segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Lima Barreto: roteiros de vida e obra


Para Marília Gonçalves Borges Silveira
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I – Primeiras Leituras, Engenharia e Imprensa


Os 41 anos da vida de Lima Barreto (1881 – 1922) foram marcados por, dentre outros, dois fortes signos: as mudanças espaciais e as páginas escritas. Elas parecem expressar os quatro sentimentos maternos anunciados, na infância, pelo olhar de D. Amália Augusta ao filho e futuro escritor: "...temor, pena, admiração e amor" [1]. Esses mesmos sentimentos, que nortearam a trajetória pessoal do próprio Lima, servirão futuramente de base para a criação de personagens como, por exemplo, Isaías Caminha.

Se a literatura de Lima Barreto consiste basicamente no registro de suas memórias, o que o torna um escritor "confessional" – como sugere o biógrafo Francisco de Assis Barbosa –, esses quatro verbos herdados da visibilidade materna – temer, penalizar-se, admirar e amar – podem ser lidos como signos dessa escrita que, por meio da memória, transforma a admirável experiência da vida em amoroso texto literário. Essa transformação é densa e abissal. Possui muito de um pai tipógrafo e tradutor que trabalhou, durante 12 anos, na Imprensa Nacional. Seu nome: João Henriques de Lima Barreto. Com ele, Lima assistiu, aos 7 anos, às solenidades festivas da abolição da escravatura, em 1888. Testemunharam juntos, pai e filho, o advento da proclamação da República, em 1898, embora fossem ambos assumidos admiradores da Monarquia.

Por essa época, Lima estudou no Liceu Popular de Niterói – um colégio para filhos de classes privilegiadas, onde havia até aulas de piano. Lá o futuro autor de Numa e Ninfa despertou o gosto pela leitura de autores como Julio Verne. Dos primeiros registros bibliográficos, ressalte-se ainda a herança paterna de livros como a Divina Comédia e da obra de Tácito. A esses autores juntar-se-ia, na freqüência futura do apostolado da igreja, o filósofo Descartes e o seu Discurso do Método. Esse texto transformou-se numa leitura de prazer para o adolescente mais preocupado com o eu que pensa a concretude da própria existência, em contraposição à transcendência apregoada pela mitologia religiosa. Lima Barreto era, na verdade, um homem assumidamente aristotélico e questionador que, apesar de habitar geralmente as margens, os extremos, possuía o “desejo de tudo metodizar” [2].

Desgostoso com o regime interno no qual estudava, ele tinha na casa paterna, da Ilha do Governador, um espaço "de sonho e curiosidade". Lá desfrutava as benesses naturais que a Ilha – na época isolada da cidade – oferecia. O garoto gostava principalmente de pombos e cajus. Adorava "um bambual cerrado e verde que suspirava quando de tarde a viração soprava do mar", como escreve depois o cronista de Feiras e Mafuás (1953). Admirava, no éden da Ilha, a variedade da fauna futuramente estetizada em Triste fim de Policarpo Quaresma (1915). Embora hoje essa fauna esteja em extinção, há na Praça Calcutá, na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, o busto do autor que inscreveu os homens, a fauna e a flora daquele lugar. Na Ilha trabalhou, após a queda da Monarquia, o pai de Lima Barreto, numa Colônia de Alienados; o que possibilitou, ao filho e estudante de 10 anos, o contato com a loucura no próprio paraíso que era a Ilha naquele início do século XX.

Da Ilha, o estudante foi para o colégio interno e as pensões estudantis. Com base nesses contextos espaciais, o estudante de Engenharia Civil colhia – na travessia pela Rua do Ouvidor, onde mulheres, vitrines e literatos ostentavam seus brilhos – os roteiros de suas narrativas futuras. Outro cenário escolhido pelo futuro escritor seria a Biblioteca Nacional, situada num antigo prédio da Rua do Passeio. Lá o estudante empreendia sessões de leituras. Por volta dos 16 anos, o apreço pela filosofia dominava o "cardápio" intelectual (Kant, Spencer, Comte, Le Bon...) dentre os demais saberes e artes. Anos mais tarde, o narrador de Recordações de Isaías Caminha (1909), assumirá sua predileção pelos autores literários mais "amados": Dostoiévski, de Crime e Castigo, Voltaire de os Contos, Tolstói de Guerra e Paz, Flaubert de Educação Sentimental e, dentre outros, Eça de Queiroz e Stendhal.

Do convívio com a leitura e com alguns colegas veio a primeira publicação jornalística de Lima em A Lanterna – periódico que abrangia, dentre outros campos do conhecimento, as ciências, as artes e os esportes, e que pertencia às escolas superiores do Rio de Janeiro. Nesse jornal, o escritor de "cor azeitonada" que sorri para as certezas das ciências, começa a exibir sua produtiva porção irônica e sarcástica: "O sarcasmo já brilha nas suas crônicas. É a reação contra o meio que começa a se processar de modo inevitável" [3].

Sarcástico, irônico, ferino. Esses adjetivos nortearão a carreira profissional e a vida de Lima Barreto; principalmente nas suas relações sociais e nos ambientes profissionais. Sua vida e obra estão repletas de imagens que refletem as margens nas quais o autor se situou durante quase toda sua vida. Por exemplo: numa cena onde os colegas estudantes pulam o muro de um teatro, a fim de assistir a uma ópera, Lima não consegue sintonia com o grupo. O preconceito racial rouba-lhe a "coragem de pular o muro" [4]. Por isso o adolescente não viu Aida. A negritude roubava-lhe sua força; acentuava seu azedume frente aos costumes e às regras de uma sociedade racista e socialmente injusta. Junte-se a essas injustiças sociais, as perdas econômicas, a loucura e os delírios paternos. Talvez por tudo isso, sejam visíveis as figurações da morte nos cadernos do adolescente, e a presença do mal e sua matéria bruta nas páginas depois publicadas.

O registro dessas páginas é da maior importância para a historiografia literária brasileira. Ao estetizar sua conturbada existência social e suas memórias familiares, Lima Barreto constrói uma conexão direta entre a vida naquele início da modernidade no Brasil e as dificuldades de inscrição social, para um jovem negro, numa sociedade cujas desigualdades oscilavam visivelmente entre o centro e a periferia, a maioria pobre e negra e uns poucos brancos e instruídos a gozarem privilégios infindos. Nesta cena adversa e preconceituosa, o rapaz de pouco mais de 20 anos consegue aprovação num concurso para a Secretaria de Guerra.


II – Belle Époque Carioca, Cena Pré-modernista e os primeiros livros de Lima Barreto


Ainda não houvera a primeira guerra mundial. Estamos no Rio de Janeiro de 1903. Pela Rua do Ouvidor transitam a maioria dos 730 habitantes da cidade. Eles vivem a esperança esplendorosa da Belle Époque na cena que anuncia a nossa modernidade. A Belle Époque traduz a nova sensibilidade urbana que surge no final do século XIX , em sintonia com os avanços científicos e tecnológicos. No Brasil, corresponde ao período que vai da proclamação da República, em 1889, até a Semana de Arte Moderna, em 1922. Corresponde também ao advento da cena pré-modernista onde, além do próprio Lima Barreto, destacam-se Euclides da Cunha e Graça Aranha.

O Pré-Modernismo está relacionado a uma confluência de estilos literários que se cruzam num mesmo contexto histórico, assinalando a presença de variadas tendências na Literatura Brasileira. Esse cruzamento de estéticas e suas múltiplas dicções possibilitam a origem de um fenômeno conhecido como sincretismo, através do qual se manifestam os autores mais representativos do Realismo, do Naturalismo e do Impressionismo, na prosa; e do Parnasianismo e do Simbolismo-Decadentismo, na poesia.

Neste contexto estético e social de grandes transformações, o progresso apresenta suas sedutoras armas: cafés, bondes elétricos, confeitarias, bares, iluminação pública. Modelos europeus, cervejas alemãs e conhaque francês. Nesta primeira década do século XX, o Rio ostentava os salões e as destacadas personagens de sua história política e cultural. Dentre essas, destaca-se Laurinda Santos Lobo – signo reluzente da época de ouro vivida pelo Rio de Janeiro no pórtico do novo século. Laurinda e seus salões constituem os cenários avessos ao universo de Lima Barreto. Situado sempre à margem, este seria o Rio no qual o autor negro jamais mergulharia [5]:

Na década de 1910, o salão de Madame Santos Lobo foi peça fundamental da política do ministro do exterior, Rio Branco, que tinha como estratégia mudar a cara do Brasil no estrangeiro, apresentando um país branco, desenvolvido, educado, quase francês. O salão Murtinho era seu cartão de visitas, recebendo celebridades estrangeiras de visita ao Rio, como Anatole France e Rubén Darío. Em 1919, Isadora Ducan apresentou sua dança nessa casa.

Claro que Lima Barreto não se identificava com esse país de identidade européia. Sua identificação era com outro país: um lugar onde a dança levava em conta o som dos atabaques e pandeiros... Junte-se a esse cenário de ritmos variados e estrangeiros a visão moderna do administrador Pereira Passos e a abertura da Avenida Central, hoje Av. Rio Branco. Nesta cena pré-modernista, os cafés e as livrarias são os espaços das relações intelectuais. Na imprensa, A Quinzena Alegre, O Diabo, a Revista da Época (da qual Lima foi secretário) e O Correio da Manhã, dentre outros, anunciam a ebulição sócio-política e cultural que toma conta da capital da República.

Como funcionário da Secretaria de Guerra, Lima Barreto cumpre uma rotina burocrática que inicialmente em nada o aflige. Depois, essa rotina muda. Em 1904, o autor começa a escrever a primeira versão de Clara dos Anjos. Por volta de 1905, ele escreve 22 reportagens sobre "as escavações dos subterrâneos do Morro do Castelo", para O Correio da Manhã [6]. O escritor começa, em meio a dificuldades materiais e existenciais, a decolar. Sua vida literária inicia por vários gêneros. Além da experiência jornalística, Lima escreveu teatro, ensaio, folhetins populares, romance sociológico, e chegou a rabiscar o projeto de uma História da Escravidão Negra no Brasil e sua influência na nossa nacionalidade. Ele pensava inscrever uma espécie de "negrismo" na branca historiografia literária brasileira.

Na primeira década do século XX, o cenário literário carioca ostenta figuras de peso nacional como Machado de Assis, Coelho Neto, José Veríssimo, Gonzaga Duque e, dentre outros, João do Rio – um dos personagens satirizados do Isaías Caminha. Neste contexto, Lima Barreto lança, na tentativa de inscrever "...a grandeza da literatura", a revista Floreal (1907) que durou 4 números. Nesta revista, o autor inicia a publicação do romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha, cuja 1ª edição – portuguesa – começa a circular no Rio de Janeiro em dezembro de 1909. Isaías Caminha é o alter ego de Lima Barreto. Servia, às vezes, como pseudônimo do escritor que assume o gosto pelo vigor dos ideais pregados por Rousseau, dentre outros autores.

A biblioteca particular do autor – LIMANA – reflete essa sua predileção pelos roteiros da história, pelo universo das idéias e reflexões. Na LIMANA convivem, além de Rousseau, filósofos como Descartes, Nietzsche e Spinoza, dentre outros, em meio a títulos como As Três Filosofias, de L. P. Barreto. Essa investigação no campo do saber é visível na escrita do próprio Lima. Sua obra literária consiste num tipo de texto que se fundamenta muito mais no plano das idéias e reflexões, em sintonia com as questões sociais de sua época, que no trabalho com a sintaxe e o significante lingüístico; embora, críticos como Sérgio Milliet, por exemplo, destaquem, nessa produção artística, exatamente o seu caráter “antiliterário” e sugira, no estilo barreteano, a busca pela exatidão na construção das frases [7].

Talvez motivado por essas questões relacionadas ao plano da escritura e até das convenções gramaticais, o livro do Isaías Caminha não tenha conseguido, de início, uma boa receptividade crítica. Assim como José Veríssimo, outros críticos da época acharam o romance excessivamente “personalista”. Veríssimo sugere, em carta para o próprio Lima, que falta em seu texto o trabalho de estetização com a linguagem.

Algumas dessas críticas incomodavam muito o autor. Por essa época, ele já tivera algumas licenças médicas para tratamento de saúde. As feridas, em Lima, custavam a cicatrizar. Sua hipersensibilidade debatia-se num cenário hostil ao autor. Sua sangria desatada, frente às questões familiares e aos problemas sócio-políticos do país, transformava-se cada vez mais em matéria bruta para a escrita. Ele assume ser o sombrio ambiente familiar, juntamente com a loucura paterna, a causa maior do seu mal.

A incapacidade de adaptar-se a um mundo socialmente perverso e politicamente injusto faz com que Lima Barreto resgate, na primeira década do século XX, algumas características existenciais aquele antigo mal-do-século que tanto afligiu os românticos brasileiros no século XIX. Só que esse resgate se dá meio que pelo avesso: a dor de Lima Barreto é bem mais física e materializada do que as dores existenciais e as mazelas amorosas estetizadas pelos jovens poetas do Romantismo.

Complementam essa espécie de resgate maldito a questão do preconceito racial, a falta de grana, a exclusão literária e a miséria afetiva (segundo os amigos, o autor não possuía os “requintes” da arte de amar, além de considerar a mulher como um possível “empecilho” para a sua produção literária). Ou seja: racismo, pobreza, margens culturais e carência afetiva – os ingredientes da tragédia estão expostos. Nesse cenário trágico, a literatura surge como a razão de viver; como projeto utópico: “Ah! A Literatura ou me mata ou me dá o que eu peço dela” [8].



III – Triste Fim de Policarpo Quaresma, O cemitério dos vivos e o “Declínio”



A literatura começa, enfim, a dar os frutos sonhados. Lima Barreto encontra-se em plena maturidade, embora essa madureza contenha os seus “pecados”. Dentre os “pecados” estéticos e intelectuais da maturidade, ressalte-se o fato dele menosprezar a obra de Machado de Assis; chegou a dizer que o escritor do Cosme Velho inventava “tipos sem nenhuma vida”. Vida haveria apenas na “objetividade” e na forma direta de sua própria literatura que dá visibilidade para as classes sociais menos favorecidas? Talvez.

De Janeiro a Março de 1911, ele escreve aquele que é considerado “o mais bem composto e equilibrado dos seus romances” [9]: Triste Fim de Policarpo Quaresma. O personagem principal é um major “nacionalista exaltado”. Ele é conhecedor da literatura e da história escritas no Brasil, como demonstra este fragmento da Primeira Parte do romance, onde o narrador descreve a biblioteca do major[10]:

Na ficção, havia unicamente autores nacionais ou tidos como tais: o Bento Teixeira, da Prosopopéia; o Gregório de Matos, o Basílio da Gama, o Santa Rita Durão, o José de Alencar (todo), o Macedo, o Gonçalves Dias (todo), além de muitos outros. Podia-se afiançar que nem um dos autores nacionais ou nacionalizados de oitenta pra lá faltava nas estantes do major. De História do Brasil, era farta a messe: os cronistas, Gabriel Soares, Gândavo; e Rocha Pita, Frei Vicente do Salvador, Armitage, Aires do Casal, Pereira da Silva, Handelmann (Geschichte von Brasilien), Melo Moraes, Capistrano de Abreu, Southey, Varnhagen, além de outros mais raros ou menos famosos...

Em Agosto de 1911, O Jornal do Commercio (edição da tarde) inicia a publicação, em folhetim, de Triste Fim de Policarpo Quaresma que apenas em 1916 aparecerá em volume. Ainda em 1911, o autor colabora no jornal Gazeta da Tarde e participa do movimento para a criação da Academia dos Novos, patrocinada pelo jornal A Imprensa. Encontra-se Lima, aos 30 anos, no auge de sua produção intelectual. Escreve, além do referido romance, textos importantes como “A nova Califórnia” e “O homem que sabia javanês”. Escreve também para jornais revolucionários como Lanterna, O Cosmopolita, O Parafuso, A patuléia e A Luta. Ao aposentar-se em 1919, o escritor intensifica suas colaborações na imprensa nacional. Mas, Lima Barreto sabia ser o Acaso um Deus que “não tem predileção”.

No início de 1919, Lima é candidato à Academia Brasileira de Letras; no final desse mesmo ano, sofre nova crise de loucura. É novamente internado no Hospício Nacional de Alienados, na Praia Vermelha, Rio de Janeiro. Como seu pai, o escritor delirava. Em seu delírio, ele dialogava com “inimigos invisíveis” e chegava a ver animais. Começa a fase que Francisco de Assis Barbosa cognomina de o “Declínio” do seu biografado.

Agora, não mais existem o literato e boêmio que perambulavam pelos bares, cafés e livrarias. O reumatismo começa a emitir sinais para o corpo cansado. Monteiro Lobato vem ao Rio de Janeiro, “especialmente para conhecê-lo” [11]; embora o autor de Urupês não tenha conseguido aproximar-se do homem de aspecto fisicamente decadente, e por muitos desprezado. Lima parecia uma “ruína humana” [12].

Essa decadência física e o desprezo público não impossibilitaram sua produção literária. Entre 1920 e 1922, Lima Barreto conclui nada menos que cinco volumes: Histórias e Sonhos, Marginalia, Feiras e Mafuás, Bagatela e Clara dos Anjos. Destes, viu publicado apenas Histórias e Sonhos. Em 1920, após deixar o hospício pela segunda vez, começa a escrever um importante romance que deixou inacabado: O cemitério dos vivos. Segundo a professora Marília Silveira[13],

O romance O cemitério dos vivos tem o diário como embrião. É no diário, fruto da experiência e da memória, que o romancista vai buscar o húmus alimentador da ficção. ... o romance possui uma linguagem coloquial, dando sempre a impressão de uma conversa com o leitor, o que ajuda a conferir o tom da confissão e do desabafo...

O cemitério dos vivos foi publicado na Revista Sousa Cruz (onde o autor publica a conferência “O Destino da Literatura”). O texto aponta para outros roteiros metafísicos e existenciais, e teria tudo para transformar-se no grande romance do autor. Trata-se de um denso registro, como atesta a voz de Vicente Mascarenhas – o narrador intimista que, em cinco capítulos, rememora a juventude, a vida conjugal e a experiência do hospício. Diz a voz que narra[14]:

Eu sofria honestamente por um sofrimento que ninguém podia adivinhar; eu tinha sido humilhado, e estava, a bem dizer, ainda sendo, eu andei sujo e imundo, mas eu sentia que interiormente eu resplandecia de bondade, de sonho de atingir a verdade, do amor pelos outros, de arrependimento dos meus erros e um desejo imenso de contribuir para que os outros fossem mais felizes... ...uma vontade de descobrir nos nossos defeitos o seu núcleo primitivo de amor e de bondade.

Há nesse texto, como lemos, uma visão mais compreensiva e afetiva dos homens e do mundo; embora no romance que é considerado como segundo volume de suas memórias estetizadas – Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá – Lima já ponha na boca de seu alter ego, o velho e irônico Gonzaga de Sá, o seguinte discurso: “...a maior força do mundo é a doçura; deixemo-nos de barulhos” [15]. Segundo Arnoni, “Gonzaga de Sá deplorava a comercialização da cultura, a linguagem descuidada dos jornais e os falsos intelectuais”. Com esse romance, o autor ganha, em 1921, uma menção honrosa da Academia Brasileira de Letras; o que possibilita uma outra edição do texto em circulação.

Em 1922, Lima Barreto entrega ao editor os originais de Feiras e Mafuás, e a revista O Mundo Literário publica o primeiro capítulo do romance inédito Clara dos Anjos – “O Carteiro”. Em primeiro de Novembro desse mesmo ano o escritor falece, vítima de gripe torácica e colapso cardíaco, no Rio de Janeiro, em sua casa à Rua Major Mascarenhas, nº 26. Tem por perto o pai louco e a irmã Evangelina que cuida de ambos.

Chovia muito no velório de Lima Barreto. À tarde, o enterro saiu em direção ao cemitério São João Batista – lugar escolhido pelo próprio escritor. Ao longo das ruas suburbanas, a multidão seguia silenciosamente o caixão. A cena descrita pelo biógrafo demonstra a grande afeição do povo pelo autor [16]:

Eram pretos em mangas de camisa, rapazes estudantes, um bando de crianças da vizinhança (muitos eram afilhados do escritor), comerciantes do bairro, carregadores em tamancos, empregados da estrada, botequineiros e até borrachos, com o rosto lavado em lágrimas, berrando, com o sentimentalismo assustado das crianças, o nome do companheiro... de tantas horas silenciosas, vividas à mesa de todas essas tabernas...

A chuva continuava a cair. O cortejo fúnebre seguia ajuntando pessoas de várias cores, credos e classes sociais, tantas vezes estetizadas nas páginas escritas pelo autor. Num rompante de lucidez, João Henriques indaga à filha o que aconteceu em casa. Pergunta se Afonso morreu. Evangelina tenta confortar o pai moribundo. Quarenta e oito horas depois do filho, morre o pai. É enterrado na mesma campa humilde onde repousa Lima Barreto – escritor cujo olhar inscreve as margens urbanas e sociais do Rio de Janeiro no início do século XX. Esse mesmo olhar vislumbra, ao seu modo, o verde da paisagem carioca que ele tanto amou e estetizou em formas múltiplas como o romance, o conto, a crônica, o ensaio, a reportagem, o diário e a epistolografia.



BIBLIOGRAFIA

BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Notas de revisão de Beatriz Resende. 8ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.

BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Ed. Abril, s/d.

FONTES, Lílian. Santa Teresa. O lugar do sonho. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. (Col. Cantos do Rio).

PRADO, Antonio Arnoni. Lima Barreto. São Paulo: Abril, 1980. (Literatura Comentada).

SILVEIRA, Marília Gonçalves Borges. Stultifera Polis: Uma leitura de Lima Barreto. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem. Natal, UFRN, 1998.

NOTAS


[1] BARBOSA. A vida de Lima Barreto. 2002. p. 49.
[2] BARBOSA. Op. Cit. 2002. p. 323.
[3] BARBOSA. Op. Cit. 2002. p. 108.
[4] BARBOSA. Op. Cit. 2002. p. 114.
[5] FONTES. Santa Teresa. O lugar do sonho. 2003.
[6] Essas reportagens foram organizadas, com Introdução e Notas de Beatriz Resende, em O Subterrâneo do Morro do Castelo. Um folhetim de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Dantes, 1997.
[7] BARBOSA. Op. Cit. 2002. p. 335.
[8] BARBOSA. Op. Cit. 2002. p. 242.
[9] BARBOSA. Op. Cit. 2002. p. 219.
[10] Barreto. Triste Fim de Policarpo Quaresma. s/d
[11] O encontro “malogrado” no Rio de Janeiro seria concretizado depois em São Paulo.
[12] BARBOSA. Op. Cit. 2002. p. 340.
[13] SILVEIRA. Stultifera Polis. 1998. p. 65.
[14] BARBOSA. Op. Cit. 2002. p. 350.
[15] BARBOSA. Op. Cit. 2002. p. 326.
[16] BARBOSA. Op. Cit. 2002. p. 359.