sábado, 10 de outubro de 2009

Possuído pelo vocábulo



João Gilberto Noll é um autor contemporâneo cuja visibilidade engendra uma narrativa calcada, dentre outros, nas noções de velocidade e corte herdadas da modernidade. Nesta obra construída a partir de recursos literários e cinematográficos, os ritmos velozes, os discursos imagéticos, as identidades mutantes e as linguagens fragmentadas geram uma proliferação de signos e re-leituras, onde nenhuma percepção aurática, heróica ou politicamente correta engendra a produção do sentido. Romances como Bandoleiros (1985), A céu aberto (1996) e Lorde (2004), por exemplo, atestam a recorrência a esses procedimentos estéticos e culturais.

Em sintonia com tais procedimentos narrativos, Noll lançou, em 2003, dois volumes díspares e ao mesmo tempo complementares de sua bibliografia (15 títulos) sedimentada nas formas literárias do conto e do romance. Os dois livros são Mínimos, múltiplos, Comuns (“Instantes ficcionais”, Ed. Francis) e Berkeley em Bellagio (romance, Ed. Objetiva). Embora considere as tramas dos idiomas e dos corpos, de Berkeley em Bellagio, temas acerca dos quais vale a pena refletir e escrever, esta leitura elege os contos do alentado volume de Mínimos, múltiplos, Comuns como objeto de reflexão.
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Micro-narrativas com vigor poético
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Mínimos, múltiplos, Comuns é uma cosmogonia construída com a sintaxe curta e a rapidez deste milênio. Uma cosmogonia contemporânea. Escritas para o jornal Folha de São Paulo, estas micro-narrativas apresentam altíssima taxa de literariedade e vigor poético. Segundo o autor, estes textos “pressupõem uma cronologia da criação”, a partir da criação de cinco grandes “conjuntos”: Gênese, Os Elementos, As Criaturas, O Mundo e O Retorno. Esses “conjuntos” se desdobram em signos que se multiplicam em outros signos, tecendo uma sintaxe sinestésica onde quem lambe olores pode engolir um rio que ri, e uma outra linguagem brota desautomatizando os discursos cotidianos. Nesses “conjuntos” o mundo passa a existir e a locomover-se via linguagem.

A cosmogonia de Noll encerra uma narrativa hipotética da criação de um universo que, embora seja às vezes trágico ou melancólico, surpreende pelas possibilidades sugeridas pelo espanto, o humor e o caos de onde a linguagem nasce. O mergulho neste caos tem a ver com o desejo do outro, o leitor. Esse desejo anuncia-se no elegante projeto gráfico do volume de 478 páginas, passa pela beleza poética dos títulos, pelo diálogo com as imagens e tons das cores e culmina no rigor da forma e da construção textual.

O livro possui o desvio, a deriva de uma lógica labiríntica. Suas páginas engendram algumas sombras, dão pistas de alguns punhais. A forma de leitura é também labiríntica. Por isso é possível que o leitor volte ao índice, re-confira títulos e sub-títulos e, de quando em vez, pare para re-iniciar a releitura do mesmo texto num ritmo que traduz o espanto produtor dessa viagem onde alegria, espanto e desejo são combustíveis perenes. Nestes roteiros de letras, é imperativo atentar para os efeitos gerados pela pontuação, e para a polissemia de signos urbanos e naturais que engendra essas micro-narrativas.

Nesta cosmogonia, a geometria dos corpos urra um discurso atemporal. Um narrador urbano, por exemplo, atravessa o tempo e encontra uma romântica taverna de outro século; um outro olhar - que narra de modo atemporal - apronta um gesto romântico em pleno metrô moderno, metropolitano. Seres e cenários cotidianos anunciam o desejo gerador de um grande sertão urbano que se perfaz em texto, asfalto, indagações.

Bêbados de palavras, esses narradores ruminam desejos, enseadas, velórios. Um caseiro aterra a identidade da patroa. Recorrentes porteiros cotidianos convivem com mitos clássicos que nem Narciso, espelhado aqui na superfície de uma portaria por onde transitam os que aprenderam a “respirar na contravida”. Outro narrador acende o paladar fantasiando a filha de frutas. Um outro é o mais entusiasta dos plantéis; e tem aquele de olhar saturado que não suporta a ausência de um certo rigor cartesiano: “O que te assustava era o meu entusiasmo intransitivo atropelando qualquer ponderação”, diz ele.
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Ouvidos treinados em diferentes timbres
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“Línguas” é um texto que remete a um dos núcleos temáticos recorrentes nos dois volumes publicados, em 2003, por Noll. Tanto em Mínimos, múltiplos, Comuns como em Berkeley em Bellagio proliferam temas concernentes à leitura, à fala, à língua e à sílaba; questões voltadas para o nascimento da palavra, sua foz, a produção do discurso. A escritura dessas questões possibilita um denso exercício metalingüístico, como sugere a seguinte fala: “Que eram tantas as palavras, de tão diferentes fontes e sabores, que concentravam em si tamanha quantidade de matizes e sentidos...”. Esse vigor diferencial e saboroso pode ser aferido e ratificado na potência dos títulos, na seleção dos vocábulos, no recorte imagético, no zelo pelo idioma, seus tons.

Essa tonalidade é audível, por exemplo, na indagação do que acontece quando Eros freqüenta o espelho de Narciso. É também audível no nascimento do verbo, no discurso dos seios que contabilizam os prazos da sexualidade gerando outras formas de vida, e na metonímia de um desejo que, tecido nas malhas da solidão, abastece a portaria, o prédio, a rua, a cidade e o céu final da tarde. Essa tonalidade ajuda a deslocar a tensão e a aspereza produzidas pela falta de ritmo cotidiana, e deixa o leitor atento à co-existência dos tempos, à recepção dos ventos e aos reflexos dos autos, suas lâminas.

Nestes “Instantes ficcionais” cintilam pequenas epifanias caio-clariceanas. Como Clarice Lispector, o autor parece atentar, na maioria das vezes, mais para o sussurro discursivo dos fatos do que para os próprios fatos; e os signos desses fatos tanto podem remeter a um touro, um cheio de memória antiga ou a uma borboleta que teima em sair do ouvido de quem narra. Aliás, seus narradores possuem ouvidos bem treinados. Treinados nos timbres das águas, nos ritmos sanguíneos e cortantes do trem do metrô; ouvidos e olhos treinados na colheita do riso tradutor de uma alegria branca de broto.

A narrativa de Noll sugere, principalmente no conjunto “Os Elementos”, uma porção poética que remete às noções de ruptura de gêneros e formas patrocinadas pela modernidade, e que possui no prosa de Guimarães Rosa um dos seus marcos. Embora não produza os exercícios de linguagens empreendidos pelo autor mineiro, o trabalho com a sintaxe e o recorte vocabular de Mínimos, múltiplos, Comuns possibilita a audição de ecos da linguagem de personagens roseanos em textos como, por exemplo, “Caroço do ermo”, “Natureza”, “Leve seio”, dentre outros.
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Assim como João Guimarães Rosa, João Gilberto Noll é, neste livro, um autor possuído pelo vocábulo. Ser possuído pelo vocábulo, num tempo dominado pelo signo imagético e suas conexões de superfícies e repetição, potencializa o texto. Além disso, qualifica o leitor “para o convívio sensato das formas” (“Gigante”), e o convoca para uma aventura que não acaba nunca: a leitura da sua infinda dimensão humana e diferencial em meio a tantas máquinas e sistemas que se repetem.