segunda-feira, 25 de junho de 2012

passando a chave




Caro(a) leitor(a)

Criado em 2009, este arquivo funciona agora apenas para consulta. Atualmente os meus textos são postados no blog Língua do Pé, no link http://linguadope.blogspot.com.br/

Abraço
Nonato


quarta-feira, 1 de junho de 2011

Os Sertões e “alguma coisa do temperamento nacional”


Ensaio publicado na revista e-scrita da UNIABREU: http://www.uniabeu.edu.br/publica/index.php/RE/article/view/105


RESUMO

Leitura de Os Sertões, de Euclides da Cunha, atentando para as práticas culturais produzidas no espaço e no corpo do sertanejo, e cujos reflexos podem ser lidos no imaginário e no “temperamento nacional”.

PALAVRAS CHAVES:

Os Sertões, Euclides da Cunha, Antonio Conselheiro, Imaginário, Corpo, Espaço.

ABSTRACT:

A reading of Euclides da Cunha’s Os sertões, focusing on the cultural practices produced in space and in the inlander’s body, whose consequences may be found in the imaginary and “national mood”.



I – Primeira leitura do imaginário nacional


...influência do meio.
Este, como que estampa, então, melhor,
no corpo em fusão, os seus traços...

Euclides da Cunha, Os Sertões


Na leitura que faz do “Brasil – Mito fundador e sociedade autoritária”, a filósofa Marilena Chauí lê um imaginário político, utópico e secular que nos identifica e com o qual dialogamos desde a colonização até hoje. Segundo a referida ensaísta, esse imaginário começou a ser construído com a chegada dos portugueses, e inscreve-se no cânone literário brasileiro através do nosso documento de batismo: a Carta de Caminha. Nela, a partir de procedimentos descritivos e comparativos, Caminha esboça nossos primeiros gestos e atitudes perante o outro.

Os gestos, as imagens, os sons e as formas desse imaginário primeiro construído pelos portugueses traduzem uma política visão de mundo segundo a qual, mediante os homens e a terra encontrados, aqui é o Éden perdido e separado por Deus. A construção desse mito fundador envolve, portanto, dois grandes paradigmas: a Bíblia e a natureza.

Cheio de fé e lindo por natureza, o Brasil é lido como um espaço no qual homens puros e felizes convivem harmoniosamente com a mãe natureza. Seus filhos – futuramente deitados em berço esplêndido (“eternamente”, não esqueçamos) ao som do mar e à luz do céu – seriam governados por um rei em sintonia perfeita com os anseios divinos.

Esta leitura do país como reino da harmonia e a tamanha pretensão de plenitude e magnitude lidas por Marilena Chauí teriam, quatro séculos depois da descoberta do país, um reverso. Isso se dá em 1902 quando o escritor e engenheiro Euclides da Cunha publica Os Sertões. Esse livro aponta para as muitas faces de um Brasil trágico e aflito. País de regiões difíceis, desconhecidas e diferentes onde múltiplas identidades em conflito se interceptam. Espaço bélico, corpo poético.

A leitura desses espaços e corpos aponta para as metáforas e metonímias de uma tragédia anunciada na paisagem de Canudos que nega, repete e agride nos confins da Bahia. Anuncia-se também, essa leitura dos fatos e figuras, no corpo do jagunço do sertão “em luta aberta com o meio, que lhe parece haver estampado na organização e no temperamento a sua rudeza...”

Essa tragédia anunciada se inscreve com mais vigor no “misticismo feroz” e na utopia delirante de seu personagem principal: Antonio Vicente Mendes Maciel – conhecido como o beato Antonio Conselheiro. Nascido em 1835, em Quixeramobim (CE), Antonio perde os hábitos sedentários e foge, segundo a história e as lendas, de um passado de perdas afetivas e materiais.

Ele vagueia pelos sertões em busca de uma outra identidade e termina erigindo um projeto utópico: “A utopia de Canudos foi resultado de anos de peregrinação, abandono de si, pregação e profecias” . Haveria, entre o beato Antonio Conselheiro e escritor Euclides da Cunha alguma semelhança ou projeção? O ensaísta Roberto Ventura acha que sim. Segundo ele, o escritor fluminense “projetou sobre Antonio Conselheiro e Canudos muitas de suas obsessões, como o temor da sexualidade, da irracionalidade, da loucura, do caos e da anarquia.”

Segundo Euclides, a biografia e a obra do Conselheiro – “grande homem pelo avesso” – compendia muitos dos gestos, traços e ditos que nos constituem. Eles dizem bastante da nossa temperatura e do nosso temperamento, como registra, algumas vezes de forma contraditória, principalmente a segunda parte de Os Sertões: “O Homem”.


II – Texto híbrido e viril que traumatiza e vinga


“Livro vingador”, Os sertões inaugura uma linhagem ensaística que repensa o Brasil e à qual se filia uma tradição que inclui autores como Mário de Andrade, Sérgio Buarque de Hollanda, Gilberto Freire, Darcy Ribeiro, Paulo Prado e Câmara Cascudo, dentre outros. Influenciado por Teine e outros autores pertencentes ao cânone positivista que perdurou no século XIX, o volume – dividido em “A terra”, “O homem” e “A luta” – é considerado um dos mais importantes retratos do Brasil e ganhou várias releituras críticas e literárias.

Neste livro escrito a partir das reportagens que escreveu para o jornal O Estado de São Paulo, o engenheiro militar de alma aflita recria a guerra e a destruição de Canudos pelas tropas republicanas, há cerca de cento e onze anos no sertão nordestino. O resultado foi o massacre de uma cidade com uma população estimada entre 10 e 25 mil habitantes, em 1897, como anota Roberto Ventura no seu belo esboço biográfico de Euclides da Cunha.

Na leitura de Antonio Cândido, este primeiro livro do escritor nascido em Cantagalo, no estado do Rio de Janeiro, é um marco. Para o crítico e ensaísta, Euclides concebeu um livro “entre a literatura e a sociologia naturalista”; um livro que assinala “um fim e um começo: o fim do imperialismo literário, o começo da análise científica aplicada aos aspectos mais importantes da sociedade brasileira” .

Texto híbrido que rompe com as noções de forma e gênero literário, Os Sertões pode ser lido como um ensaio histórico com tonalidades e sintaxes romanescas. Pode também ganhar múltiplas leituras com desfecho de tragédia, forma épica e alto teor de poesia. Euclides era um exímio leitor de poesia. Adorava os poetas e romancistas românticos. Lia Walter Scott, Fagundes Varela, Castro Alves, Guerra Junqueiro e Victor Hugo, dentre outros, embora tenha sido muito influenciado pelo realismo politizado de Zola.

Na sua curta e produtiva existência de 43 anos, Euclides da Cunha leu, viajou e escreveu muito. Durante suas viagens aos sertões baianos e à selva amazônica, ele leu com o próprio corpo a fauna e a flora brasileiras. Delimitou espaços nacionais e de fronteiras, através de mapas e relatórios infindos. Sentiu os excessos provocados pelo colorido sublime e grandiloqüente da selva e pelo grotesco e sanguíneo da guerra baiana. Dessas viagens e batalhas, o autor voltava doente e violado.

Leitor dos cronistas da época colonial e dos autores que gostavam de estudar o Brasil, como Silvio Romero e Capistrano de Abreu, Euclides gostava de filósofos como Comte e Spencer. Escreveu prefácio para o livro do poeta Vicente de Carvalho e sonetos onde se dizia “cheio de tédio e giz”.

Positivista que era contra a monarquia, escreveu muito em jornal. Por quase duas décadas publicou suas reportagens e ensaios no jornal O Estado de São Paulo. Foi na imprensa que Euclides primeiro criticou a monarquia e depois a falta de limites do lucro burguês, aderindo assim ao socialismo de Karl Marx.

Esse manancial de escritas e leituras oriundas dos mais diferentes campos dos saberes – principalmente da literatura, filosofia, ciência e história – está presente em Os Sertões. Lido também como saga ou epopéia em prosa, Os Sertões ostenta uma das mais volumosas fortunas críticas da Historiografia Literária Brasileira. Desde a sua excelente recepção crítica ainda em 1902, feita por José Veríssimo, o volume registra uma gama de títulos anunciando a escrita interdisciplinar, os procedimentos históricos e culturais e os recursos poéticos e lingüísticos dos quais Euclides lança mão.

A dimensão poética deste livro é tamanha, chegando o seu autor a ser relacionado ao seu contemporâneo Augusto dos Anjos, pelo ensaísta Gilberto Freyre. Alguns críticos ouvem na linguagem de recorte científico e nos polissílabos de Augusto dos Anjos alguns dos tons que anunciam a narrativa poética de Euclides da Cunha. O poeta Guilherme de Almeida, futuro participante da Semana de Arte Moderna de 1922, é um dos primeiros leitores a atentar para o alto teor poético de Os sertões, destacando a “preferência de Euclides pelo verso decassilábico”.

Por essas trilhas de poesia e linguagens múltiplas caminham também os irmãos Campos, em plenos anos 90, atentos ao “barroco científico” do autor fluminense. Esse barroco é registrado por Alfredo Bosi em sua História Concisa da Literatura Brasileira, em contraponto a Antonio Cândido e José Aderaldo Castelo, para quem Euclides escrevia num estilo “pomposo e tenso” .

Essa pluralidade de formas que engendram o texto de Euclides da Cunha tem possibilitado um gama de leituras críticas e proporcionado releituras literárias e estudos acadêmicos em torno de conteúdos históricos, culturais, geográficos, filosóficos, políticos, psicanalíticos, estéticos e até matemáticos. Dentre essas releituras literárias de Euclides, destacam-se três romances: A Guerra do Fim do Mundo (1982) do peruano Mário Vargas Llhosa – Prêmio Nobel de Literatura de 2009, Veredicto de Canudos, do escritor húngaro Sámdor Màrai (2002) e A Ressurreição de Antonio Conselheiro e a de seus 12 Apóstolos (2007) do escritor Moacir C. Lopes.

Inúmeros estudos críticos vêem tecendo produtivos intertextos de Os sertões com textos representativos de nossa literatura, como: Canaã, de Graça Aranha, Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freire e, principalmente, com Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa. A leitura crítica do século XX demonstra que sem os sertões ásperos e agonizantes de Euclides, não haveria os sertões míticos e lingüísticos de Rosa.


III – Os Sertões: espaço e corpo


Residindo na cidade de São José do Rio Pardo em 1901, Euclides erige, quatro anos após testemunhar a guerra de Canudos, um espaço narrativo repleto de sangue, suor e poesia. Sua arquite(x)tura moderna e literária engendra as dualidades que sedimentam a dialética que perpassa o século XX, expressando as contraposições e os limites entre rural e urbano, utopia e práxis, imaginário e corpo, desejo e lei...

Euclides engendra principalmente o antagonismo entre corpos e espaços. Ele inscreve uma Belo Monte brotada da caatinga, regida pelo Conselheiro e sua opção política pelo Império, contra o espaço urbano da recém instaurada República de Prudente de Moraes no Rio de Janeiro.

Testemunha da guerra, como jornalista de O Estado de São Paulo, Euclides estetiza o universo verbal e histórico do sertanejo pelas duras veredas de um espaço cujos contornos anunciam – nos seus signos naturais e imaginários – “o curso violento das balas” e a morte como uma bem aventurada experiência: “A terra é o exílio insuportável, o morto um bem aventurado sempre”.

Para a tessitura desse espaço onde a morte parece mais cultuada que a vida, Euclides lança mão de uma série de procedimentos estéticos e culturais. Produz um acirrado intertexto com autores como Silvio Romero, Gonçalves Dias e Teine, além de órgãos como a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; mune-se de um sofisticado recorte vocabular oriundo do universo das ciências e faz uso de alta taxa da oralidade sertaneja, por meio das anotações em sua Caderneta de Campo. Esses recursos orais podem ser aferidos nas muitas falas e expressões sertanejas que o autor ouviu da “boca jagunça do povo/ linguagem/ poesia viva/ explodindo em seus tímpanos civilizados” , como diz o poeta paranaense Paulo Leminski.

Em seus Anseios Crítpticos, o poeta do Catatau lê Os sertões como um texto “barroco positivista/ estilo de cipó”. O cipó serve de metáfora para um dos intérpretes do Brasil no final do século XIX: Joaquim Nabuco. “Joaquim Nabuco chegou a dizer que Euclides escrevia com um cipó” . Essa leitura que possui a crítica à linguagem como um dos seus alvos aponta para a gradação estilística e formal produzida pelo autor. Essa gradação formal abrange “um longo percurso textual”, que vai “das anotações às reportagens” até chegar a escrita definitiva de Os Sertões anos mais tarde. Segundo Paulo Leminski ,

Euclides da Cunha...
traumatizou
uma literatura feita por bacharéis
ornamental
“sorriso da sociedade”
brilho dos salões do 2o império



Euclides não é “ornamental”. Sua linguagem precisa mantém viva a narrativa de Canudos. Das pancadas do sertão e do ganzá ao barulho do mar e do “estouro da boiada”, muitos são os ritmos e tons audíveis nas imagens e gestos que compõem essa poética. Na leitura das figurações do corpo em suas relações com o espaço, atentamos para as práticas discursivas que se constroem com base em relações problemáticas e às vezes brutais onde a ação da paisagem sobre o corpo muito pouco tem de leve.

Essas figurações do corpo no espaço são visíveis no discurso e nas ações produzidos pelo jagunço em meio a rudeza espacial de Os Sertões. Neste texto, até os elementos geográficos são lidos como “personagens” históricos, como demonstra a seguinte passagem da primeira parte do volume – “O homem”: “A serra do Mar tem um notável perfil em nossa história.”

Os Sertões é um ensaio de representação do Brasil, através do qual podemos delinear muito da nossa identidade cultural e estética. O texto de Euclides continua produzindo releituras artísticas, como comprova a recente mega- montagem do diretor e dramaturgo José Celso Martinez Corrêa que, após estrear Os Sertões nos centros urbanos do país em 2007, agitou Canudos (BA) – jovem município baiano, emancipado em 1985. Na época da peça de Zé Celso, uma reportagem do jornal O Globo demonstrava que até 2008 o município possuía pouco mais de dez mil habitantes sem asfalto, cinema ou operadora de celular.

Com base nas relações tecidas entre o corpo e a dimensão espacial onde o imaginário recolhe sua substância constitutiva, dialogamos com Georges Balandier. Segundo ele, “o imaginário encontra sua substância no espaço”. No caso de Canudos, um espaço que favoreceu os sertanejos durante as três primeiras expedições enviadas pela República, e que os derrotou na quarta expedição.

Na narrativa poética de Euclides da Cunha essa “substância” brota dos espaços de rupturas e violências, como o campo de batalha de Canudos – espaço aflito e mortífero onde a organização política e as táticas militares das tropas enviadas pela República refletem “alguma coisa do temperamento nacional” .


BIBLIOGRAFIA

BALANDIER, Georges. O Contorno. Poder e Modernidade. Trad Susana Martins. Rio de Janeiro: Betrand Brasil, 1997.

BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 42a ed. São Paulo: Cultrix, 2004.

CAMPOS, Augusto de e Haroldo de. Os Sertões dos Campos: duas vezes Euclides. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997.

CARTA de Pero Vaz de Caminha. São Paulo: Martin Claret, 2003.

CHAUI, Marilena. Brasil: Mito Fundador e Sociedade Autoritária. 1a ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000. (Col. História do Povo Brasileiro).

CUNHA, Euclides da. Os Sertões. 39a ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves/Publifolha, 2000. (Grandes nomes do pensamento brasileiro).

LEMINSKI, Paulo. “Sertões anti-euclidianos” in Anseios Crípticos. Curitiba: Criar, 1976.

MOTA, Lourenço Dantas. Euclides da Cunha. A vida dos grandes brasileiros II. São Paulo: Editora Três, 1974.

PRAÇA, Delia Cambeiro. “Canudos ou a utopia de Antonio Conselheiro” in Terceira Margem. Revista da Pós-Graduação em Letras. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, Ano 4, nº 4, 1996.

VENTURA, Roberto. Retrato Interrompido de Euclides da Cunha. Org. Mário Cesar Carvalho e José Carlos Barreto de Santana. São Paulo: Cia. das Letras, 2003.

domingo, 8 de maio de 2011

Corpo em liberdade


Leitura do corpo e suas relações com o texto

A primeira versão deste texto foi escrita em 1991, na pós-graduação da UFRN, no curso “O Moderno e o Pós-Moderno”, ministrado pelo tradutor Keneth David Jackson, da Universidade do Texas.

...a visão clara de patadas rijas num corpo inerme...
Graciliano Ramos, Memórias do Cárcere

I

Acusado de ser comunista no governo de Getúlio Vargas, o escritor e ex-prefeito Graciliano Ramos foi preso em 1936. A narrativa desta prisão e o testemunho político e social do escritor encontram-se no livro Memórias do Cárcere. Dividida em dois volumes, a obra foi publicada em 1953, ano da morte do autor, cuja experiência radical no presídio pode ser aferida nesta assertiva memorialística: “A cadeia não é um brinquedo literário”.

Proprietário de uma linguagem seca, cortante, cujo lirismo aflora de forma moderna e muito peculiar, o velho Graça nunca brincou de ser literato. Quando foi para a prisão, ele já havia escrito os seus três primeiros romances que tiveram boa recepção crítica: Caetés (1933), São Bernardo (1934) e Angústia (livro publicado em 1936, quando ele estava na prisão da Ilha Grande, no Estado do Rio de janeiro).

Após conviver durante mais de dez meses em presídios fluminenses, com os mais diferentes tipos humanos, Graciliano sai da prisão. Desejando re-encontrar o seu “instinto de direção”, o autor alagoano se propõe a inscrever as primeiras sensações do seu corpo em liberdade, mas não o faz. Na “Explicação Final” das Memórias..., o escritor Ricardo Ramos ressalta essas “sensações de liberdade” referidas pelo pai como objeto de escrita futura.

As memórias e o desejo de escrita de Graciliano serviram de matéria para a construção de outros textos. O livro Memórias do Cárcere acaba onde começa a ficção Em Liberdade, de 1982, do ensaísta e escritor Silviano Santiago. Este recuperou falsamente a escritura de Graciliano, e escreveu outras memórias narrando a vida do autor alagoano após a saída da prisão. Trata-se de outro diário que faz alusões a um outro grande nome do cânone literário brasileiro do século XVIII: o poeta árcade Claudio Manoel da Costa, escritor mineiro como Silviano.

Com esse procedimento dialógico que envolve autores de diferentes contextos estéticos e históricos, Silviano inscreve a sua ficção pós-moderna. Essa inscrição leva em conta uma historiografia sincrônica, através de uma releitura estética e textual, onde a produção do simulacro traduz a consciência do duplo. Exercita a leitura da alteridade. Essa consciência do outro pode ser aferida nas imagens das memórias narradas pelo próprio Graciliano, leitor cujo corpo apresenta-se preso às formas da nossa tradição literária, como demonstra essa passagem do segundo volume de Memórias do Cárcere: “As amostras da ficção nacional pesavam-me nos joelhos e me traziam desassossego.” Várias outras passagens do livro apontam para as relações entre o corpo e a escritura. Comprovam essas relações, dentre outros, a imagem do próprio autor estirado na cama olhando os papéis abandonados sobre a mesa; as figurações do guarda moço de olho vivo que leva lápis e papel para o autor cujas pernas doem; as notas lentamente escritas e arrumadas na cama suja de hemoptises...

II

Essas figurações do corpo que dói, juntamente com as referências ao peso e ao desassossego remetem aos impasses causados pela memória na leitura do real. Segundo Lacan, no Seminário 20, “o real só se poderia inscrever por um impasse de formalização.” Essa busca de inscrição e esse impasse parecem servir de base para o romance Em liberdade. O texto simulado começa exatamente por um impasse: o autor não sente o corpo. Ele aposta na consciência das palavras, sem a coragem de ver-se inteiro. Nesta ficção, o autor tenta estetizar a experiência vivida no passado e impressa na carne. Ele deseja “soltar o corpo” que é “fonte de sofrimento”, transformando a memória em linguagem, discurso, ficção.

Nessa transformação lingüística e estética, o autor pós-moderno preocupa-se mais com o nível textual da escritura. Essa preocupação faz com que o texto se volte para si, para a sua forma, deixando em segundo plano os níveis temáticos, representativos que são dos modelos realistas. Neste diálogo entre os autores, interessa observar principalmente o texto enquanto corpo; isto é: atentar para as relações entre a escritura e o corpo que a produz.

No diário ficcional de Silviano, o corpo se refaz de palavra em palavra, de cena em cena. A cena do mar e sua re-descoberta possibilitam o resgate energético desse corpo que não pára de dizer: “o mar entregava-me de volta ao meu corpo”. No seu roteiro marítimo ele segue, “de membro enrijecido”, o corpo da moça como se ela caminhasse em procissão, e sugere: “Sei artimanhas de corpo que não ouso confessar.”

No simulacro das lembranças da prisão, uma outra forte cena corpórea irrompe da memória: a lavagem das mãos. Com volúpia, o narrador que relembra usa pia, água e sabão, enquanto a fila de corpos presos reclama o tempo e os materiais gastos em cerimonial simples, cotidiano. “Ele lavava as mãos como se estivesse fudendo” - é a frase que golpeia os tímpanos de quem narra nas memórias de agora.

Nessa ficção re-colhida nos fragmentos do memorial, tudo recomeça. Recomeça através de outra escrita. Recomeça na elaboração de um outro texto que diz ser “um corpo em disponibilidade para si e para o outro”. Um corpo que é templo da escritura. Corpo que rumina como texto a ser escrito. Um templo-texto onde certamente ecoam várias vozes cujos corpos voltam, de quando em vez, à superfície. Corpos na superfície da página. Eles voltam à superfície com a experiência de quem sabe que o mais profundo é a pele.

Bibliografia

LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 20 Mais, Ainda. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
RAMOS, Graciliano. Memórias do Cárcere. Vol I e II. 15ª ed. São Paulo: Record, 1982.
SANTIAGO, Silviano. Em Liberdade. Rio de Janeiro: Rocco, 1982.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Educação pela máquina

tanta tinta, tanto sangue, meu deus
e a gente nem ligou a impressora


sábado, 30 de abril de 2011

Ernesto Sábato (1911 – 2011)

Para Silvia Carcomo e o grupo de alunos que estuda Sábato na UFRRJ


I

Minha amiga Silvia Carcomo comunica que acaba de ler, no jonal La Nación, a morte do escritor Ernesto Sábato. Amo os escritores latino-americanos. Mais do que Borges, Cortázar ou Aira, o escritor argentino Ernesto Sábato marcou a minha vida. Nenhum professor o indicou. Descobri a sua obra através das Páginas Amarelas da Revista Veja, final dos anos 70, no internato em Junidaí-RN. Tinha por volta dos 15 anos. Desde então, nunca esqueci deste autor que é doutor em física, e que trocou as certezas dos teoremas e da lógica pela busca das "verdades" existenciais e literárias. Tenho de cor, até hoje, alguns trechos desta entrevista que possui "Sigam os sonhadores" como título. Nunca vi um autor com tanta crença nas Letras. Nesta entrevista, Sábato fala da literatura como forma de ler a condição humana, e aciona o leitor de uma forma que pouca gente tem coragem de dizer: só devemos ler o que nos interessa, o que nos apaixona. Sábato diz também que ninguém é o mesmo após ler um autor como Kafka (foi aí que eu mergulhei na Carta ao Pai, e quase me afogo nesta prestação de contas afetivamente desfalcada).

II

Anos depois li outros textos do Sábato. Os que mais me marcaram não foram O Túnel e Sobre Heróis e Tumbas, dois dos seus romances mais recomendados pela crítica, mas O escritor e Seus Fantasmas, de 1963 . Esse foi, talvez, o primeiro livro barthesiano que li (antes de ler o próprio Roland Barthes). Fragmentado e fruído, repleto de intertextos com a literatura, a filosofia e outras artes, este texto mais indaga e sugere do que aponta respostas para as questões que o próprio título anuncia. Além disso, o autor nos envolve nos meandros tecnológicos e existenciais do universo literário, sugerindo filiações estéticas e literárias e acionando o desejo de outras leituras. Tendo o romance e a forma literária como temas recorrentes, o livro de Sábato enaltece principalmente o sonho, o indivíduo na sociedade e a arte. Embora seja permeado pelas noções de dualidades, de polaridades, e repleto de menções às idéia de profundidade, totalidade e universalidade - e as demais ilusões criadas pela modernidade do século XX -, este é sem dúvida um livro indispensável para quem transita pelo universo da criação e/ou se interessa pelo mundo das letras.

domingo, 24 de abril de 2011

Overdose do real

De olho nos autores que começaram a publicar a partir da década de 90 do século XX, no Brasil, percebe-se que com essa chamada geração realista surge uma outra forma de profissionalização literária. A partir do surgimento dessa geração 90 e tendo por base alguns textos lançados pela geração 00, podemos dizer que um outro perfil do autor literário passa a ser redefinido nestas primeiras décadas do século XXI.

Para a construção desse perfil autoral, a publicidade pode armar estratégias de inscrição cultural e de consolidação literária, diferindo de tudo o que foi visto no universo das Letras. Antenado com a subjetividade maquínica e virtual, esse novo perfil autoral possui muito pouco do autor que tinha na leitura e na escrita de textos verbais as bases do seu universo literário. Para alguns desses autores contemporâneos, literatura é outra coisa. Seus procedimentos estéticos e culturais são outros. Para eles, a literatura transformou-se em algo bastante diferente do que era, por exemplo, a arte literária para um escritor do século XIX – o mais literário de todos os séculos, como diz Eduardo Lourenço.

O perfil literário contemporâneo surge em sintonia com os gráficos da mídia e do mercado, mas de ouvido aberto ao discurso da crítica. Esse novo autor busca atender demandas múltiplas como as patrocinadas pelas feiras de livros e eventos culturais como as bienais, por exemplo. Daí, as agendas trepidantes e os infindos roteiros – reais e virtuais – da maioria desses autores. Eles elegem as letras urbanas e as ruas modernas como “personagens” de seus textos.

Esses textos são lidos, em sua maioria, por um viés realista। Esse realismo não tem nada a ver com aquele velho Realismo cheio de certezas e das noções de totalidade que aprendemos com Lukács. Não se trata de um realismo que acredita no poder supremo da representação. Mas nele faz falta, muitas vezes, uma imersão inventiva no universo imaginário onde os sonhos da razão não produzam apenas referente, mas principalmente letras.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Ensaio sobre a porta

Perdidas as ilusões
e a inocência do turista
aprendiz, releu o encontro

marcado e mais

uma vez
o amor – cego – abriu
a porta e disse
venha