sábado, 3 de outubro de 2009

A busca da forma no labirinto





Ouro Preto
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Entrevista publicada em A nave leva, Caicó, 1992


O escritor mineiro Victor Ruís nasceu em Ouro Preto - MG. Em Diamantina, ele leu a produção poética dos árcades e conheceu João Gilberto, quando o pai da Bossa Nova exilou-se para criar no violão a batida que mudaria o rumo da música brasileira. Apreciador do estilo barroco e do samba carioca de raiz, foi em Buenos Aires que esse autor assumidamente platônico apaixonou-se pelo tango e pela literatura de Jorge Luís Borges, Ernesto Sábato e Bioy Casares.
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De volta ao Brasil na década de 80, Victor lançou As Formas do Labirinto - único texto publicado pelo autor, apesar da confissão de uma gaveta repleta de poemas e ensaios inéditos. Nesta entrevista, gravada na parede do açude Itans, sertão de Caicó, Rio Grande do Norte, o autor exala sua paixão pela literatura. Cita vários autores e faz alusões a Camões, Pavese, Maiakóvski, Noel Rosa, Claudio Manoel da Costa, Jung... Fala da sua perene busca de simetrias. Diz do imaginário como espaço de produção do real.

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NG: Gostaria que você falasse de sua infância mineira que parece ter sido, como a do poeta itabirano, mais bonita que a de Robson Crusoé.

VR: Acho que foi mais bonita sim. Desde pequeno em Ouro, sempre tive predileção por vitrais, espelhos, superfícies luzidias; apesar de reconhecer, como Borges, que os espelhos possuem algo de monstruoso. Passei a infância dentro de oratórios. Caminhei procissões, rezei novenas. Imitei o sino (“Sobre o grande sino de bronze pousou a borboleta”) e gostava de perambular pelos cômodos vazios da casa do Thomás Antonio Gonzaga. Cheguei mesmo a ouvi-lo num desses nublados finais de tarde mineiros; embora eu tenha lido mais o suicida e seu imaginário da pedra... Que vai dar naquela pedra drummondiana...
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Hoje, ao invés de pedras e espelhos, prefiro telas: de cinema, vídeo, computador. Penso que eles suportam o mundo e as leis imaginárias que o regem. Sempre achei que o imaginário é o melhor espaço humano, embora reconheça que o topos reflexivo seja bastante interessante. Mas também acredito que seja possível promover o diálogo entre ambos, fazendo com que o que chamamos de realidade se torne bem mais interessante. Desde a infância acredito nisso; o que de certa forma me aproxima do Drummond e do Crusoé.


NG: De qual outro personagem você se sente próximo?

VR: Do Borges. Ele próprio foi sua melhor criação.

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NG: Associo sempre as suas formas labirínticas às Ficções borgeanas e aos escritos de Borges sobre livros, personagens e espaços inexistentes. Penso também nos deslocamentos imagéticos do sonho. O que são As formas do labirinto?

VR: Você está certo. As formas... são contos nos quais tento elaborar uma liturgia do sonho. Como passei a vida anotando sonhos, memórias e reflexões, não foi difícil construir esses contos. Tentei narrar o que acredito ser o labirinto - que é para mim o mais evidente signo da perdição, de se estar perdido, digo, procurando saídas. Dizem que essa idéia do labirinto nasce nos palácios e seus mil cômodos; dizem também que o labirinto nasce dos desejos nunca saciados nesses cômodos. O labirinto é um estranho espaço criado pelo homem porque ele não suporta habitar apenas este topos diário que o cotidiano lentamente tece.


NG: Parece que, em todas as épocas, o homem precisa de construir outros espaços... Por isso ele cria a Gruta de Monterinos. Escreve a Ilha dos Amores. Inventa o País das Maravilhas. Transita pelas Ruínas Circulares, faz a travessia do Grande Sertão e por aí vai. E você, vai por onde?

VR: Eu vou pelo roteiro da ruína, do fragmento. Elejo o labirinto, a sombra, o inverno como estação. Como diz você, a nave leva. Os lugares a gente carrega. Eles estão em nós com todas as armas e os afetos íntimos que comportamos. Meus vícios são poucos. Além de Borges e da música do João Gilberto, gosto muito de pensar nas possibilidades do diálogo como gênero literário; assim como o sonho, a enciclopédia, o arquivo. Vou pelo labirinto que é o espaço onde se busca a forma. Para quem tem colhão duro, claro. Não adianta apenas desejar - essa brutalidade humana que Freud inscreveu profundamente e por isso pagou um preço alto fazendo mais de trinta cirurgias bocais. Além do desejo, tem de ter disciplina, produzir linguagens. Eu vou por aí...


NG: É no mínimo inusitado esse exercício da disciplina feito por quem opta por um roteiro tão onírico e labiríntico... Entre esse exercício e esse roteiro, você prefere traçar um grande destino ou uma grande obra?

VR: Sou ambicioso. Antes de sair do planeta Minas, optava pela obra. Agora não sei. Como Macedônio - escritor que Borges amava - penso que o amor, por exemplo, pode ser mais prodigioso que a própria arte, embora a arte talvez seja a forma de amor mais intensa (meio sublimada, diriam os terapeutas modernos). Hoje, gosto dessa idéia nietzscheana de estetizar a vida; tentar fazer da existência uma obra de arte. Isso que é difícil, bacana. Mas simpatizo muito com os perdedores que tentam, os canalhas que não desistem, os decadentes que escreveram obras magníficas. É questão de roteiro, opção.
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NG: ... um grande destino ou uma grande obra?
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VR: Hoje prefiro a vida, o texto da vida. “O difícil é a vida e seu ofício”, como dizia o poeta russo que sequer suportou sua existência e deu o tiro. Hoje ninguém se mata. Escritor não morre mais nem precisa vestir blusa amarela, usar fita amarela, como naquela canção do sambista carioca que também morreu moço. Essa mania de morte está ficando cada vez mais distante do criador. O desafio é a vida, sim. Não é à toa que Joyce escreve oitocentas páginas para descrever um dia fragmentado, mas acaba naquela enxurrada de sins e sins e sins... Mas não li Ulisses. Dizem que não se chega nunca a conhecer seus personagens... Mas, também não sei se precisa conhecê-los... Você leu, o que acha?

NG: Li a metade. Acho que é uma obra principalmente para criadores. Mas quero falar disso que você falou da vida. É meio como penetrar o labirinto borgiano: o dever de todas as coisas é serem uma felicidade; se não o são, tornam-se inúteis. Ou não?

VR: Ou sim. Você vai no cerne: a penetração labiríntica. Inútil é descartar o outro. O eu é nosso grande pecado. Por isso que existe tanta morte em meio às pelejas da vida.


NG: Nestas pelejas você se utiliza da religião? Restou alguma senha do menino que imitava sino, dormia na torre da igreja, rezava novena e seguia procissão?

VR: Resta no olhar com o qual tento estetizar a vida e inscrever minha obra. Pela dor que prega o cristianismo, a voz do Cristo devia ser terrível. A gente sabe que Deus não é nada bonzinho. Basta olhar ao redor. A Hilda Hilst, que sabe tudo, diz que Ele não presta. E eu não sou Adão para querer salvar todo mundo numa arca.

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NG: Adão numa arca é o máximo... Olhando para sua produção, a gente vê que você publicou muito pouco. Um livro e alguns textos em revistas. Você pensa em lançar seus poemas? Gostaria que você falasse um pouco da poesia, esse gênero pelo qual começam todas as literaturas.

VR: Eu falei dessa minha atual predileção pela vida. Ando cada vez mais apaixonado por ela. Quanto a publicar, é complicado. Às vezes, você precisa escrever um poema ou um único verso apenas. O resto, como no dicotômico livro do Eclesiastes, são névoas de nada: tempo de escrever, tempo de publicar. Tenho muito respeito pela poesia. Nela, como no conto, nada é gratuito. Já do romance não podemos dizer o mesmo. Acho que por isso Borges nunca escreveu um. Como você disse, todas as literaturas começaram pela poesia. Mas acho que para escrever poemas precisa-se mais de ingenuidade que de inteligência... E o mundo não anda nada ingênuo, concorda?
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NG: Concordo em partes... Pelo modo de pensar a vida e a obra a partir dos sonhos, mitos, símbolos, formas imaginárias... dá para ver que a sua porção platônica é bastante vigorosa... E que no dia do dilúvio Aristóteles não vai na sua arca...
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VR: Com certeza! Mas existem arcas demais para Aristóteles...