sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Quando o corpo e a paisagem chovem

Sobre a poesia de Elizabeth Gontijo

Texto apresentado em 2008 no II Congresso de Letras da Universidade de São João Del Rey- MG


1. O ciclo poético “de”

A poeta mineira Elizabeth Gontijo é autora de 5 livros de poesia. Três deles foram lançados na última década do século XX: De cor (1991), De amoras e outras (1993) e De um segredo (1999). Os outros dois títulos produzidos neste milênio são: Setembros (2004) e A Palma e o Verso (2007).

Proponho aqui uma leitura desta poética levando em conta essa divisão secular. Ressalto, nos três primeiros livros, o recorte vocabular dos versos onde escuto ecos das letras mineiras. Principalmente ecos roseanos, sertanejos: travessia – veredas – aragem – avessos – neblina - pedra... Chama atenção nos títulos destes três livros do século XX o uso da preposição de – De cor, De amoras e outras, De um segredo.

Com base na repetição seqüencial da proposição “de” nesses três primeiros títulos, leio, nesta fase inicial da poesia de Elizabeth Gontijo, uma poética da filiação. Nesta primeira fase, o leitor está, portanto, diante do ciclo poético “de”. Recordemos um pouco de preposição, então. Como uma palavra que liga dois termos entre si, a preposição estabelece entre eles uma relação de dependência. A gramática ensina ainda que em essenciais e acidentais são classificadas as preposições, sendo o “de” uma preposição essencial.

Para a leitura dessa filiação literária com essa preposição essencial, é bom lembrar que, por haver a dependência entre os termos, De cor é diferente de “cor” sozinho; assim como De um segredo não é igual ao segredo, o substantivo em si. Neste sentido, não é apenas o segredo em si que está em jogo, mas a idéia de alguma coisa que se liga, que se filia a esse segredo.

Nessa direção, a leitura da filiação aponta para uma poesia que se constrói a partir da idéia de pertencer. O poema acontece numa relação de pertencimento. Ou seja: alguma coisa ou algum ser dialoga com outra; está em interação com outro ser. Algum signo atrela-se a outro. E esse entrelaçamento entre os signos gera a matéria e a forma do poema.
.
.
2. Identidade e máscaras do feminino


Nesta poética da filiação, uma coisa vem sempre relacionada a uma outra, sugerindo uma filiação identitária. Em sintonia com essa filiação identitária, o primeiro poema do primeiro livro - De cor - chama-se “Identidade”. No seu diálogo com a tradição literária, o poema sugere a linhagem drummondiana do minério e do pó à qual Elizabeth se filia, como comprova a leitura de outros textos como “Minas” e suas pedras, “Minas” e suas luzes, por exemplo.

Essa filiação identitária, produzida no século XX, inscreve as máscaras de um feminino que ordena as miudezas e os gestos largos do cotidiano, apontando suas múltiplas direções. Múltiplas são, portanto, as máscaras desse feminino. Uma, na meia idade, se despe e penhora suas culpas. Outra máscara elucida um feminino que faz, farto da soberania da racionalidade, um pacto (“sombra”) e dialoga com as quaresmeiras sobre a paixão. No poema “Baile de Máscaras”, de Setembros, o tom muda radicalmente, dando maior consistência ao desejo que a máscara comporta.

Outra máscara do feminino exercita, de forma moderna, a visibilidade como “Ritual” e diz: “Com o olhar, ensaiamos um pacto”. Outras máscaras menos modernas preferem o tom confessional e elíptico dos diários, das cartas, dos bilhetes datados, e inscrevem a gradação crescente dos afetos dessa poesia guiada, lapidada pela magia do acaso. Haveria acaso? O poema “Átrios” do livro De amoras e outras (1993) já estetiza o futuro ao anunciar o livro “setembro” (2004) num verso isolado. O futuro é também estetizado, nesse mesmo livro de 1993, ao terminar com um texto intitulado “com o segredo”. Esse final anuncia, de certa forma, o volume seguinte que seria publicado em 1999 pela poeta: De um segredo.


Em De cor a poeta estetiza um discurso feminino que engendra um suave diálogo entre o sagrado e o erótico, a contemplação e o tato. Diz ela: “No escuro reza comigo,/ amansa meus cabelos, revoltos de outros carinhos.” Esse escuro fabrica a poesia do avesso, do invisível, embora seja esse um invisível que rutila na sombra, na penumbra, longe da cena do espetáculo e dos seus brilhos repetitivos. Esse invisível pode ser mensurado, por exemplo, onde a poeta “entre parentes” lê-se “entre parênteses” e palpitações. Esse invisível pode também ser lido na imagem da pedra. A produtiva lição que a pedra vem lecionando na poesia brasileira, desde o Arcadismo.


3. Corpo, paisagem e história


Na linhagem poética traçada principalmente pela poesia mineira, a pedra é um signo recorrente e que constrói roteiros. De Cláudio Manoel da Costa e suas penhas à conhecida pedra do meio do caminho do Drummond, há sempre uma lição da terra, suas pedras, para quem atravessa e descobre “a planície dos ombros” no poema “Amante”. Sugiro que nesta poética do ciclo “de”, os ombros sejam a capital do corpo da maioria dos eus estetizados pela poeta. “Estória Natural” e “Frágil”, dentre outros, são textos que justificam essa eleição metonímica dos ombros como capital (Drummondianamente falando, os ombros ainda suportam o mundo?).

Corpo, paisagem e história já renderam belos livros de poemas como O Romanceiro da Independência, de Cecília Meireles. Por algumas veredas da poesia de Elizabeth, ouve-se o fragmentado discurso da história e do cotidiano mais subjetivo passeando de mãos dadas. O sagrado fica de olho e, de quando em vez, ecos do seu discurso são também audíveis por entre veredas. Em alguns poemas, a história e a paisagem passeiam abraçadinhas. Esse passeio pela história, pela paisagem e pelo sagrado traduz um tipo de subjetividade que não exclui o signo erótico, a esfera dos afetos; e faz viajar o leitor por veredas que o sertão mineiro e sua poesia conduzem há tempos.

Ouçamos o poema “Entradas e Bandeiras” do livro De cor. Nele, Elizabeth empreende uma releitura da história mineira por “Veredas de mim”. Nessa releitura o seu recorte vocabular sugere os tons subjetivos e afetivos que permeiam o imaginário de nossa história política e social. Diz o poema:


Entradas e Bandeiras

Fulgurações de cidade antiga,
entre fantasmas da era do ouro.
Transeuntes de becos, musgos, ladeiras.
Luz intensa,
quase silêncio.
Como ávidos bandeirantes
repisamos graves,
pesadas botas.
Sem saber exato caminho
arriscamos escuros confins.


Relações entre o eu, a história e a paisagem intensificam a produção deste discurso poético. “In-confidência” é outro texto onde a história e a subjetividade dialogam. Esse eu que dialoga com a história e a paisagem não esquece a força de eros. Há ainda na poética de Elizabeth uma erótica da paisagem, como lemos em poemas como “Paisagem” (De amoras e outras) e “Horizonte” (De um segredo). Nos poemas “Espelho” e “Gestação” (De um segredo) a poeta trata de forma afetiva a paisagem e a história:



Espelho
...
Fruto maduro
quase gente,
a vaca sou eu,
com saudade da pré-história.
.
.

Gestação
...
Entre pólen e favo
a abelha trama um enredo.
Entre a flor e o fruto
o homem urde a história


Após o ciclo “de”, Elizabeth parece inaugurar uma outra poética e lança, em 2004, aquele que considero o seu melhor texto: Setembros. O livro abre com versos falando em “paisagem da escrita” e termina com “...Recomeço...”. Os poemas são menos fragmentados e, embora ostentem o poder de síntese que a poeta detém, há em alguns deles uns tons narrativos (“Limbo”) que tornam mais leves e consistentes os seus versos. Noutros, a autora se permite um tom coloquial, mais em sintonia com a linguagem do seu tempo, como no poema “Assombro”; embora ainda perdurem, em alguns poemas, ecos de um recorte vocabular (pena – valsa) que mais remete ao universo poético do século XIX.

.
Setembros apresenta madureza ao tematizar poemas relacionados às duas questões destacadas nesta leitura: a construção da identidade e a presença das máscaras do feminino, e as relações entre o corpo, a paisagem e a história. Acentuadas e amadurecidas em Setembros, essas questões possibilitam o “recomeço” de uma outra história poética. Nela encontramos substantivos e verbos que dizem das cores dos frutos, dos gestos dos corpos e do jeito de dizer que a poeta recorta aqui de forma menos velada. “Limbo” é um texto que estetiza esse jeito de dizer. É no limbo onde o corpo e a paisagem “chovem”, e dão conta desta história do feminino e suas máscaras.