domingo, 25 de outubro de 2009

Feito de Silêncio e Som





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Texto apresentado na Jornada de Ciência da Literatura da UFRJ, Rio de Janeiro, Out. de 1999



Um homem é um homem mais pelas coisas que cala do que pelas que diz.

Camus, O mito de Sísifo

...pronunciar o nome é sinal de saúde, sinal de que a gente aceitou ser do jeito que é, mortal, vulnerável... sinal de que estamos dispostos... a lutar por nossas vidas.

Susan Sontag, Assim vivemos agora



A leitura das primeiras páginas de O Estrangeiro (1942) - 1º romance de Albert Camus - remete-me a um inusitado objeto de comparação: o texto de Graciliano Ramos. Não que haja relações, por exemplo, entre procedimentos literários ou núcleos temáticos desenvolvidos pelos dois autores. Nisso não vejo pontos em comum, mas diferenças. Já se pensarmos em narradores atormentados e suas vidas “medíocres”, e no sentimento de revolta que pontua suas existências, podemos ver aí alguma semelhança entre Graciliano e Camus; embora esse não seja o tema dessa escritura. O elemento através do qual cheguei à comparação entre ambos os autores é a linguagem.

Elaborada a partir de um plano que parece não ultrapassar a referencialidade, a linguagem de Camus lembra um canto a palo seco, algo como a "retórica do seco" de Graciliano; embora eu considere a linguagem deste mais ornamentada, mais trabalhada literariamente. Principalmente os textos de São Bernardo (1934), Angústia (1936) e Vidas Secas (1938) me parecem mais próximos desse canto a palo seco, dessa "retórica", dessa secura negativa que também leio em romances como A Peste (1947) e A Queda (1956).

Nestes textos, o que me parece aproximar Graciliano e Camus são alguns procedimentos como:
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- a escolha do vocábulo certo - enxuto, sem muita adjetivação
- a sintaxe seca, elaborada em planos quase lineares
- o ritmo preciso das falas
- a exatidão formal dos diálogos
- e um lirismo que parece querer vir à tona, mas permanece latente na estrutura narrativa.
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Esses são alguns dos elementos que compõem suas linguagens de secura e solidão. Mesmo a anedota sobre Graciliano poderia referir-se a Camus, e o seu sentido continuaria perfeito. Conta-se que o autor alagoano dizia não utilizar-se de exclamações e alguns outros sinais gráficos de pontuação - em seus textos -, por não querer parecer bobo nem espantado.

Minha leitura de O estrangeiro - texto publicado durante a 2ª guerra - não dá conta de muitas exclamações ou sinais outros que demonstrem espanto ou admiração... A revolta e a indiferença sinalizadas no romance camesiano encaminham o leitor por um roteiro contido, uma fala objetiva, como as frases curtas anunciadas no primeiro parágrafo do texto (p. 09):

Hoje, mamãe morreu. Ou talvez, ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: “Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames”. Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem.

Esta concisão e esse sentido de objetividade textual são características marcantes de uma modernidade iniciada no final do século passado. Aponta, por exemplo, para a influência que o jornal exerceu sobre gêneros como o romance. A influência dessa escrita e a aproximação empreendida entre Camus e Graciliano - através da "retórica do seco" - foi-me esclarecida por Roland Barthes (contemporâneo de Camus) em O grua zero da escritura (1953).

No texto “A escritura e o silêncio”, Barthes trata das possibilidades de criação em relação à linguagem literária. Segundo ele, ao criar o seu texto, o autor tanto pode optar pela elaboração de um estilo que enriqueça a antiga linguagem (utilizada pela tradição) ou criar um escritura branca, livre de ordens lingüísticas. Essa escritura - batizada por Barthes de jornalística, apesar dele fazer ressalvas a essa cognominação - utiliza-se de uma espécie de língua básica, distanciada ...da linguagem literária propriamente dita. Sobre isso afirma o autor (p. 92):

Essa fala transparente, inaugurada por “O estrangeiro” de Camus, realiza um estilo da ausência que é quase uma ausência ideal de estilo; a escritura se reduz então a uma espécie de modo negativo no qual os caracteres sociais ou míticos de uma linguagem são abolidos em benefício de um estado neutro e inerte da forma...

Esse modo negativo ressaltado por Barthes é assumido pelo próprio Camus (1989: 12). Ao referir-se às formas de concepção de sua obra, o autor destaca 3 categorias nas quais situa seus textos. A última categoria teria o amor como tema, mas foi apenas entrevista; a 2ª centrou-se em formas positivas, e sobre a 1ª categoria Camus assim referiu-se:

No início eu queria exprimir a negação. Em três formas: romanesca - foi “O Estrangeiro”; dramática - “Calígula, o equívoco”; ideológica - “O Mito de Sísifo”...

Segundo Barthes, essa escritura neutra e negativa afirma a instrumentalidade - condição primeira da arte clássica. Apesar dessa condição "instrumental", é imperativo ressaltar que, nesse caso, o instrumento formal não serve a uma ideologia; confirma-se como um modo de existir de um silêncio. Perde voluntariamente qualquer recurso à elegância ou à ornamentação.

Essa perda de ornamento literário, numa escritura criada a partir de uma forma que considera as relações entre silêncio e linguagem, é notável já na primeira parte de O Estrangeiro. Duas imagens refletem isso. Durante o velório da mãe de Mercosult, os diálogos são secos, bruscos. Iniciam, por vezes, calcados na negação. Indagado pelo porteiro se deseja ver no caixão o corpo da sua mãe, o narrador responde um sonoro “não”. Ele não imagina o preço a ser pago por essa negativa.

Outra vez indagado, o narrador responde ao porteiro “não” saber o motivo pelo qual não deseja olhar pela última vez o rosto materno (p. 12). Mais adiante a voz que narra interrompe a fala do mesmo porteiro, bradando “Não, não...”... Mesmo que esta negação sirva para avalizar a continuidade de seu discurso. Este discurso será, logo adiante, novamente interrompido por outra negação, ao expressar o narrador sua falta de desejo: ele não estava com fome (p. 14).

Essa discurso da negação (que se vale dessa estratégia até para afirmar, como no diálogo com o porteiro) dá conta do silêncio que o sedimenta, e ratifica o discurso teórico de Roland Barthes acerca da linguagem inaugurada por Camus. É na alternância lenta do plano silencioso e dos diálogos curtos, pouca fala, que Camus constrói seu texto. As primeiras páginas dão conta desse silêncio, às vezes luzidio, por vezes pesado e meio obscuro. Ouçamos:

Respondi “sim” para não ter de falar mais (p.10).

-Imagino que deseje ver sua mãe?
Levantei-me sem nada dizer...
(p. 11)

...e deslizavam em silêncio, na luz que cegava. Sentaram-se sem que uma só cadeira rangesse
(p. 15).

Embora levando-se em conta o contexto inicial do romance - o narrador no velório materno -, esse discurso da negação e da revolta, pontuado por pouca expressão verbal e vários momentos de silêncio, prossegue por todo o texto.

Essa escritura que reflete o neutro, o negativo, o ausente e o silencioso, como características do seu estilo, nos faz pensar no ensaio “O narrador” (1936) de Walter Benjamin, e na constatação de que perdemos mais uma faculdade calcada na oralidade: a faculdade de intercambiar experiências. No referido ensaio, o autor alemão atenta para o baixo nível do texto do jornal e para o mutismo característico do homem do pós-guerra. Esse mutismo, esse silêncio moderno está associado à vivência radical experienciada pela desmoralização que é a guerra.. Diz Benjamin (1996: 198):

No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável.

Camus parece captar esse clima de combate que exclui a experiência repassada de pessoa a pessoa, e estetiza o campo de batalha no cenário da própria vida cotidiana e no texto escrito. Sua narrativa engendra a negatividade do silêncio como senha que instaura a modernidade e suas linguagens sem elegância ou ornamentação (Longe vai o tempo no qual um autor brasileiro dizia ser a literatura "o sorriso da sociedade").

Essa falta de ornamento, a ausência de uma linguagem carregada de signos (Paund) parece refletir a própria secura da existência e do discurso de Meursault - o narrador camesiano. Esse reflexo evidencia um universo marcado por contradições como o exercício da mudez e a necessidade da fala. Ilumina uma trajetória de indiferença e contenção que se concretiza na colérica explosão purificadora do final. Essa ambigüidade de uma existência - silenciosa e sonora - vivenciada entre o abismo da mudez e a superfície da fala é uma senha. Através dela torna-se possível ouvir, na linguagem de O Estrangeiro, como o confronto entre o silêncio e a palavra possibilita a tessitura do discurso de quem narra.

BIBLIOGRAFIA


01 - BARTHES, Roland. “A escritura e o silêncio” e “A escritura e a fala” in O grau zero da escritura. Trad. Anne Arnichand e Álvaro Lorencini. São Paulo: Ed. Cultrix, 1971.
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02 - BENJAMIN, Walter. “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov.” in Magia e Técnica, Arte e política (Obras Escolhidas). Trad. Sergio Paulo Rouanet. 5ª ed. São Paulo: Ed. Brasilie2nse, 1993.
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03 - CAMUS, Albert. O Estrangeiro. Trad. Valerie Rumjanek. 8ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Record.
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04 - ______ O Mito de Sísifo. Trad. e apresentação: Mauro Gama. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1989.
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05 - ______ “América do Sul. Julho a Agosto de 1949” in Diário de Viagem. A visita de Camus ao Brasil. Trad. Valerie Rumjanek Chaves. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Record.