Persuasão.
[14] Lobo. Op. Cit. 2000. p. 95.
[15] Lobo. Op. Cit. 2000. p. 99.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Oswald Hotel

Um canibal compõe a balada
do pau brasil e deste hotel
cujo mármore claro refrata
o rosa neon da esplanada

Antigos funcionários chuvosos
apagam com bocegos a noite
e a mancha que o espelho tece
aos olhos passantes no hall

No ap, o sonho voa outra vez
das Letras de Ana, Caio, Eli
da prova dos nove do carpete
puído de onde brota o sol

São Paulo, 1998

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Proust tem razão ou Godard que me desculpe







Uma versão desta crônica foi publicada em
http://www.substantivoplural.com.br/prosa/


Para Tetê Bezerra (RN) e Leonardo Gandolfi (RJ)

I
O rei continua vivo. Que bom poder ouvir, após 50 anos de carreira, a voz intacta do Roberto. Enquanto alguns dos nomes mais representativos da sua geração ostentam um audível cansaço pendurado nos timbres e tons de suas vozes, o rei encara - de peito literalmente nu - a tarde de sábado na TV. Encara e (en)canta. Canta a plenos pulmões, sem pose nem play back. Com ele, canta o país inteiro. O país para o qual ele serviu de trilha sonora nas cinco últimas décadas, mesmo quando não era de bom tom gostar de suas canções.

II

Agora é fácil. Durante a ditadura militar, na década de 70, eram poucos os jovens politicamente corretos que assumiam ouvir o rei. Plugada, Maria Bethânia sacou a eletricidade da onda e acionou a Tropicália. Mas, a maioria das pessoas de esquerda e grande parte dos intelectuais eram contra. Ouvir as canções do Roberto não era bacana ou cult como passou a ser depois. Na esfera literária, conta-se nos dedos os autores como Ana Cristina Cesar que assumia descaradamente: "Ouça muito Roberto: quase chamei você mas olhei para mim mesmo etc. Já tirei as letra que você pediu" (Correspondência Completa).

III

Guiados pela emoção, Roberto e o Brasil continuam cantando "Como é grande o meu amor por você" e "As canções que você fez pra mim"। Seus versos fazem parte do nosso imaginário afetivo e social. Conheço vários brasileiros que, como eu, demarcam alguns dos acontecimentos marcantes de sua vida em sintonia com o disco anualmente lançado pelo rei em determinado contexto. Dependendo da canção ou da capa do vinil, eu sei onde morava, com quem andava, os bares frequentados, os carros da vez, o que fazia naquela fase da vida... São tantas emoções... Um dia, quem sabe, escreverei sobre as noções de luz e sombra na obra do rei. Porque ecoam até hoje em mim, versos como estes: "Fui abrindo a porta devagar, mas deixei a luz entrar primeiro" ou "Há sempre uma sombra em seu sorriso" ou "...depressa em minha vida anoiteceu e eu não vi você" ou "Qual sombra da noite de um céu nevoento" ou "Em compensação o anoitecer, a tempestade e a dor" ...

IV

Nunca li Proust (nem sei se dará tempo ler); mas tenho alguns amigos que leram. Com eles aprendi que, para o autor de Em busca do tempo perdido, a nossa memória encontra-se fora de nós: nos cheiros dos quartos abafados, no aroma que a chuva anuncia, no chá cuja temperatura retorna com algum momento vivido... Ver Roberto nesta tarde de sábado, trouxe-me de volta às trilhas de algumas cidades e pessoas por que passei. Fez-me ver como Proust tem razão: a memória é principalmente algo externo. Parte da minha memória está no rei. Figurações da nossa história antiga (minha e do país) foram acionadas pelos primeiros acordes de sua melodia presente. Fiquei emocionado com a enxurrada de pensamentos, imagens e percepções que a voz do rei acentua num corpo que armazena sua música. Não é uma questão cerebral, please. De cabeça, é fácil. Difícil é acender o imaginário coletivo. Dialogar com o corpinho pragmático e esperto que o sistema automatiza a cada dia, a cada ano, a cada década, tornando robôs e clones a maioria dos que seguem repetindo os mesmos gestos, as mesmas falas, usando as mesmas marcas e dizendo sim sim sim...

V

O canto do rei aciona o pé e o pau. Desnuda corações e veias... É outra coisa, topa? É "da cabeça até a ponta do dedão do pé", como canta ele num hit da Jovem Guarda. Como diria Tetê Bezerra, Godard que me desculpe; mas o Histoire(s) du cinema, no MAM, só amanhã. Se o rei não aparecer de novo neste horário na TV.

domingo, 22 de novembro de 2009

Projeto Seis e Meia: o retorno





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Texto publicado na Revista Suíte Rio n 6, Rio de Janeiro, 2004

Criado no cenário militar do final dos anos 70, quando o corpo da geração “odara” pedia para cantar e dançar, e quando ainda havia no ar alguns roteiros utópicos de projetos grupais, o PROJETO SEIS E MEIA é um dos marcos mais importantes da Música Popular Brasileira. Assim como a praia de Ipanema – que ganhou da Prefeitura do Rio de Janeiro o status de “patrimônio” a ser preservado –, o PROJETO SEIS E MEIA transformou-se numa “instituição” nacional e, como todo projeto produtivo, requer preservação e re-edição.

A praia de Ipanema e esse projeto têm muito em comum. Batizada com o nome do referido bairro, a carnavalesca Banda de Ipanema e o SEIS E MEIA possuem um mesmo criador: o advogado Albino Pinheiro (1934 - 1999). Destacado nos meios artísticos e culturais cariocas pela sua capacidade de criar e produzir, Albino entrou para a crônica cultural da cidade do Rio de Janeiro como um dos personagens que mais sintetizam o espírito carioca; seja pela sua postura comprometida e empreendedora, seja pela sua alma carnavalesca e festiva. A música, a dança, a festa moviam a vida e as produções de Albino Pinheiro.

Movido pela multiplicidade de ritmos musicais que sempre embalaram o Rio de Janeiro – onde o samba e a marchinha nivelam praticamente tudo, musical e socialmente falando –, Albino lançou mão desse vasto cardápio musical da cidade, e a partir do seu público potencial criou o PROJETO SEIS E MEIA. Objetivando uma melhor divulgação da Música Brasileira menos veiculada pela mídia, o projeto marcou pela ousadia de juntar os estudantes, os trabalhadores, as classes mais abastadas e as camadas mais populares em shows de altíssimo nível, após o expediente de trabalho, a preços populares. Esses shows foram responsáveis pelo lançamento de novos talentos nacionais, além de incrementar a consolidação ou o resgate da careira de grandes cantores, compositores, músicos e instrumentistas.

Alguns desses artistas tiveram suas obras resgatadas do esquecimento; outros, foram incentivados na fase inicial de suas carreiras. Dentre os artistas que “recheavam” o cardápio musical do PROJETO SEIS E MEIA, destacam-se grandes nomes da MPB, como: João Bosco, Clementina de Jesus, Nara Leão, Nana Caymmi, Edu Lobo, Nelson Cavaquinho, João Nogueira, Sandra de Sá, Marlene e Boca Livre, dentre outros.

Seis e Meia Versão Século XXI

Ao adentrarmos o novo milênio, somos testemunhas de uma “enxurrada” de regravações de canções, de programas na TV em formatos acústicos, antologias musicais, remakes de novelas e até releituras de enredos de escolas de samba. Sinal dos tempos: reciclar o passado e seus arquivos tornou-se imperativo para os produtores de arte e cultura. Nunca os retornos foram tão presentes em nossa cultura.

Objetivando reativar o SEIS E MEIA a nível nacional, além de homenagear a figura de Albino Pinheiro, o seu criador, a nova versão do projeto será coordenada pela produtora Jussara Santos. Para a realização dessa hommage, Jussara pretende realizar e exibir, antes dos shows, um vídeo-documentário narrando a vida do produtor carioca que morreu aos 65 anos. Com vasta experiência na produção de shows e eventos nas áreas da cultura e do entretenimento, a referida produtora pretende relançar o projeto no Rio de Janeiro, optando pela cidade de São Paulo como local de estréia; além de possibilitar a abertura de franquias para as outras cidades do Brasil.

Nesta versão século XXI, o SEIS E MEIA será realizado no período de Agosto de 2004 a Maio de 2005. A programação dos shows será semanal, sendo que nas três primeiras semanas de cada mês serão feitas apresentações de artistas locais e nacionais. O novo projeto prevê, para cada show, uma múltipla estrutura de divulgação e, mediante a avaliação do público, os artistas participantes concorrerão a um prêmio em dinheiro. O público também será premiado: além de voltar a ver os shows dos grandes nomes da MPB e de conhecer os novos talentos que o projeto se propõe a revelar, terá novamente ingressos a preços populares, com tarifas promocionais para estudantes e maiores de 65 anos.

Num tempo no qual os musicais foram banidos da TV, a maioria das rádios continua tocando apenas a descartável música de cada dia, e dos festivais de música só restaram os antigos medalhõesparticipantes, nada mais salutar do que este retorno do PROJETO SEIS E MEIA। Assolados pela falta de sutileza e de qualidade das canções que diariamente machucam nossos tímpanos, os ouvintes brasileiros agradecemos.

sábado, 21 de novembro de 2009

Nietzsche e a verdade pelo retrovisor


Seminário apresentado no curso de doutorado As Controvérsias da Modernidade ministrado pelo prof. Dr. Eduardo Portella, Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 1999.




Proposta do Seminário


Diz Hans-Georg Gadamer que foi Nietzsche quem “nos ensinou a duvidar da fundamentação da verdade na autocerteza da própria consciência”.




Atentando para o recorte vocabular a partir do qual se elabora a assertiva de Gadamer acerca de Nietzsche, percebe-se a inscrição de três palavras cujos significados são complexos e bastante questionáveis na contemporaneidade: fundamentação, verdade e autocerteza. Não é por acaso que essa trindade vocabular vem associada ao vocábulo duvidar - um dos verbos mais conjugados no discurso da pós-modernidade.


Segundo o italiano Vattimo, Nietzsche é o filósofo a partir do qual nasce a pós-modernidade. A leitura de sua obra possibilita, dentre várias outras interpretações, uma crítica da racionalidade ao romper com a tradição filosófica centrada na razão instrumental. Trata-se de uma crítica ao conhecimento construído a partir de Sócrates e Platão (daí porque o autor retoma as doutrinas dos filósofos pré-socráticos - Parmênides, Heráclito... - que valorizavam a arte). Com Nietzsche, a razão é questionada. A partir de sua escritura, Dona Razão passa a ser suspeita.


Essa retomada dos autores pré-socráticos e esse questionamento da razão possibilitam a Nietzsche celebrar uma estetização da existência. Nela estão incorporadas outras instâncias do saber, como a dimensão artística, exemplificada, dentre outros, na música de Wagner e na escrita dionisíaca de Schopenhauer. Essa celebração estetizante da vida põe em questão os conceitos aos quais se refere Gadamer, sugerindo outras possibilidades de leitura da arte e da própria vida.


Se Nietzsche nos ensina a duvidar da fundamentação da verdade... é porque ele critica a verdade como valor supremo; ele elabora a crítica do valor que se atribui à verdade. Nesse sentido, ele sugere que não haveria algo a ser encontrado: a verdade poderia ser “interpretada” como uma perene possibilidade criativa.


Segundo Vattimo, já que a noção de verdade não subsiste e o fundamento já não funciona, dado que não há nenhum fundamento para acreditar no fundamento, e, portanto, no fato de que o pensamento deve “fundar”, torna-se necessário procurar uma outra via para lermos a contemporaneidade. Isso porque os conceitos produzidos pela modernidade já não dão conta da nova subjetividade que se constrói, por exemplo, a partir de um saber mediado pela simulação. Esse saber pode ser produzido com base numa semiótica dos afetos e das percepções, ou numa espécie de sintaxe dos sentidos. Seria um saber que não exclui os elementos dos sonhos, o discurso dos instintos e das paixões, as regiões dos desejos. Um saber com sabor, no sentido barthesiano, e que objetiva uma “vontade de potência”.


Perdidas as ilusões, a idéia da aura, o olhar olímpico e a plenitude de um eu agora metonímico, resta a certeza de lidarmos com uma verdade produzida a partir de uma construção lingüística (segundo Foucault, Nietzsche é o primeiro filósofo a pensar a questão da linguagem). Nietzsche questiona a validade de tais conceitos (verdade, certeza, fundamento...) ao perceber que a produção do conhecimento e da verdade – fundamentados nas leis da linguagem – só se torna viável por meio de uma “série de metaforizações” (Vattimo).


Como meio que possibilita a criação de conceitos, a língua não consegue atingir a “essência” das coisas, na medida em que a própria linguagem articula-se – arbitrariamente – como um sistema sujeito a regras fixas. Tais regras não dissimulam as ambigüidades oriundas de toda criação lingüística, excluindo o que de silêncio e fenda e falha resiste em cada discurso. Como diz Foucault, a linguagem não diz exatamente o que diz. E isso possibilita ao leitor /ouvinte a audição de um discurso outro que se constrói “sob as palavras”. Um discurso que, no dizer do filósofo francês, “seria mais essencial”.


Já as coisas não parecem tão necessariamente presas às regras e aos valores, como apregoam alguns crédulos. Elas surgem sintonizadas com um devir que parece necessitar mais de atenção que de julgamento, mediante o que anuncia de possibilidade e potência. Um devir de olho na ação e na reação de formas e forças. Sabe-se que esse devir não apresenta a “segurança” nem a “soberania” patrocinadas pelo projeto da metafísica. Viria daí o temor por algo que, na sua gênese, não anuncia a continuidade de uma história caracterizada por elementos seqüenciais, determinantes, lineares?


a verdade no arquivo


Para criticar a verdade como valor superior, Nietzsche faz o elogio da aparência e do fim das dicotomias (verdade-ilusão, essência-aparência, certo-errado...). Sua crítica possui como base a leitura dos valores morais calcados em dualidades.


Segundo Roberto Machado, em Nietzsche a verdade não tem como critérios a evidência e a certeza; tem como condição um esquecimento e uma suposição. Nessa leitura nietzschiana, a verdade é lida como uma ficção necessária que torna possível as relações entre os homens. O que Nietzsche critica em sua filosofia é a noção de valor atribuída à verdade. Por isso ele propõe um conhecimento elaborado a partir de uma pluralidade de valores. Porque o juízo de valor é mutante, contextual. Depende de certos condicionamentos sociais. Sua leitura sugere que os valores não são eternos, mas históricos. Resultam de uma produção que se dá a partir de interpretações. Os valores não são fatos.


A verdade é produzida em bases morais, e a moral é um sintoma relacionado à linguagem simbólica das paixões. Em Nietzsche, a genealogia da moral demonstra os danos que a mesma pode causar ao indivíduo, gerando o niilismo e suas principais figuras: o ressentimento, a má consciência e o ideal ascético. Essa crítica nietzschiana aos valores e à Dona Moral busca superar a metafísica dos valores. Para isso o filósofo propõe uma outra perspectiva para além das dicotomias; o que evidencia um pensamento voltado para o disfarce e a superfície como instâncias produtoras de figurações.


Esta releitura da verdade e este “duvidar” “na autocerteza da própria consciência” têm a ver com a morte de Deus anunciada por Nietzsche. O que o filósofo sugere com o assassinato divino é a produção de um novo conhecimento (não para conhecer a verdade, mas para inventá-la, no sentido de dar forma, estruturar, interpretar), e a construção de novos valores que tenham o homem – e não Deus – como referencial. Isso nos remete à leitura empreendida por Deleuze, segundo a qual em lugar da descoberta da verdade surge uma possibilidade de “interpretação”, de “avaliação”, fixando-se o sentido “parcial e fragmentário”, sempre voltado para a pluralidade. Nesta leitura deleuziana, a construção do sentido não acontece em sintonia com as noções de unidade e de totalidade que tanta sustentação deram para o projeto da modernidade.


Também é como uma “interpretação” que Foucault lê não apenas a produção de Nietzsche, mas também os textos de Freud e Marx. E para justificar sua leitura, o autor de “As palavras e as coisas” diz que a partir do século XIX, com as “interpretações” da citada trindade, transformou-se a natureza do símbolo, modificando-se as formas de interpretá-los. Para o filósofo francês,


os símbolos escalonaram-se num espaço mais diferenciado, partindo de uma dimensão do que poderíamos qualificar de profundidade, sempre que não a considerássemos como interioridade, antes pelo contrário, exterioridade.


A leitura dessa “dimensão” simbólica pode ser exemplificada na produção de uma cultura atualmente voltada para a visualidade e baseada nos amplos espaços horizontais da superfície (do vídeo à fachada descartável da arquitetura pós-moderna). É como se Foucault dissesse de uma escritura que inscrevesse os abismos da superfície, denunciando que a profundidade não é senão um jogo.


Neste jogo alguém morre. E esse alguém é nada menos que a divindade. Morto Deus, os “homens superiores” substituíram os valores divinos pelos humanos. Como não aconteceu nenhuma “transmutação” valorativa (os valores foram apenas substituídos), estes homens são considerados niilistas: defendem a vitória comum das forças reativas e da vontade de negar (Deleuze, “Nietzsche”). Esses homens são considerados escravos, apesar de serem maioria. Eles não utilizam as armas dionisíacas acionadas por Nietzsche: o riso, a dança, a brincadeira...


A morte de Deus na história do saber possibilita ao homem a construção do seu arquivo de formas. Formas estéticas e culturais. Formas que dialogam com o corpo e com a terra. Neste arquivo histórico e ideológico, o saber deixa de ser calcado em verdades teológicas, e isso serve para que o homem encare o seu projeto metafísico como algo aberto (uma “racionalidade aberta”), falível, passível de mutação.


Com base neste projeto, podemos continuar duvidando da “autocerteza” de nossa “consciência”. Nietzsche nos ensinou também que, ao invés de crermos em símbolos originais que postulam uma verdade, podemos vivificar uma “interpretação”, cujo princípio é o seu próprio “intérprete”. Ou seja: ninguém morreu. Se bem que esse “intérprete” encontra-se bastante fragmentado, anda esquizofrênico, como admite Sérgio Paulo Rouanet. Esse intérprete pós-moderno é capaz de escrever, num muro qualquer do planeta, o seguinte grafite: Deus está morto, Marx também e eu não estou me sentindo muito bem.




BIBLIOGRAFIA




Deleuze, Gilles. Nietzsche. Trad. Alberto Campos. Lisboa: Edições 70.


Foucault, Michel. Nietzsche Freud & Marx. Theatrum Philosoficum. Trad. Jorge Lima Barreto. 4ª ed. São Paulo: Ed. Princípio, 1987.


Machado, Roberto. Nietzsche e a verdade. Rio de Janeiro: Graal/ São Paulo: Paz e Terra, 1999.


Vattimo, Gianni. O fim da modernidade. Niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. Trad. Maria de Fátima Boavida. Lisboa: Editorial Presença, 1987.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Tramando Mar

O mar faz barulho porque não tem filho


Trouxe-me o mar
e tudo o que nele há:
peixe pedra alga e algo
tecido na trama do tempo

Trouxe-me o lar
numa travessia corpórea
que me faz mergulhar
em costas terrestres

Trouxe-me o ar
de sua graça marítima
e o desejo mirante
de ser rio, onda


Natal, 1998

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Renato Cordeiro relê João do Rio




Criada em 1956 no Rio de Janeiro, a coleção Nossos Clássicos introduziu no mundo das Letras muitos dos leitores e pesquisadores literários produzidos na segunda metade do século XX no Brasil. Através dos seus mini volumes de tons cinzas sob letras azuis, a coleção contemplou mais de uma centena de autores díspares como Graciliano Ramos (apresentado por Antonio Cândido) ou Fernando Pessoa (lido por Adolfo Casais Monteiro), além de outros escritores e pensadores brasileiros e portugueses.


Relançada através de um projeto gráfico com novas letras e cores, num formato bem mais “generoso”, a coleção está de volta pela mesma editora Agir. Neste retorno, publica antigos nomes como José de Anchieta pela lente de Eduardo Portella, e contempla clássicos inusitados como o cronista, tradutor e conferencista João do Rio, apresentado pelo professor e ensaísta Renato Cordeiro Gomes. Sua antologia é precedida de um ensaio – “João do Rio: o artista, o repórter e o artifício à entrada de uma modernidade periférica”. Nesse texto são traçadas, dentre outros, as figurações do escritor e a estetização existencial que ele constrói tendo a cidade como um dos seus principais “personagens”.


Inscrito em poucas páginas de nossa historiografia literária, João do Rio é relido pelo ensaísta de João do Rio: vielas do vício, ruas da graça (1996) como um autor moderno. Nessa releitura, o autor é inserido numa linhagem de escritores cujo trânsito estético contempla vários gêneros, sejam eles o jornalismo, a crônica ou a ficção. Sua bibliografia contempla mais de 20 títulos, onde se destacam formas múltiplas como o romance, o conto e o teatro (sua peça Eva, de 1915, recebeu crítica elogiosa de Oswald de Andrade no jornal O Pirralho).


Construídos na fronteira entre a ficção e o registro mais cotidiano, esses textos são considerados híbridos. Suas formas não obedecem a quaisquer cartilhas ou delimitações estéticas. Exemplo desse hibridismo encontra-se em “O dia de um homem em 1920”. Nesse texto o autor estetiza o cotidiano maqüínico do início do século xx no Brasil, junto às reportagens e crônicas coligidas em A alma encantadora das ruas. Publicado em Paris em 1908, esse texto inscreve as conexões entre a cidade (Rio de Janeiro), suas diferentes linguagens ausentes dos dicionários e a arte de flanar (“Flanar é a distinção de perambular com inteligência...”).


Por meio desse artifício eminentemente moderno e centrado principalmente na ação do olhar, João conecta os elementos lingüísticos e visuais de diferentes espaços urbanos de um Rio de Janeiro que é lido como uma “metonímia do Brasil”. Centrado nessa visibilidade que contempla alta taxa de oralidade, o autor descreve o Rio e suas margens, narra a chegada de estrangeiros à capital do país e inscreve as modern girls, sem esquecer as mulheres mendigas. Nessa conexão, ele demonstra que as ruas – e seus flâneurs – merecem bem mais reflexão que a função referencial apresentada pelos dicionários ou o balizamento numérico e objetivo proposto pelos projetos urbanísticos.


De ouvido atento às linguagens do seu tempo, o autor classifica e lê a rua como um espaço no qual a língua se transforma, “... criando o calão que é o patrimônio clássico dos léxicos futuros”. Essa escrita estabelece um dos primeiros testemunhos das relações entre a cidade, a cultura e suas produções estéticas e inscreve o gestual mutante que compõe a identidade multifacetada do homem moderno. Essa letra do presente antenada com os “léxicos futuros” pode ser aferida em fragmentos de “A rua”. Nesse texto, um tom levemente benjaminiano ensina que “flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ver o vírus da observação ligado ao da vadiagem...”.


A “letra” de João do Rio testemunha o registro de grandes mudanças culturais no espaço moderno. Sua leitura demonstra como as artes “nobres” - a música, a pintura, a literatura... - acentuaram, a partir do início do século XX, o diálogo com a fotografia, a conferência, a correspondência e a crônica, dentre outras formas plugadas no ritmo cada vez mais acelerado e veloz que a percepção urbana da “modernidade periférica” criou.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Identidades a Céu Aberto









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Texto publicado no Forum de Literatura Brasileira Contemporânea, UFRJ, 2007
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A Inscrição Identitária na Pós-Modernidade



Impressões Digitais


O presente ensaio levanta algumas questões acerca da identidade na literatura contemporânea, e tenta inscrevê-la com base na leitura do livro A céu aberto (1996) – 7º romance do escritor gaúcho João Gilberto Noll.


Nosso aparato teórico elege as idéias de Stuart Hall e Homi K. Bhabha, dentre outros, partindo da noção de que, na pós-modernidade, as identidades encontram-se em crise e que, como adverte Hall, o sujeito contemporâneo é composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas [1]. Tal assertiva parece sintonizada com a fala do narrador de A céu aberto, ao admitir-se constituído de pequenas necessidades quase sempre contrariadas [2] .


A leitura dessa travessia contraditória e contrariada ocorre num contexto demarcado pela supremacia de uma cultura calcada no sentido da visão, em detrimento da oralidade. Essa cultura do olhar traz em seu bojo uma forte reverência ao corpo como instrumento do saber e da informação, e pode ser expressa no discurso por vezes incrédulo do narrador:...sentia sim no meu corpo inteiro uma descrença brutal em tudo o que eu passara a ver...[3].


Uma certa lucidez da forma aflora do discurso desse narrador e da sua ação do olhar. Conectado a essas questões do olhar e da forma, A céu aberto estetiza uma realidade que, de tão completamente estetizada, tende a esvaziar o signo estético; o que sugere vivenciamos, nesse início de milênio, uma espécie de grau zero da estetização.


Nesta cena estetizante, o signo imagético descarta as tentativas de reinvenção do belo, de resgate do sublime; o escrevente (Barthes) perde a aura de gênio, de grande espírito (Jameson) que pairava no Romantismo e mesmo em alguns segmentos da nossa modernidade tropical. Esse escrevente, assim como o narrador de A céu aberto – sem aura nem ideologia – inscreve-se num contexto caracterizado pelos deslocamentos de centros e discursos, deslocamentos esses sugeridos pelas novas demandas do sujeito contemporâneo.


Além dessa descentralização, outros elementos caracterizam este contexto: a construção de uma subjetividade maquínica produzida pelos processos virtuais e pelas tecnologias da inteligência; a construção de um saber baseado na simulação, na virtualidade; a consciência da estrutura móvel e mutante das identidades contemporâneas (claramente assumida pela voz que narra: ...quando voltei a vê-lo ainda em plena guerra ele já era outro...[4]) e a convivência com homens traduzidos – aqueles que romperam fronteiras “naturais”, adquirindo uma cultural formação híbrida e uma identidade não menos. Típica do narrador de A céu aberto.


Vivenciando essa estrutura móvel e mutante da identidade no atual contexto, o sujeito contemporâneo perdeu a ingenuidade e a crença em Dona Moral. Seu sonho não evoca nenhuma Pasárgada para onde ele possa evadir-se. Do Império do Sentido já não espera, esse sujeito, nenhuma senha dada de antemão. Como saída, ele aposta na estetização do sujeito. Mas, num tempo no qual a noção de valor e o conceito de arte parecem suspensos ou em aberto, como lidar com o discurso e suas representações simbólicas em narrativas como A céu aberto?


Explorando ao máximo os recursos imaginários e o sentido da visibilidade, rompendo com os padrões lingüísticos e as noções de gênero, o autor revela que escreve motivado por uma dor vivenciada “organicamente”. A partir disso, seu objetivo estético é bastante definido, como elucida sua na Folha de São Paulo (08/07/93):

O que me interessa na ficção é essa destilação de algo que ultrapasse a ação. A pele poética do texto ficcional é aquilo que de alguma forma redime essa canga da ação que é colocada no pescoço do narrador.

A partir desse desejo de redimir a “canga da ação” imposta a quem narra, Noll erige narradores múltiplos e constantemente deslocados, ajudando-nos a ler e reconstruir o imaginário do nosso tempo. Na pele poética de sua prosa parece impossível capturar sentido, delimitar roteiro, caracterizar personagem ou mesmo demarcar um foco narrativo preciso. Resta-nos cartografar o espaço – real ou imaginário – no qual esse narrador-protagonista vivencia sua odisséia no campo de batalha, por mares ensolarados, ...cobertos de neblina, por rios os mais variados..., naqueles países ou cidades que apresentavam menos perigo para expatriados como ele [5].


E de qual tempo trata Noll? Qual dimensão temporal prevalece num texto no qual, por vezes, os verbos conjugam-se – num mesmo parágrafo – em tempos ou mesmo em pretéritos diferentes? Será que a imaginária odisséia dessa personagem efetua-se, feito a de Ulisses, num único e vertiginoso dia, ou estende-se por dias, meses, anos, como no trajeto memorialístico de Riobaldo? Não importa. Seja em qual tempo estiver, o narrador de A céu aberto viaja. Desloca-se. Cruza fronteiras entre o referente, o imaginário, o onírico e o virtual. Ele já não funda algo novo porque não crê na noção de fundamento. Como viajante, relê os signos de sua travessia, na busca de inscrever-se.


Feito os sobreviventes dos Cenários em Ruínas [6], o narrador percorre sua deriva no vazio, sem o menor dramatismo. Assim, ele converte toda angústia em pura indiferença. Estruturado sobre esses sentimentos, revela: ...fui me aproximando pisando o medo de uma perna e a indiferença de outra... [7]. Mas, olhando bem, até que nem é tão indiferente assim... Dependendo do espaço, o narrador arrola outras palavras. Nas novas imagens que lê, parece procurar o verbo que deseja narrar. Busca livrar-se da escravidão – no sentido de não possuir um discurso verbal –, e por isso refaz, desterritorializado, um percurso imagético de onde recolhe fragmentos sonoros, de olho na paisagem mutante. De passagem, assume: ... a céu aberto arranco de mim um destemor e corro... [8]. Destemido e veloz, esse narrador transita por múltiplas fronteiras e cria possibilidades outras de leituras. A que faremos a seguir é apenas uma dentre as muitas sinalizadas pelo texto. Tipo um 3 x 4 da identidade de quem narra.


O 3x4 da fotografia


Se nos guiarmos pela estrutura poética da epígrafe – Foi ontem à noite. Aqui estou e seja em mim esta manhã –, tudo parece se passar num único e vertiginoso dia. Mas nada podemos afirmar: escrevemos sob o signo do descentramento. Signo do deslocamento de um espaço-tempo nos quais lemos uma sensação de desorientação, um distúrbio de direção [9] que impossibilita a localização de um espaço ou centro determinados.


Adentrando o texto, uma Escola do Divino questiona a beleza de Deus e a possibilidade de contemplação dessa beleza. Nada mais contemporâneo que esse começo: rememorar o eco dos fonemas divinos em meio a humanos (embora nem tanto humanísticos assim) fragmentos visuais. Nessa Escola do Divino inscreve-se a letra que busca suprir a falta, reler a narrativa da queda (O Gênese e Camus), a nossa condição provisória frente a um real cujo acesso só pode ser mediado por metáforas – como nos ensina a lição nietzscheana, ao lecionar a morte de Deus.


Morto Deus e o conceito de plenitude do Eu, resta ao sujeito vivenciar sua humana condição de busca. A perene busca do outro. Se todos os reflexos de um Eu pleno – que vislumbrava sozinho a si mesmo – foram apagados, cabe ao narrador apostar na dimensão da alteridade, de um outro que [10] ...olhará com tal desfaçatez o que eu mesmo não posso ver em mim que chegarei a qualquer coisa como um soluço um arroto um arrepio.


Para chegar a isso, o narrador opta pelo olhar alheio e diz: De mim é tudo tão incerto... ...ainda não sei que idade me dar... Ele sabe apenas que através do outro – seu olhar, sua linguagem –, a inscrição identitária torna-se viável. Mesmo que essa viabilidade seja construída por roteiros meio tortuosos... Feito o roteiro da peça que uma personagem escreve sobre dois idiotas que se encontram uma noite. Trata-se da história de um sujeito que perdeu a memória de si mas guarda na mente todos os acontecimentos do mundo... O outro, o contrário: não tem memória do mundo, mas seu arquivo emocional é vasto.


Os dois falam tanto sobre seus fluxos próprios de memórias que jamais coincidem verbalmente. Uma outra personagem tenta apartá-los e termina lambendo as manchas da urticária que toma conta da pele de ambos... O mais interessante é perceber que de tais manchas – tipo memórias da pele – emana uma força inusitada para quem as lambe... Essas manchas a partir das quais a terceira personagem ganha força, surgem como metáfora de uma possível implosão lingüística do sujeito sem fala. A impossibilidade ou contenção da fala as elabora, tensionando uma situação que só se resolve via linguagem verbal... Se bem que a narrativa cobra, além dessa linguagem, ...um fato tão ostensivo na sua crueza que nos cegue nos silencie e que nos liberte da tortura da expressão... [11]


Esse desejo de expressar-se e inscrever-se através do outro é expresso por Bhabha[12] da seguinte forma: O desejo pelo outro é duplicado pelo desejo na linguagem, que fende a diferença entre eu e outro, tornando parciais ambas as posições, pois nenhuma é auto-suficiente. Consciente dessa problemática, o narrador ouve atento o sujeito com o qual interage lendo, no outro, seu deslocamento, a falta de sintonia. ...existia como que uma membrana entre o seu entendimento e as minhas palavras..., ou ainda: ...o seu olhar não palpitava como quando se tem curiosidade pela expressão alheia, parecia retilíneo como uma seta ao encontro da minha fala...[13] O narrador procura não dramatizar demais esse lance de guerra e do desejo de sintonia com a alteridade. Num acesso romântico exagera no sentimentalismo e, na relação com o outro, procura um sinal que possa salvá-lo... de sua própria existência e assim pudesse salvar a si mesmo...


Cônscio ainda de que essa salvação não acontece pela via da semelhança, já que esta pode embaçar ou deformar sua leitura, o narrador avisa que no campo de batalha não há espelho. Na cabine do navio no qual ele viaja – como homem traduzido – também não entrava espelho, já que o borgeano comandante não suportava os espelhos porque o deformavam todo... Resta o desejo do sujeito que vivencia a diferença, buscando garantir uma vida fora do espelho.


Perdida a referência narcísica e chegado o fim da individuação, resta-nos o problemático e sedutor exercício da alteridade. O sujeito inscrito a partir de outra face. Uma face na qual o olhar – o sentido mais requisitado na contemporaneidade, e não a audição que engendrava a literatura nos seus primórdios – indaga, questiona, constrói. Olhar que solicita roteiros a serem construídos: tudo nele me pedia um caminho – reconhece o olho de quem narra.


Referindo-se a essa necessidade de reconhecimento da diferença, o narrador afirma e indaga: é disso que somos feitos, de precisar, precisar, não ouviu essa história ainda não?[14]A história contemporânea tenta dar conta da inscrição dessa diferença, procura inscrever a identidade fora das filosofias metafísicas de auto-suspeição, nas quais um eu permanentemente angustiado parecia prisioneiro de si mesmo. Sobre essa problemática diz Bhabha: [15]

O que permanece profundamente não-resolvido, até rasurado, nos discursos do pós-estruturalismo é aquela perspectiva de profundidade através da qual a autenticidade da identidade vem a ser refletida nas metáforas vítreas do espelho e suas narrativas miméticas ou realistas.

Rasuradas essas narrativas verticais, resta a inscrição da letra, a pedagogia do olhar. Resta a sombra do outro que tomba sobre o eu, que delineia a face, e engendra a identidade de quem lê ou narra. Acerca do tempo e do espaço nessa narrativa trataremos a seguir, atentando para a projeção de uma outra ordem de vigília, a partir da qual o narrador projeta sua identidade.
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do tempo


O exercício da alteridade requer um olhar adulto que releia o pretérito, desvelando a ingênua harmonia e o sentido de plenitude predominantes no passado. A partir disso, o narrador projeta-se existencialmente. Essa releitura do pretérito é feita através de um jogo de diferenças, de uma justaposição de elementos, gerando uma multiplicidade de idéias.


Impossível de realizar-se na ausência do outro, quem relê inscreve-se feito um moto contínuo, em permanente transformação, levando em conta um devir que parece necessitar mais de atenção e menos de julgamento, mediante o que anuncia de possibilidade e potência. Um devir sintonizado com a construção de um tempo futuro no qual o sujeito lê-se pertencendo a outra esfera que não requeresse saudades ou cuidados ou culpas.[16]


A construção desse futuro está diretamente relacionada às experiências de ordens natural e social presentificadas pelo sujeito. Acerca dessa relação entre o devir e o tempo presente, ouçamos Norbert Elias [17]:

... a noção de presente caracteriza a maneira como o tempo é determinado por um grupo humano vivo e suficientemente desenvolvido para relacionar qualquer seqüência de acontecimentos - seja ela de ordem física, social ou pessoal - com o devir a que esse mesmo grupo está submetido.

Embora possamos relacionar esse devir ao presente vivificado pelo narrador, imaginamos que sua viagem como instância de construção identitária aponta roteiros atemporais. Estes, tanto podem resgatar fragmentárias imagens que remetem às raízes do narrador, como anunciar os signos captados por suas antenas. Nas raízes, prolongam-se as imagens de um passado que retorna relido, modificado, deslocado; nas antenas, imagens das próximas performances.


Entre os fragmentos metonímicos que apontam o futuro e as imagens metafóricas que remetem ao pretérito e suas noções de plenitude, o sujeito contemporâneo inscreve-se. Como diz David Treece – tradutor de Noll para o inglês –, referindo-se aos seus personagens, não se procura nem se encontrará uma identidade estável, essencialista, alicerçada em raízes biográficas. Trata-se, na verdade, de uma identidade que não se define biologicamente, mas como algo que é formado ao longo do tempo, e diz dos processos imaginários que a compõe. Segundo Hall,

a identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é “preenchida” a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros.

A leitura de Hall nos conduz a pensar que as identidades não só incluíram o imaginário no seu processo de inscrição, como se voltaram mais para o particular, o que está mais próximo, na busca de resgatar a diferença. Trata-se, portanto, de projetos identitários atentos à questão da movência e da multiplicidade; projetos esses jamais fixos num espaço único, pré-determinado.


do espaço


A dimensão espacial é outro elemento pertinente na inscrição desta identidade. Na narrativa de João Gilberto Noll, essa inscrição se dá num espaço de rupturas e violências (o campo de batalha, o rompimento de fronteiras...), no qual a subjetividade de quem transita é constantemente confrontada com a identificação mutante do outro e do próprio espaço. ...nas ruas ninguém oferecia um olhar desinteressado... , registra a visibilidade do narrador.


Ele constata ainda a relevância do espaço na inscrição do sujeito, ao perceber numa personagem – o filho de Artur – uma tristeza no olhar que ganhara com certeza na Suécia. Nesta dimensão espacial, o sujeito pode constatar a sobrevida de uma pulsação perigosa e assumir: há um descompasso entre mim e as coisas, ou ainda: ...eu quero é me apagar... . Desejo esse que é repetido frente a chuva que cai, no pedindo para que ela – a chuva – o apague do mapa.


Perante o perigo, o descompasso e o desejo de apagar-se, o sujeito pode também resolver seguir a vida com as rédeas curtas de sempre, não alterar plano algum, morrer no fim do dia... [18]. Mas poderá ainda – nesse mesmo espaço – apesar das rédeas, reconhecer a potência de uma alegria tão insana a ponto de chorar de dor... ou revelar o desejo de plantar num campo que precisasse de sua mão para ser cultivado.


No campo de batalha que serve de cenário para a narrativa de Noll, mesmo os elementos naturais dialogam de forma conflituosa com o narrador, sugerindo sua porção romântica: ...aquelas sombras ondulantes me dominavam os olhos por longo tempo de tão perturbadas que pareciam estar, diz o narrador ao contemplar o céu. Para ele, as árvores não possibilitam melhores impressões: suas sombras ...eram cínicas e ofereciam sua aparência para fazê-lo penar.
Sentindo súbitos frêmitos e palpitações noturnas, o narrador decide enfrentar, num exercício de busca pessoal e de forma sinestésica, as sombras da paisagem. Ao encará-las, parece contatar as suas interiores áreas sombrias [19]:

...trespassei com minha mão uma dessas sombras ondulantes e só eu sei o quanto eram quentes, quase a ponto de queimar. Um deus profano ria de mim, da minha ignorância, e eu precisava encará-las com força e temperança para que começassem lentamente a se esquivar do meu olhar.

A sintonia com a mãe natureza parece mesmo quebrada. Até o barulho de um riacho revela-se em certos instantes inoportuno, como se ferisse o sono dos demais e a solidão do narrador que não engana: o ruído produzido pelos grilos marcava o ritmo essencial para a sua subsistência noturna. E apesar dessa problemática com o espaço no qual se situa, o narrador assume: a céu aberto tudo me abrigava melhor do que numa casa...[20] Ao ler os signos componentes desse espaço, ele objetiva a construção de uma outra sintaxe existencial que não descarta o descompasso nem desdenha a diferença.


Principalmente a leitura da diferença – através da interação com o outro –, parece ser necessária e às vezes conflituosa. Tudo me chama como se me quisesse chupar para uma força dissoluta, desabafa o narrador, assumindo seu conflito ao vivificar a dimensão espacial: Dou demais de mim a cada chamado de fora... Ou: ... eu era confuso, o mundo me atordoava, eu vivia sob a suspeição de uma conduta convulsiva... [21] Torna-se imperativo ressaltar que esta estetização da existência aponta geralmente para uma possibilidade performática e, entre o sentir dilacerado e a performance encenada, o narrador contemporâneo opta geralmente por essa última.


assinatura do titular


A leitura feita por Regina Céli acerca da obra de João Gilberto Noll evidencia, a partir do título, os signos utilizados pela autora para fundamentar seu ato de ler: Vampiros com dentes cariados. Utilizando-se da metáfora do vampiro para ler as personagens nollianas, a autora sugere uma série de aproximações entre ambos, a partir das quais tecemos, entre os vampiros e os narradores de Noll, seis propostas: o trânsito entre múltiplos espaços, o predomínio da visibilidade sobre os demais sentidos, o exercício da arte da sedução, a ambigüidade sexual, a ação de reler os signos a partir de outros espaços e o riso. Dessas conexões tratamos a seguir.


1- O trânsito entre múltiplos espaços


Sejam reais, simbólicos ou imaginários, os vampiros transitam por espaços urbanos, rurais, marítimos, virtuais. Eles aprontam no “pedaço”, “navegam” na internet. Habitam os castelos mais coloridos, lêem as cidades, suas ruas. Transitam entre o clima da paisagem agrária (o campo de batalha da narrativa) e o espelho quente do asfalto da metrópole, seus campos de batalha. Vampiros viajam nas entranhas dos navios que navegam sobre os mares.


Como naquele espaço à beira do mar aberto, antes estetizando por Caio Fernando Abreu em Os dragões não conhecem o paraíso, o narrador de A céu aberto desloca-se ....numa clausura toda enferrujada de maresia, gelada muitas vezes, com as paredes descascando de umidade, ... tendo um sobressalto quando aparecia uma ave sobre o mar...


Seja no navio, no mar, no castelo ou no campo de guerra, o narrador inscreve no espaço o desejo de seres que vivem numa dimensão intermediária, transformando esse espaço em habitat de vampiro [22]. Ouçamos a voz que narra por entre tendas alagadas no campo de guerra, e pulsa em sintonia com o cenário: Tudo pulsava ao redor. ... as tendas em geral como que queriam se comunicar, algumas davam a clara sensação de arfar. E não era conseqüência do vento. [23]


2 – O predomínio da visibilidade sobre os demais sentidos

O olhar é o sentido que relê o espaço, construindo uma sintaxe entre elementos externos e materiais (seres, máquinas, paisagens...) e elementos internos (sentimentos, desejos, memórias...), como demonstra a voz que narra: O meu silêncio pedia que eu olhasse comprido para o horizonte onde mais uma fumaça escura e grossa se evolava e meditasse...


Percebemos que mesmo o processo interno da meditação é vivenciado pelo narrador em sintonia com o espaço que aciona sua visão. Visibilidade essa que se estende à leitura de outros reinos, tipo este: ...e o que se dá se dá de graça como costumo ver no olho do lagarto a me olhar com um feitiço que ele jamais soube reter na lembrança, um olhar feito de instantâneos compridos quase eternos...[24] . Eternos que nem vampiros... que fitam lagartos, namoram as coisas e devoram os homens...


3 - O exercício da arte da sedução

Para exercitar o desvio que aciona a sedução, o narrador-vampiro chega a ruminar pedaços de canções que nasciam do ronco de suas vísceras. Além disso, a metamorfose corporal do vampiro permite que ele vivencie múltiplos movimentos... Mas, em A céu aberto, outros são os takes sedutores de quem narra. Mediante uma “alimentação” que surge sem garantia de aplacar a fome, embora com possibilidade de amenizá-la, o narrador dela faz uso acionando suas artérias. É o que reza essa sua forma de aproximação com o mundo [25]:

Isso com certeza não me afastava propriamente a fome nem muito menos saciava, mas deixava a minha matéria preparada para quando eu precisasse me aproximar do mundo e tirar dele algum sustento ou ação.

“Preparar” a matéria, acionar a artéria... ...E o tom muda (ora manso, ora impetuoso ou exaltado) quando a vítima (a matéria, suas artérias) é o alvo certo para matar a fome vampiresca. Ouçamos a tonalidade do narrador [26], a interrogação conivente, o argumento certeiro na metáfora da árvore que espera o vento para poder balançar, criar ritmo, conviver...

...para que entender o sentido das tuas palavras, para que chegar até a última frincha do teu pensamento... para quê? Vem, vem para o meu lado na noite ali na boca do bosque que você aprenderá a escrever o melhor teatro do mundo... a voz do teu teatro soará tão límpida quanto a galharia daquela árvore ali que espera pelo vento para poder se balançar

Assim como o procedimento da vampiragem, o discurso narrativo não faz distinção entre gêneros, entre sexos. Através da voz acima, ouve-se um argumento sedutor direcionado ao ouvido do teatrólogo – o filho de Artur, com quem o narrador “encena” o balanço da árvore ao vento.



4 - A ambigüidade sexual


A sexualidade do narrador é vivificada num processo de vampiragem, através do qual suas “vítimas”, ou ele próprio, são literalmente devorados. Isso pode ser aferido no tom vampiresco do seguinte discurso [27]:

...como um larápio que foge de roldão na primeira oportunidade que encontra de sair das sombras, sim, é disso que sai meu beijo, desse ímpeto à espreita da primeira oportunidade de bote certeiro ... beijo que morde...

O recorte vocabular desse texto remete-nos ao universo vampiresco, ao estetizar semas como sair das sombras, bote certeiro e beijo que morde. Mas o cunho vampiresco do discurso torna-se mais evidente logo a seguir, quando o vampiro “carrega” no beijo: ...um beijo em cuja extração vai um pouco de mim me restaurando um tanto, um beijo que morde, ele repete.


Nesse beijo, nessa busca, incluem-se as ambíguas experiências sexuais vivenciadas por um ser para quem os rótulos de heterossexual ou homossexual parece não dar conta de sua dimensão desejante. Sobre isso diz David Treece – o tradutor de Noll para o inglês –, ressaltando nas personagens de A fúria do corpo (1981) e A céu aberto (1986) uma flutuação da identidade sexual enquanto expressão das possibilidades múltiplas e heterogêneas.


Vivificando fala e silêncio, guerra e paz, palavras e coisas, dor e desejo – bruta flor da qual emanam olores e tonalidades várias – o narrador expõe seu fluxo a partir da diferença, elegendo as conexões entre o masculino e o feminino como signos dessa multiplicidade desejante. Nesse universo de imagens afetivas, fitamos o narrador em cenas de sexo explícito, como a seguinte:

Uma noite levei uma fulana para foder no feno mixuruca do paiol, uma noite em que o cheiro de cio andava mais ativo... essa fulana... desmaiou nos meus braços, eu a depositei sobre o feno, me desabotoei, deitei sobre ela, puxei a saia para cima, lembro que quando botei a mão no pentelho dela foi como um choque elétrico... dei um beijo fundo nela e ela voltou dos desmaios...

A fulana é apenas um dos objetos de desejo do narrador. Também a mulher até então enterrada no corpo do irmão do narrador revela-se, fazendo este assumir: ...o meu irmão me atravessou calando a minha história. Os personagens vivem instantâneos de uma delicadeza elegante, nos quais gestos suaves e ritmados conferem ao inusitado da transformação uma aura meio barroca porque profana e religiosa.


Da leitura dessa aura resulta o discurso do narrador: ... esse irmão havia de fato existido com sua própria face, tornando-se de repente apenas uma imagem turva para que a face de minha mulher pudesse reinar... A ambigüidade da relação vivenciada com seu irmão (sua mulher) é intensificada em outro tipo de envolvimento sexual que exclui o signo feminino [28]:

...eu espalmei a mão na bunda do garoto, ...o pau entrou de um golpe, o rapaz berrou, a cotovia a coruja o quero-quero carpideiro, tudo isso respondeu aos berros, esqueci não quis saber só tinha ouvidos para o meu próprio ronco, côncavo, interno, avarento, miserável e só.

Com base nessa solidão o autor abre desejantes veredas a partir das quais o narrador vivencia o seu desejo vampiresco. As falas seguintes dão conta dessa ambigüidade do narrador-vampiro, ao eleger o teatrólogo acima seduzido e a mulher do narrador como personagens das próximas cenas: ...dele a minha nova proteína ...ele o meu novo Deus agora que o comi... ...mesmo com a sangria toda ele tinha gostado, achava que minha mulher gostaria de ver eu comê-lo inteirinho... A mulher é a personagem na qual ele injetara mais líquido nas entranhas...


5 - A releitura dos signos a partir de outro espaço

O narrador possui marcas de espaços cujos signos se encontram saturados; o que impossibilita novas leituras. Daí sua perene busca a céu aberto. Daí sua relação vampiresca com os espaços nos quais ele habita. Referindo-se a Anne Rice e sua leitura acerca do vampiro, Regina Céli diz que o homem se transforma num vampiro quando não consegue mais vislumbrar um sentido para a vida, quando não consegue mais alimentar-se com os signos do mundo, ou seja, quando estes perdem, para ele, a significação.


Esta leitura nos faz perceber que o processo da vampiragem se dá pela saturação do signo, seu esvaziamento. Uma das saídas para essa saturação de imagens e sentidos pode estar na produção da linguagem, na estetização da narrativa, na própria língua. Em A céu aberto, uma das justificativas da guerra dá conta da existência de um totem sob o qual estaria enterrado um sujeito que cortou a língua de um velho guerreiro... que não morria por não conseguir parar de falar, ele falava o tempo todo, não dormia, não enunciava uma única vez o nome da morte, não dava um segundo para que ela sequer se insinuasse, e assim o homem ia envelhecendo...


Nesta narrativa do velho vampiro que não morria a língua é, além de motivação para a guerra, um código fonético e morfológico. Código através do qual o indivíduo elabora sua sintaxe, seu discurso, produzindo uma linguagem que sinaliza sua identidade.


Apesar de constituída num sistema sujeito a regras e classificações (daí o seu teor opressivo, ensina a lição de Barthes), a língua abre-se, ao ser estetizada, à produção de uma linguagem híbrida. Nesta, vocábulos e semas de outros espaços e suportes culturais são introduzidos, tornando permeáveis e deslocados os discursos do narrador. Se o processo de repetição satura o signo, é através desse mesmo processo que o signo renasce. Pois somente repetindo-se é possível o seu reconhecimento, e novos significantes podem ser narrados: ...como se a repetição em surdina fosse uma espécie de mantra que me redimisse da inutilidade absoluta em que me convertera...[29]

- Do riso

Relido o signo a partir de outros espaços, o narrador caminha para o final de sua narrativa ainda procurando a inscrição de sua identidade. Reencontra a mulher de quem foge após cenas e juras de amor. Reconhece que precisava afastar-se de sua identidade, e embarca num navio que viaja com foragidos da guerra, e no qual ele – o narrador – torna-se escravo sexual de um comandante cinqüentão.


Ao romper fronteiras territoriais, lingüisticas e comportamentais, nosso narrador transformou-se num homem traduzido, assumindo sua “tradução” na narrativa do navio: eu era um miserável desertor sem bandeira de nacionalidade... Depois de muito tempo olhando mares e marinhas, é a seguinte a visão desse homem traduzido [30] :

Eu me acostumara a ser um homem cheio de desejos furtivos e tudo em volta de mim parecia de um ímpeto nunca ter estado tão exposto... como se esse mundo de fora tivesse até ali amontoado massas, volumes, formas monumentais feito as daquele navio, embora tudo nele viesse se deteriorando a olhos vistos...

Depois dessa leitura das formas (que nos remetem à visibilidade da concretude aristotélica), o narrador vê despontar o porto de Maia – espaço idílico no qual a polícia dorme debaixo das figueiras, tornando-se local ideal para homens traduzidos como ele. Aqui, enquanto o comandante dorme, ele foge do navio e perambula pela cidade ao sabor da leitura de novas imagens e dúvidas recriadas.


Como sobreviver neste novo espaço se a única profissão que ele assumira fora, como vigia, a de olhar? Ao ver um terreno baldio, o homem exercita-se. Corre em círculo, salta, ajoelha-se. Beija a terra. Sente um novo impulso do nada... Depois do exílio marítimo, reconhece que precisa aprender como chegar às pessoas de novo... E pela primeira vez seu discurso muda de tom: Eu estava feliz. Um sentimento misto de encanto e abnegação, sei lá... Eu era um homem bonito. Gostava do meu porte ao andar. Dei alguns passos suspeitando que na minha pessoa havia uma missão.


No quarto do hotel onde se encontra com uma puta, o narrador assume uma consciência extremada de como as coisas se mostravam no espaço; percebe uma lucidez das formas. Parece encontrar-se na passagem do estado bruto da vida para uma espécie de existência mais difusa e elementar. Mesmo que próximo ao hotel o prédio policial esteja em chamas e possa haver passos ríspidos ao redor, ainda assim dá para perceber, ouçam: [31] de tudo vêm uns laivos de engraçado, olha só... Eu podia aprender a rir no que me faltava de tempo. ...Rir, dar uma boa gargalhada como se estivesse a céu aberto, logo ali, perto do mar.


A céu aberto: uma alegria difícil, mas alegria como senha. O nome do riso: a identidade que se constrói à beira do mar aberto.



BIBLIOGRAFIA

BHABHA, Homi K. “Introdução”, “O compromisso com a teoria” e “Interrogando a identidade” in O local da cultura. Trad. de Myriam Ávila et al. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998..

ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva/Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A editora, 1997.

NOLL, João Gilberto. A céu aberto. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

PEIXOTO, Nelson Brissac. Cenários em Ruínas. A realidade imaginária contemporânea. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1987.

RESENDE, Beatriz. “Dissolução de fronteiras: os estudos literários hoje” in Comunicação e Cultura Contemporâneas. Org. Carlos Alberto M. Pereira et al. Rio de Janeiro: Ed. Notrya, 1993.

SILVA, Regina Celi Alves da. Vampiros com dentes cariados: A literatura neodecadentista de João Gilberto Noll (Impressões de uma leitura ótica). Tese de Doutorado em Teoria Literária. UFRJ, 1999.

TREECE, David. “Prefácio” in João Gilberto Noll Romances e Contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1997


NOTAS

[1] HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 1997. p. 12.
[2] NOLL, João Gilberto. A céu aberto. 1996. p. 17.
[3] NOLL. Op. Cit. 1996. p. 63.
[4] NOLL. Op. Cit.1999. p. 61.
[5] NOLL. Op. Cit. 1996. p. 142.
[6] PEIXOTO, Nelson Brissac. Cenários em Ruínas. 1987. p. 221.
[7] NOLL. Op. Cit. 1996. p. 63.
[8] NOLL. Op. Cit. 1996. p. 57.
[9] BHABHA, Homi. O Local da Cultura. 1998.
[10] NOLL. Op. Cit. 1996. p. 12.
[11] NOLL. Op. Cit. 1996. p. 101.
[12] BHABHA. Op. Cit. 1998. p. 84.
[13] NOLL. Op. Cit. 1996. p. 41.
[14] NOLL. Op. Cit. 1996. p. 18.
[15] BHABHA. Op. Cit. 1998. p. 81.
[16] NOLL. Op. Cit. 1996. p. 50.
[17] ELIAS, Nobert. Sobre o Tempo. 1998. p. 63.
[18] NOLL. Op. Cit. 1996. p. 42.
[19] NOLL. Op. Cit. 1996. p. 83/84.
[20] NOLL. Op. Cit. 1996. p. 102.
[21] NOLL. Op. Cit. 1996. p. 122.
[22] NOLL. Op. Cit. 1996. p. 144.
[23] NOLL. Op. Cit. 1996. p. 55.
[24] NOLL. Op. Cit. 1996. p. 105.
[25] NOLL. Op. Cit. 1996. p. 54.
[26] NOLL. Op. Cit. 1996. p. 119.
[27] NOLL. Op. Cit. 1996. p. 68.
[28] NOLL. Op. Cit. 1996. p. 105.
[29] NOLL. Op. Cit. 1999. p. 58.
[30] NOLL. Op. Cit. 1996. p. 152.
[31] NOLL. Op. Cit. 1996. p. 164.