quarta-feira, 21 de outubro de 2009

O Mito de Lilith em Quincas Borba






















Texto apresentado na IV Semana de Humanidades da UFRN em 1995



Lilith desconfiou das excelências de um paraíso que lhe proibia a maçã, em troca do pomar inteiro. Não quis também suportar o incômodo de conviver com um Adão submisso e atemorizado. Preferiu desbravar sozinha uma terra selvagem e abundante.

Nélida Piñon, O Pão de Cada Dia


I N T R O D U Ç Ã O


A leitura que ora empreendemos de Quincas Borba, de Machado de Assis, destaca, principalmente, a personagem Sofia e sua relação com Rubião - ente por ela enfeitiçado, enlouquecido. Procuramos mostrar, através de um estudo centrado no mito de Lilith, as nuanças do comportamento e do discurso elaborados por Sofia, o desenvolvimento de sua porção lilitheana e as conseqüências desta evolução junto às pessoas com as quais ela se envolve. Principalmente a relação com Rubião - objeto de sua manipulação e feitiçaria, cujo preço é a morte.
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Nosso estudo consta de um prólogo e três partes. Naquele, caracterizamos as dualidades do mito de Lilith e sua evolução, tendo como parâmetro os estudos da psicologia. A primeira parte ressalta a importância da linguagem elaborada por Machado de Assis e sua inserção no contexto da modernidade teórica do romance. A segunda parte comprova o sabor lilitheano do texto de Machado, e o desenvolvimento da narrativa a partir do discurso relacionado àquele mito. A última parte focaliza Sofia, seu discurso, seu comportamento, alguns mitemas lilitheanos. Comparar o objeto da paixão de Rubião com Lilith é o que objetivamos aqui.


Deus salva, Lilith seduz


I


Mito, lenda ou história, Lilith é signo ambíguo; leitura plural. Criada antes de Eva (criação eminentemente divina), ela consegue envolver-se com o sacro e o profano, o prazer e a morte. Seu império é ambulante: vai do Éden ao deserto, passando pelos quartos noturnos onde repousam almas solitárias. Domina ela o sexual e o psíquico. É bruxa, deusa, demônio. Se Eva alivia, Lilith seduz. Ou mata.
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Noturna e lunar, Lilith é uma representante completa do humano, no que tange às suas dualidades, tensões, auteridades. Lilith encerra parte da tragédia humana. No seu festim nem as criancinhas ficam de fora... O gosto de Lilith pelo sangue e pela sedução atesta a sua representação do humano: o homem pós-queda (Gênesis, Cap. 3) parece ser o animal que mais aprecia contatar o sangüíneo no ato de seduzir.
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Outros pontos unem ao Lilith ao humano. A própria natureza conspira a seu favor. Terras, mares, ventos, noites e luas são alguns do componentes naturais utilizados por Lilith para atingir o ser humano. Perene "bruta flor do querer", Lilith dilata narinas, seduz a todos com seus olores. Para a ficcionista e professora Nélida Piñon, "Lilith é capaz de seduzir o próximo com a vertigem que decerto existe no outro lado do espelho da maçã."
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Na tradição oral, os homens, após serem atacados por Lilith, morriam ou permaneciam melancólicos (Bárbara Black). As mulheres, também contatadas por Lilith, utilizam a descoberta da mesma para desenvolverem seus potenciais femininos.


II
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Segundo Sicuteri, Lilith ressurge, na cultura contemporânea (após as alusões às bruxas da Idade Média), na Psicanálise de Freud, na Psicologia de Jung, na Filologia, na Astrologia e na Arte (principalmente no Surrealismo e Dadaísmo).
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A Psicologia tem demonstrado a necessidade vital, por parte da mulher, de desenvolver a porção lilitheana. O contato com a porção-Lilith ou sombra lilith, possibilita às mulheres vivenciarem experiências de formas mais completas e profundas. Assim sendo, elas atentam para um melhor discernimento dos signos psíquicos e culturais. Atentam também para os processos da criação, para a capacidade de percepção do outro (e, portanto, delas mesmas); além de vivenciarem a plenitude de seus instintos de liberdade e da sexualidade. Lilith libera vibrações, sentimentos, sensualidade.
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Esta possibilidade de liberação psíquica e social proporcionada por Lilith é uma das causas da ascendência e propagação do seu mito. A lenda, a história de Lilith apresentam-se de formas cada vez mais convincentes, fortalecidas, aprofundadas. Antes, havia "...Deus e uma mulher oficialmente desfalcada de história" (Nélida Piñon referindo-se a Sara - esposa de Abraão). Hoje, a luta das mulheres em busca de seus direitos resgata parte desse desfalque histórico. Na tentativa de refazer a sua história, a mulher busca em Lilith as condições de liberação, através do desenvolvimento das qualidades que Barbara Black enxerga nO Livro de Lilith:

. a consciência lunar
(alusões aos ciclos crescentes e minguantes, vida, morte e renascimento)
. a consciência corporal
(instinto e sexo)
. o conhecimento profético interior e a experiência acima da lei e da lógica
. a criação

Tratando desta última qualidade lilitheana, Barbara acrescenta a importância do resgate desta força criadora, antes restrita ao Deus pai e criador. Diz a psicóloga de formação jungiana: "Ela é a parte do Eu feminino com a qual a mulher moderna precisa voltar a se relacionar, a fim de não ser mais uma proscrita espiritual."
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De demônio do deserto a signo projetado na Lua (mito grego), Lilith avança. Possibilita, ao evoluir, um vasto potencial de leituras que se vão propagando nos campos da religião, arte, psicologia e história, dentre outros. Os estudos elaborados nestes diversos universos de saberes e a própria história da liberação feminina evidenciam que este mito foi construido e atestado pela mentalidade patriarcal. Trata-se, portanto, de uma questão acima de tudo eminentemente cultural.


P A R T E I

QUINCAS BORBA: UM ROMANCE MODERNO


Considerado pela crítica como segundo texto da fase realista de Machado de Assis, Quincas Borba é o 6º dentre os 9 romances escritos pelo melhor romancista do Brasil. Romântico, realista ou moderno? A obra de Machado transcende a questão dos estilos na literatura, rompe com os padrões do romance, patrocina a ruptura de gêneros literários. O autor elabora sua linguagem a partir da leitura da memória literária universal, retrabalhando os arquétipos.
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No romance Quincas Borba é notória a fina carpintaria estilística do autor, na qual as elipses destacam-se nos traços do folhetinesco e do inacabado (característica da Sátira Menipéia). Na construção de seu texto, Machado demonstra alguns procedimentos que atestam a modernidade de sua literatura:
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a) A construção formal do texto a partir de capítulos que podem apresentar duas linhas ou duas páginas. São capítulos indeterminados, irregulares, com relação à extensão. Inacabados, abertos, repetitivos algumas vezes, os capítulos remetem uns aos outros.
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b) A ruptura da linearidade na narrativa, possibilitando novas dimensões temporais e outras possibilidades de leituras.
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c) O corte, o fragmento, enquanto procedimentos artísticos.
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d) A evocação de leituras, reminiscências de outros textos. O uso de citações, provérbios, ditos populares, além do procedimento paródico. Este repertório artístico introduz o intertexto na obra. Em Quincas Borba, a intertextualidade perpassa toda a narrativa, possibilitando ao leitor a audição de outras vozes. Referências à Bíblia, Goethe, Homero, Camões, Cervantes, Rabelais, Shakespeare e Dante, dentre outros, são constantes. Principalmente ao autor de Hamlet, cujos versos são repetidos e parodiados no decorrer da narrativa.
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e) A criação e permanência do diálogo mantido com o leitor. O narrador conduz o leitor com toques humorados que corroem, cobram reflexão, exigindo deste um repertório interdisciplinar (principalmente literário) que inclui a história e a política, dentre outras áreas. A importância da instauração do diálogo do narrador com o leitor é notória, ao percebermos, já no terceiro capítulo, o apelo do primeiro: "Vem comigo, leitor..." A dupla, após atravessar alguns dos 201 capítulos, aparece dialogando no último.
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f) O processo da metalinguagem, como demonstra o seguinte exemplo: "Ainda não disse, - porque os capítulos atropelam-se debaixo da pena, - mas aqui está um para dizer que, por aquele tempo, as relações de Rubião tinham crescido em número." Aqui, como em outros trechos, o narrador interrompe a história para elucidar seu processo criativo.
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No texto "A Modernidade do Romance", João Alexandre Barbosa situa Machado de Assis na tradição de Stern e Flaubert, caracterizando-o como moderno. Diz o ensaísta: "Na esteira do que mais essencialmente caracteriza a modernidade em literatura, Machado de Assis realiza a difícil operação de articular metalinguagem e história, conseguindo, por isso mesmo, transformar a linguagem da realidade em realidade da linguagem."


P A R T E I I
QUINCAS BORBA: LEITURA COM SABOR LILITHEANO


A primeira manifestação real de uma leitura com sabor lilitheano ocorre de forma sutil em Quincas Borba. Sutil é também a linguagem e o comportamento da maioria dos personagens de Machado. Esse primeiro manifesto de sutileza e sedução acontece quando Sofia envia para Rubião uma cesta de morangos. Acompanha a cesta um bilhete intimando-o a almoçar em sua casa. Comentando o episódio, diz o narrador: "Via-se a comoção no rosto e nos dedos do mineiro. O texto feminino foi relido, e o nome da remetente fez nosso professor beijar o papel." Este é apenas um primeiro gesto gerador de uma seqüência de sentimentos, além de sutis palavras e detalhes que vão surgindo na medida em que Lilith/Sofia e a narrativa avançam.
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Sofia usa, através de gestos e palavras escolhidas, seu arsenal de sedução, a serviço do Eu feminino. Deixa Rubião completamente enfeitiçado. O corpo da mulher, seus movimentos, olhos e cabelos negros, são signos que contribuem para o desenvolvimento da magia. Além disso, Sofia possui a arte maviosa e delicada de captar os outros (Cap. CLXXXIX).
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Rubião sente-se maluco, grosseiro, desafiado pelos olhos freqüentes, depois fixos, os modos, os requebros, a distinção de Sofia. Ela possui o dom de "...lhe dizer coisas melodiosamente afáveis." Quanto mais avançamos na leitura, mais clara é a percepção de que a esposa de Palha, além de seduzir, desarticula a linguagem de seu sócio. Por vezes, anula a sua capacidade de dialogar. Quando, por exemplo, Dona Tonica interroga Rubião, ele responde mecanicamente as mesmas palavras que a senhora utilizara na indagação. Motivo: concentrado estava Rubião na contemplação de sua musa, cuja capacidade de absorvê-lo é total.
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Constatamos que nas situações de tensão ou dúvida, Sofia tem sempre o domínio da palavra. Sua palavra atua feito arma: "Rubião tremia, não achava as palavras; ela achava todas as que queria..." Sem a propriedade do verbo, nosso herói torna-se presa de um sentimento dilacerante e burguês (no que este possui de posse, no dizer de Roland Barthes): o ciúme. A flecha preta alcança Rubião, demonstrando o grau da capacidade de sedução alcançado por Sofia. Ela, como Lilith, faz vibrar o sanguíneo, deixando as pessoas em situações de perda, como evidencia o narrador: "O ciúme trouxe ao nosso amigo uma dentada de sangue."
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No capítulo CLXI, o narrador relata um sonho no qual Sofia e Carlos Maria trocam um beijo úmido de sangue, cheirando a sangue. Ao acordar, ela mente para o marido dizendo que sonhara com o mesmo. Carlos Maria, ocupado pelo desatino de Rubião, torna-se objeto do desejo de Sofia e sua prima Maria Benedita. Esta, é induzida por Sofia a tentar Rubião, mas ele, guiado pelos estados de espírito da mulher, vivencia seu martírio. Não consegue ver na pureza de Maria (Eva) o que somente Sofia (Lilith) nele desperta.
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O sentimento de dúvida impossibilita as ações do seduzido. Sofia, utilizando-se da fragilidade de Rubião, faz com que aumente nele a dúvida em relação ao causador do ciúme; as possibilidades de envolvimento entre Carlos Maria e o objeto de sua paixão. "E o espírito de Rubião pairava sobre o abismo. Ele, atormentado, pensa em estrangular o infame..." Mas o mineiro não consegue estrangular sequer a dúvida que o persegue...

Da série de danos que Sofia provoca em Rubião, surge sua "consciência partida em duas, ambas desorientadas." No dizer do narrador, "Rubião era ainda dois". Seu ritmo levava-o em "marcha para a lua", encarnando a figura de Napoleão, frente às paredes, discursando como se fosse o imperador francês. Rubião, com a consciência partida e sem discurso, perde a noção da realidade e a capacidade de articular sua linguagem própria. Perde principalmente a possilidade de entrar em consonância com o outro.
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Como demonstram os estudo teóricos, o outro é portador do desejo que é verificável nas relações lingüísticas, sociais, sexuais. Por ser diferente, o outro atenta, contesta, pode romper. Mas é sempre ele que nos dá a nossa dimensão identitária. Na interação com o outro deparo com o eu. O outro "desintegra e atualiza a minha presença" (Caetano Veloso).
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Isolado em seu delírio, o mineiro não consegue interação com a alteridade. Por esse motivo, sua comunicação se dá com os astros, as estrelas, independente da condição humana; tendo a imaginação como suporte. A perda de contato com o real atesta a loucura de Rubião. Sua insanidade é provocada pelo desenvolvimento da porção lilitheana de Sofia atuando sobre ele. Ela leva-o ao isolamento, à loucura, à pobreza material. Leva-o, por fim, à morte e que esta tem de mais solitário, humano, lilitheano. Tudo porque Lilith, além de seduzir, mata.


P A R T E I I I
SOFIA: SANGUE, SALIVA E SEDUÇÃO


A
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A importância de Sofia, no elenco de personagens machadianos, é tamanha a ponto de no prólogo da terceira edição de Quincas Borba haver a sugestão para uma futura outra obra, baseada especificamente na personagem.
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Como se não bastasse, a paixão de Rubião consta do último capítulo, penúltima linha do texto: "O Cruzeiro que a linda Sofia não quis citar, como lhe pedia Rubião, está assaz alto para discernir os risos e as lágrimas dos homens." Os pedidos e súplicas de Rubião não são atendidos por Sofia, mas, depois de enfeitiçá-lo e enlouquecê-lo, ela o conduz ao isolamento, à morte.
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Comparada a outras personagens da literatura, como Rita Baiana, Medéia ou Carmem, cujas mortes são explícitas e reconhecidas, Sofia denota um comportamento de sutilezas e artimanhas psicológicas, cuja tragicidade implícita aponta um suave traço lilitheano. Ou seria este traço menos carregado, a suavidade lilitheana de Sofia, suas sutilezas, uma marca mais acentuada da perversão da personagem, na medida em que ela disfarça? Seria Sofia uma Lilith light ?
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Importante ressaltar que em Quincas Borba nossa heroína jamais é culpabilizada pelos seus feitos. Somente a ordem natural rebela-se contra Sofia. As rosas, num diálogo de jardim, "riram-se a pétalas despregadas", ao vê-la encostada na janela: "E tu, requestada de outros, que demônio te leva a dar ouvidos a esse intruso da vida? Humilha-te, ó soberba criatura, porque és tu mesma a causa do teu mal." Ao final do diálogo, as rosas, referindo-se a Rubião, concluem: "Tu és má, Sofia, és injusta..."
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Sofia, ao contrário da maioria das personagens literárias encarnadas no mito de Lilith, não recebe acusação de culpa por parte do narrador ou de quaisquer outros personagens. A única testemunha concreta da sua indestrutibilidade maléfica, da sua sedução, da causa da morte do mineiro, é o leitor. Este, como percebemos na primeira parte deste trabalho, possui relevante papel na construção da narrativa. Seria esta relevância tão acentuada, a ponto de somente ele, o leitor, ter a compreensão total da narrativa?

B

O capítulo XXXV do romance descreve e ressalta os atributos corporais de Sofia. Podemos relacionar tais atributos com o mito de Lilith. Numa reunião de senhoras, "... Sofia primava entre todas elas. Seus olhos parecem mais negros. A boca parece mais fresca. Ombros, mãos, braços, são melhores, e ela ainda os faz ótimos por meio de atitudes e gestos escolhidos."
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No final do mencionado capítulo, Machado canoniza Lilith: "Não a façamos mais santa do que é, nem menos. Para as despesas da vaidade, bastam-lhe os olhos, que eram ridentes, inquietos, convidativos, e só convidativos: podemos compará-los a lanterna de uma hospedaria em que não houvesse cômodos para hóspedes." Mediante tamanha beleza e poder de sedução (etimologicamente, seduzir significa desviar do caminho), Rubião pensa: "... Meu Deus! como é bonita! Sinto-me capaz de fazer um escândalo!"
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Como Lilith, a transgressora número 01, Sofia possui longos cabelos negros. O uso do corpo e do espelho é comum a ambas. O narcisismo de Sofia é exacerbado. Frente ao espelho (onde, segundo Barbara Black, as mulheres modernas encontram sua natureza-Lilith), Sofia "comprazia-se na contemplação de si mesma, das suas ricas formas..." Fazia ela 29 anos - idade na qual ocorre o retorno de Saturno, signo das trevas que povoam a existência humana, possibilitando mudanças radicais.
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Barbara Black, fazendo alusões à capacidade feminina de utilização do corpo, diz: "...uma mulher pode usar o rosto, o corpo, a maquilagem, os cabelos, as jóias, as roupas e o perfume a fim de acentuar sua eterna conexão feminina com os poderes sedutores de Lilith."
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O capítulo CXCII demonstra Sofia num salão de baile, utilizando-se de atributos exteriores a fim de alcançar os poderes aos quais refere-se Barbara. Ouçamos nosso narrador, referindo-se à Sofia: "Estava deslumbrante. Ostentava, sem orgulho, todos os seus braços e espáduas. Ricas jóias; o colar era ainda dos primeiros presentes de Rubião."
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C

A porção lilitheana da paixão de Rubião expõe-se, ao analisarmos as origens do mito tratadas por Barbara Black: "Para as mulheres, ela é a sombra escura do EU, casada com o Diabo. Mediante o conhecimento de Lilith e de seu esposo nos tornamos conscientes de nós mesmos."
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Desde o início de sua relação com Adão, "Lilith é apontada não como mulher, mas como demônio..." (Sicuteri, A Lua Negra). As relações demoníacas de Sofia são tenebrosas, como observamos no capítulo XL: "Disséreis que o Diabo andara a enganar a moça... E rindo, daquele riso oblíquo dos maus, propunha comprar-lhe não só a alma, mas a alma e o corpo..." O narrador diagnostica os sentimentos de Rubião, sem também deixar de lado as conotações destes com o demônio. Diz ele: "A corte é o Diabo: apanha-se uma paixão como se apanha uma constipação" (capítulo XLII)
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A beleza, "o rosto aceso de Sofia", seu poder de sedução, não escondiam do professor a maldade advinda da índole da mulher. "A senhora é má, tem gênio de cobra; que mal lhe fiz eu? Vá que não goste de mim; mas, podia desenganar-me logo..." Esta indagação e resposta de Rubião não possibilita qualquer gesto de Sofia a seu favor. Ela, às vezes, sentia repugnância do sócio de seu marido, chegando mesmo a ter por ele uma certa incompatibilidade de epiderme, como ressalta o narrador.
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Não apenas Rubião associa a cobra à Sofia. Dona Tonica, solteirona atormentada pela ausência do amor, chega a considerar hedionda a esposa do Palha. Via nela agora um monstro, metade gente, metade cobra... No capítulo XLIV, o rancor de Dona Tonica prossegue, pensando a filha do major em "estrangular Sofia, calcá-la aos pés, arrancar-lhe o coração aos pedaços."
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Associar a cobra ao comportamento feminino é característica do texto bíblico. No Gênesis III, 1 -2, a relação é explícita: "Foi o próprio Deus quem deu a Lilith esse destino ingrato e sua natureza é, portanto, astuta, como a serpente..." Também como Serpente Tortuosa, Lilith surge numa interpretação analítica do mito de seu casamento com Samael. Para Barbara Black, Ela é chamada de a Serpente Tortuosa, porque seduz os homens a seguir caminhos tortuosos. Em seguida, a autora associa Lilith com a questão do outro, ao classificá-la de Mulher Estrangeira, doçura do pecado e língua má.
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Além da cobra, outro animal é por Machado associado à Sofia. Trata-se do cavalo. Ouçamos como o narrador faz a relação entre o vertebrado e a mulher: 'Traz a idéia do ímpeto, do sangue, da disparada..."

D

Segundo Jung, "o iniciado encontra Lilith quando está a meio caminho da árvore da filosofia." Também aqui é viável uma relação entre Rubião e seu encontro com Sofia, quando ele contatava a filosofia de Brás Cubas - o Humanitismo. Jung assinala que para quem conhece o caminho da consciência, Lilith levará a transformações. Já para os inconscientes, como Rubião, que teve a consciência partida em duas, Lilith é perigo.
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Citando Jung, Barbara Black relata um caso analítico, como se fizesse referência a nossa personagem. Vejamos a coincidência: "Ele comenta que Sofia não pode ser associada a Eva, uma vez que Eva nada tem a ver com magia, mas ela (Sofia) pode, provavelmente, ser associada à primeira mulher de Adão, Lilith. "
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De Sofia, cuja porção Lilitheana desenvolve-se tendo Rubião como objeto, podemos dizer o que pensa Pavese, em seu raciocínio sobre as mulheres em O Ofício de Viver: "A mulher que não for tola, cedo ou tarde, encontra um farrapo humano e tenta salvá-lo. As vezes consegue. Mas a mulher que não for tola, cedo ou tarde, encontra um homem são e o reduz a um farrapo. E sempre consegue."
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Rubião, morto. Sofia – sangue, saliva e sedução - que o diga. "...a idéia de ter sido amada até a loucura, sagrava-lhe o homem." (Cap. CLVII).


B I B L I O G R A F I A


01. ASSIS, Machado de. Quincas Borba, Editora FTD, São Paulo.

02. BARBOSA, João Alexandre. “A Modernidade do Romance”, in A Leitura do Intervalo. São Paulo: Iluminuras, 1990.

03. DUARTE, Eduardo de Assis. "Muito Prazer Lilith". Inédito - Natal, 1994.

04. _____ "Representações do Feminino Demoníaco em O Cortiço, de Aluísio de Azevedo". Inédito - Natal, 1994.

05. _____ "Lilith na Literatura - Identidade e Transgressão". Inédito - Natal, 1994

06. KOLTUV, Barbara Black. O Livro de Lilith. São Paulo: Editora Cultrix, 1994.

07. KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. “Das Três Condições Necessárias para a Bruxaria”, in Malleus Maleficarum - O Martelo das Feiticeiras (Tradução de Paulo Fróes), Rio de Janeiro, Rosa dos tempos 1991.
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08. PAVESE, Cesare. O Ofício de Viver. Rio de Janeiro: Record

09. PIÑON, Nélida. O Pão de Cada Dia. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1994.

10. SICUTERI, Roberto. Lilith - A Lua Negra. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1990.