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sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Sertão, deserto – travessias


Gilberto Freyre diz, no livro póstumo De Menino a Homem (2010), que as palavras sertão e deserto possuem extrema relação. Tratando da origem da palavra, Freyre diz que “Sertão era aumentativo de deserto” . Essa assertiva remete às figurações de sertanejos que viviam em lugares distantes. Viviam longe da civilização. Pessoas que moravam no ermo. Pessoas “do sertão”, “de sertão”, daí o deserto ampliado – Desertão.

O sertão está em toda parte – anuncia Riobaldo em Grande Sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa. O sertão é o mundo. No sertão do serrado brasileiro brota uma das anedotas políticas mais ricas em torno do presidente JK. Conta-se que Juscelino convidou as imprensas nacional e estrangeira para conhecerem o solo no qual seria erigida a futura capital do Brasil. Um mar do jornalistas e fotógrafos adentrou o serrado, atendendo ao convite do então presidente. Os profissionais da mídia cercavam Sua Excelência, quando uma jornalista francesa indagou a ele se não era um absurdo construir uma cidade em pleno deserto. Ao que Juscelino respondeu: “Absurdo, minha jovem, é o deserto”.

O deserto é absurdo? O que fica claro nessa assertiva de JK é a necessidade que temos, como sujeitos modernos em constantes deslocamentos, de enfrentarmos o deserto e suas fronteiras. Fronteiras que também se deslocam. Fica claro nessa assertiva presidencial, o desejo de “amar” o “deserto e seus temores” .
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Na anedota de JK, fica nítida a importância de lermos as figurações do deserto – os seus vazios, as suas faltas, as suas senhas e areias de superfícies. Os sinais do deserto. Dobras. Curvas e retas. O deserto como origem e fim da travessia. O deserto, suas repetições. O deserto mais o cansaço da terra. O deserto e os homens. O nômade e sua travessia infinda pelo deserto e seus silêncios. “O silêncio do deserto também é visual”, diz Baudrillard. Sua leitura atenta para os planos silenciosos do deserto onde brotam a palavra e a imagem.

Espaço plano de onde brotam imaginação e pensamento em travessias infindas, labirínticas, o deserto deseja ser lido. Lido como crítica e metáfora da cultura contemporânea. Essa leitura crítica e metafórica permite entendermos a nossa condição finita e vazia num mundo no qual as idéias de superfícies e deslocamento deletam os roteiros da profundidade e da fundamentação.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Machado Moderno: discurso, corpo, memória




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Texto elaborado a partir da “Apresentação” do Simpósio Machado Moderno: discurso, corpo, memória, coordenado por mim no I Seminário Machado de Assis realizado na UERJ em parceria com UFRJ e UFF, Rio de Janeiro 08 a 11 de Agosto de 2008


Leituras do Real Sem Realismo


Cética, irônica, desconfiada, a modernidade caracteriza-se por, dentre outros, questionar os ajustes e as conexões entre a representação e a realidade. Machado de Assis (Rio de Janeiro, 1839 – 1908) antecipa essa problemática, e inscreve-se numa linhagem de criadores modernos que põe em xeque a forma e os padrões romanescos dos modelos românticos e realistas.

Se o narrador realista contradiz o idealismo e a subjetividade dos românticos, tentando analisar o mundo com exatidão e demonstrando uma atitude “científica” diante do real, Machado deles se diferencia abdicando da objetividade como lema. Nada naturalista, jamais acredita possuir as chaves do real: “...voltemos os olhos para a realidade mas excluamos o Realismo”, dizia. Descartando as idéias de unidade e de totalidade, o autor cria personagens volúveis cujas identidades são mutantes e contraditórias que nem a sociedade da qual fazem parte.

Como o professor Rubião, o seu personagem mineiro que vem morar no Rio de Janeiro, no romance Quincas Borba (1891), o carioca Machado também coteja “o passado com o presente”. Nesse cotejar, o autor de Memorial de Aires (1908) relê o arquivo de formas da tradição literária e cultural (William Shakespeare, Laurence Sterne, José de Alencar, Goethe, Edgar Allan Poe, Montaigne, Voltaire, Pascal, Schopenhauer...).

Essa sintonia com a tradição traduz uma leitura de mundo de quem lê a arte na “paisagem social” (Bosi) do final do século XIX – em pleno Segundo Reinado do Brasil Império – como “missão social”, “nacional” e “humana”. Essa releitura histórica e estética se dá de ouvido nas construções discursivas desses autores da tradição ocidental, de olho nas identidades e nas figurações dos corpos de seus personagens e atento às linguagens e às memórias de quem narra.

Temas, Formas, Procedimentos

O autor aciona, através desses procedimentos narrativos, um acirrado intertexto entre a literatura e outras áreas do saber e da criação, como a história, a mitologia, a cultura e a filosofia, além dos fatos sócio-políticos. Com base nessa intertextualidade, este simpósio acolhe, de forma interdisciplinar, as análises e leituras que inscrevem o diálogo entre as produções estéticas de Machado de Assis e essas áreas do saber, abordando questões relacionadas aos seguintes núcleos temáticos: o discurso, o corpo, a memória.

A abordagem desses três núcleos temáticos possibilita a leitura e a comparação de diferentes contextos. Estabelece inusitados diálogos e relações entre as noções de tempos e espaços. Sugere uma multiplicidade de conexões entre a produção de linguagem e a reflexão em torno de temas como: ideologia, violência, abolição, erotismo, loucura, religião, arte, política, nação... As leituras e interpretações em torno de tais temas possibilitam uma polifonia por meio da qual inscrevem-se as vozes de quem narra e as questões sociais, psicológicas e existenciais dos personagens.

Essas abordagens em torno do discurso, do corpo e da memória evidenciam as múltiplas formas inscritas pelo autor – conto, novela, teatro, romance, poema, crônica, carta, ensaio, tradução e crítica (de romances, estudos, teatro, óperas...). Evidenciam também os principais procedimentos estéticos e culturais que estruturam e se anunciam nessas formas machadianas como, por exemplo, a metalinguagem, a intertextualidade, o corte, o diálogo com o leitor, a paródia e a ironia. Como sabemos, esses procedimentos estruturam não apenas a construção da “letra” do criador da ABL, mas sedimentam as grandes narrativas da modernidade.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Relações entre espaço e escrita na “letra” de Luiza Lobo





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Literatura e Cultura / Projeto Litcult - ano 09 - vol 1 - 2005
http://www.litcult.net/revistamulheres_vol9.php?id=911


é sempre mais difícil
ancorar um navio no espaço

Ana C., Cenas de Abril


Parto de uma “antiviagem”. Nela, o navio de Ana C. simula a narrativa que se deseja recuperada, enquanto o espaço no qual esse navio deseja ancorar é lido como metáfora do espaço de inscrição de quem narra.

Afogada e dissolvida a grande “metáfora da navegação” que engendrou a narrativa épica, partimos de uma pergunta: qual seria nesta leitura, nesta “antiviagem”, a dificuldade encontrada pelo navio – a narrativa – para ancorar no espaço de sua inscrição? Esta, a indagação norteadora deste texto. Sei, de antemão, não existir uma única resposta para nomear essa dificuldade. No entanto, uma possível senha pode ser colhida em “Antiviagens” [1] – ensaio de Luiza Lobo no qual a autora propõe “uma leitura textual a partir da noção de antipériplo, antiépica ou de uma antiviagem ou viagem ao revés”. Referindo-se à desconstrução do gênero épico e sua travessia do epos, canto “coletivo e melódico” de um povo, para uma “produção” individualizada, a autora situa essa transformação épica numa história que ostenta o seguinte roteiro:

...uma história cada vez menos totalizadora e universal, porque dedica menos espaço ao sobrenatural, ao mitológico, e mais importância aos acontecimentos factuais e à forma como são vividos, tornando-se mais fragmentária e existencial...

Assumindo colher na leitura da modernidade de Walter Benjamin sua senha, Luiza nos dá um possível ponto de partida para a “antiviagem” empreendida a partir daquela indagação inicial: qual a dificuldade da narrativa para ancorar – inscrever-se – no espaço da escrita? Uma outra possível resposta para esta dificuldade pode estar na leitura das relações entre o espaço e a escrita, sugeridas no conto “O chupador acadêmico” [2] – o 6º dentre os dez textos que compõem o volume de Estranha Aparição. Neste conto Luiza Lobo estetiza uma pesquisadora acadêmica, cujas “narinas de fera sanguinária” farejam as empoeiradas páginas de uma antiga biblioteca universitária. Em seu “passeio lodoso pelas catacumbas do saber”, essa narradora contata um velho professor que está escrevendo uma enciclopédia, e vivifica [3]

...um universo lingüístico de quando a literatura era a rainha do mundo e único instrumento de lazer, uma era dourada anterior ao rádio, ao cinema, à televisão e ao vídeo, à história em quadrinhos e ao telefone.

Acrescente-se a esses suportes materiais o computador. Com base neste cenário maquínico e virtual e naquela história fragmentada – na qual a noção de totalidade perdeu o sentido – inscreve-se a escrita da geração de Luiza. Neste cenário circula um sujeito órfão dos “valores mítico-históricos e heróicos da Idade Média” [4], dos ideais humanísticos herdados do Renascimento e das idéias de representação e de produção do sentido cultivadas pela modernidade.

Se aos modernos coube a releitura dos valores transcendentes e a representação da cena do assassinato divino, à geração da autora restou uma simulação meio “portátil”: questionar a construção dos modernos valores metafísicos e transplantar o céu – antigo espaço de leitura do conhecimento – para a tela luzidia do computador. Um “céu” no qual, convenhamos, anjos, demônios e “chupadores” virtuais “navegam” por cenários em ruínas inscrevendo o mal-estar da civilização, da pós-modernidade.

É a partir deste espaço mutante – problematizado pela intensificação da ação da letra nele “ancorar”, ou seja, inscrever-se – que se projeta a escrita contemporânea. A leitura dessa escrita pode ser ouvida no registro de uma voz representativa da própria geração da autora: “Luiza Lobo lançou um muito belo livro de contos” [5]. Com essa frase, a poeta Ana Cristina Cesar encerrava uma carta de 1976 para Cecília Londres – sua ex-professora de Letras na PUC –, que se encontrava na Europa.

O livro ao qual a poeta de A teus pés faz referência intitula-se Por trás dos muros. Depois dele Luiza lançou, além de vários textos ensaísticos, Vôo Livre (1982), Maçã Mordida (1992), Sexameron (1997) e Estranha Aparição (2000). Na orelha deste quinto livro de ficção, o poeta Sebastião Uchoa Leite ressalta uma letra erótica que incursiona por zonas de estranhamento e indefinição, recorrendo freqüentemente ao humor. Mas, segundo o poeta de A ficção Vida , é de uma certa “mescla cultural” “que Luiza Lobo retira a súmula do seu poder inventivo”.

Esse “poder inventivo” da autora pode ser aferido já no conto “As ostras do sexo” que abre o volume de Estranha Aparição. No referido texto estão presentes alguns dos procedimentos estéticos dos quais a autora lançará mão nos contos seguintes. Dentre esses procedimentos destaca-se a predileção por uma escrita que possui na visibilidade um dos principais sentidos de sua inscrição. Plugado numa dimensão sensorial que aciona inusitadas comparações, o referido texto é fortemente centrado no sentido da visão, no “efeito da cor sobre a carne”.

Mas em Estranha Aparição – conto homônimo ao título do volume – a ação do olhar parece se fazer ainda mais visível. Constrói-se no referido texto uma espécie de didática do olhar atestada no uso de lexias[6], como: “dardejado um olhar”, “chegado ao olho mágico”, “olhos eram de louco”, “os olhos lhe perfurando o cérebro”, etc. Essa ação óptica presente no livro Estranha Aparição define, em textos como “As ostras do sexo”, a utilização de um recorte vocabular voltado para artes imagéticas como a fotografia e o cinema (cena, off, Setting, flashback, luz branca vazada, the end, ending...). Além disso, destaca-se em vários contos do mencionado volume o repertório da referida “mescla cultural”, como atesta o vasto intertexto histórico e literário tecido pela autora.

A predileção de Luísa Lobo pela linguagem visual é também visível em sua produção ensaística, como lemos no texto “Globalização e Ideologia” [7]. Neste ensaio, a autora reflete acerca das mutações ocorridas nos espaços da arte e da cultura, a partir das mudanças de percepções acionadas pela reprodutibilidade técnica, cuja inscrição se dá com base na recepção óptica de Walter Benjamin e na dialética da negatividade de Theodor Adorno. Segundo Luiza,

... a linguagem visual e cinematográfica apresenta a simultaneidade de sons, falas, movimentos, que se intercalam numa ordem aparentemente aleatória e numa velocidade impressionante.

Com base nessa linguagem, o conto “As ostras do sexo” apresenta – como numa montagem cinematográfica – imagens que se multiplicam na memória, sugerindo vários epílogos possíveis no decorrer da própria narrativa. Nesta inscreve-se uma letra que possui no intertexto com Stern, Drummond, Mário de Andrade, Marx e Mallarmé, dentre outros, sua base. A autora sabe que “a literatura pós-moderna se constitui de antipériplos, intertextualidades e antiviagens” [8].

Além desses autores com os quais Luiza aciona o procedimento da intertextualidade, dois poderosos mitos passeiam de mãos dadas neste espaço textual: Eros – promotor da vida e da desordem, e Mnemosyne – a deusa da reminiscência. Mas é aqui imperativo ressaltar a incompletude memorialística (“ostras boiando na memória apagada”), e a vivência de uma afetividade e uma sexualidade que geralmente descambam para o espaço dos questionamentos existenciais. Isso é notório na conclusão do citado conto, “As ostras do sexo”, onde a narradora cala e seu discurso interrogativo compartilha com o leitor a palavra final:

Não haveria um limite, um princípio, uma medida, uma causa, um enredo, afinal? Sorvia o café e não atinava com a resposta [9]



A Aindagação final da pesquisadora parece reportar à própria dificuldade de inscrição da letra num espaço no qual as noções de “medida” e “limite” foram destruídas pelas vanguardas। Podem, sobretudo, remeter aos princípios dos paradigmas artísticos e culturais desconstruídos pelo Estruturalismo e à releitura identitária acionada pelos Estudos Culturais. Para essa corrente teórica, o espaço de inscrição da identidade passa a ser enquadrado a partir do “espaço da escrita” e não mais do “campo de visão” do sujeito. Ou seja: para Homi Bhabha importa “o lugar discursivo e disciplinar de onde as questões de identidade são estratégica e institucionalmente colocadas” [10].

Com base nessa revisão histórica, esses estudos se voltam para o passado relendo a cultura não como viagem de retorno, mas como produção sintonizada com um devir; o que possibilita indagar o que poderemos fazer com nossa tradição e não o que ela, a tradição, poderá fazer conosco (Stuart Hall). Neste olhar para a cultura e a tradição, vislumbra-se também a releitura dos valores que fundamentam o cânone literário – um dos itens mais abordados no nível temático de textos como ”O Chupador Acadêmico”.

Podemos imaginar ainda que a falta de respostas e as indagações conclusivas da narradora de “As ostras do sexo” traduzem um tempo no qual a utopia parece debilitada e o sujeito cata uma causa, uma ideologia a partir da qual possa elaborar algum trajeto político e/ou existencial. Da narrativa tecida a partir desta problemática – os limites formais das vanguardas, a desconstrução canônica, a perda do sentido, a releitura identitária e o vazio ideológico – não restou mais do que uma viagem via linguagem. Uma “antiviagem”. Ou, como diz o “Chupador Acadêmico”, existe apenas “um simulacro de mistura de enredos”.

Ancorando o navio no espaço

É justamente neste conto – “O chupador acadêmico” – onde talvez possa ser vislumbrada, com mais nitidez, uma resposta àquela indagação inicial – a dificuldade encontrada pela escrita contemporânea para “ancorar” no espaço de sua inscrição. No referido texto Luiza utiliza-se, dentre outros, dos mesmos procedimentos entrevistos em “As ostras do sexo”: o repertório da “mescla cultural”, a mixagem de imagens visuais, a inscrição de Eros e Mnemosyne como mitos a partir dos quais o discurso da narradora se constrói e o intertexto literário.

Além da intertextualidade, em “O chupador acadêmico” – como o próprio título sugere – predominam procedimentos artísticos de apropriação da escrita e de vampiragem estética, como a simulação, a colagem e o “mosaico de citações” (Walter Benjamin). A partir disso, tornam-se audíveis no texto de Luiza as vozes de, dentre outros, Castro Alves, Olavo Bilac, Jane Austen, Machado de Assis, Shakespeare e Borges.

Essas vozes são audíveis num espaço no qual à escrita impressa imprime-se forte polifonia, e à letra virtual resta a releitura do nosso vasto arquivo de formas. Com a mesma desenvoltura, a narradora transita pelo polifônico espaço físico da página e da biblioteca e pelo imagético espaço da virtualidade. É interessante confrontar as diferenças entre esses espaços pelos quais ela circula. Enquanto os espaços da página e da biblioteca se prestam a um “passeio lodoso pelas catacumbas do saber”, ao virtual cabe a seguinte descrição[11]:

A cultura lépida e ‘clean’ da informática puritana tinha colocado em desuso velhos ranços da tradição parnasiana acadêmica, com seus lápis, canetas e fitas de máquina que borravam as mãos e deixavam os dedos rançosos de manuscritos herdados de velhos eremitas.

Neste asséptico espaço da cultura lépida e clean, uma nova escrita se inscreve. Ela se produz sob as bênçãos do computador – um “novo deus Thot” (o antigo deus da escrita), possibilitando a produção de um pensamento “de forma vulcânica, não aristotélica, pós-cartesiana e não dicotômica” [12]. Assim ocorre no conto “O chupador acadêmico”: a interação entre a escrita e o espaço físico, a página literária e o espaço virtual se dão de forma eminentemente sincrônica.

Ao imergir no espaço da escrita persuasiva de Jane Austen [13], a narradora tem a “idéia” “tétrica e delirante, mas também prática e atraente” de permanecer trancada por uma noite no deserto subterrâneo da biblioteca. Desse espaço de imersão – nas entranhas da biblioteca e depois na página de Jane Austen – a pesquisadora salta para o espaço da virtualidade, ao “ouvir um cicio como de uma cobra ou de um drive sujo de algum computador com problemas de hardware” [14]. É aqui que os três espaços da escrita – delineados pela movência de quem narra e sua sensorial demanda corporal – se articulam: o físico, o literário, o virtual.

Rastreemos, pois, o roteiro espacial da narradora, após adentrar os subterrâneos bibliotecários. Mergulhada no espaço do texto de Austen, ela colhe na página literária a senha para a sua permanência no espaço físico – o subterrâneo deserto da própria biblioteca; daí ela alcança o espaço da virtualidade onde contata o “Chupador Acadêmico”, sua fome intelectual de recarga e sua predileção pelos clássicos. Após ouvir o “ruído estranho” que a colocaria em interação com o “Chupador...” [15], a personagem sentiu-se

...envolvida num manto de esquecimento, como se o seu corpo tivesse desaparecido, e apenas os olhos vermelhos e empoeirados penetrassem nas páginas das obras, numa imensa web, sem comandos de sua parte.

Sem comandos de sua parte... Enquanto no espaço físico da biblioteca e no espaço da página literária a narradora comandava, de certa forma, os atos de ler e refletir, no espaço virtual ela passa a ser dirigida pelo “Chupador”. Nestes dois primeiros espaços físicos – a biblioteca e a página do livro –, o diferencial operado pelos sentidos comanda as ações e as reflexões da pesquisadora; enquanto no espaço da virtualidade essas ações passam a ser delineadas e traçadas pelo “Chupador Acadêmico” – presença virtual sem a qual a personagem assume não mais conseguir viver.

Apesar disso, é nos personagens literários das “páginas empoeiradas dos livros”, que a pesquisadora busca a sensual “presença” daquele que “constantemente” suga sua mente, suas forças. No espaço da página escrita ela tenta diariamente contatar o “Chupador Acadêmico”. Ou seja: para “ancorar” no espaço de sua inscrição, o “navio” da narrativa contemporânea requer a sincronia entre vários e diferenciados tempos e espaços. Principalmente o espaço da página escrita – espaço a partir do qual Luíza inscreve a letra de sua Estranha Aparição.


BIBLIOGRAFIA

01 - BHABHA, Homi. “Interrogando a Identidade” in: O Local da Cultura. Trad. Ávila, Myriam. et. al. Belo Horizonte: UFMG, 1998.

02 - CESAR, Ana Cristina. Correspondência Incompleta. Freitas Filho, Armando. e Holanda, Heloisa Buarque de. (org.). Rio de Janeiro: IMS/Aeroplano, 1999.

03 - ___ A teus pés. 6ª. Ed. São Paulo: Brasiliense, s/d.

04 - LOBO, Luiza. Estranha Aparição. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

05 - ___ “Globalização e Ideologia”. In: Globalização e Literatura. Discursos Transculturais. Vol. 1. LOBO, Luiza. (Org.). Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.

06 - ___ “Antiviagens”. In: Revista Terceira Margem. Viagens & Outros ensaios. Revista da Pós- Graduação em Letras da UFRJ. Ano IV/V – nº 5-6 – 1997-1998.

07 - ___ “A der(rota) na metáfora da navegação, de Jorge de Lima a Ana Cristina Cesar”. In: Perspectivas – Modernidades. Rio de Janeiro: UFRJ, 1988.

08 - SANTOS, Roberto Correia dos. e SZKLOS, Gilda Salem. “Leitura em fragmentos” in: Perspectivas 2. Ensaios de Teoria e Crítica. Rio de Janeiro: UFRJ, 1985.


NOTAS


[1] Lobo. Terceira Margem. 1997-8. p. 80.
[2] Lobo. Estranha Aparição. 2000. p. 83-101.
[3] Lobo. Op. Cit. 2000. p. 94.
[4] Lobo. Op. Cit. 1997-8. p. 80.
[5] Cesar. Correspondência Incompleta. 1999. p. 133.
[6] Aqui lida como espaço de possibilidades para a construção do sentido.
[7] Lobo. Globalização e Literatura. 1999. p. 39.
[8] Lobo. Op. Cit. 1997-8. p. 84.
[9] Lobo. Estranha Aparição. 2000. p. 32.
[10] Bhabha. O local da cultura. 1998. p. 81.
[11] Lobo. Op. Cit. 2000. p. 91.
[12] Lobo. Op. Cit. 1999. p. 40.
[13] Da autora da Ilustração inglesa, Luiza traduziu o romance Persuasão.
[14] Lobo. Op. Cit. 2000. p. 95.
[15] Lobo. Op. Cit. 2000. p. 99.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Ficção Contemporânea

Texto publicado no Diário de Natal, Natal-RN, 2004



















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sábado, 19 de setembro de 2009

Ouro, um beijo








Leitura da cidade de Ouro Preto-MG, destacando os aspectos históricos, estéticos, afetivos

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Texto escrito em Ouro Preto, de Out a Dez de 2001, e Rio de Janeiro, Fev de 2005.


Ouro Preto chama Paris.

(Milton Nascimento e Wilson Lopes, "Coisas de Minas")


Entrego-me a um vôo que se basta, sem a necessidade de idéias que o justifiquem. Um vôo sem destino. Só assim fundamos uma cidade: permitindo que ela nos funde.

(José Castelo, Fantasma)



A poeta norte-americana Elisabeth Bishop dedicou um de seus mais belos poemas – “Pela Janela: Ouro Preto”[1] – à cidade que dividiu com o Rio de Janeiro a primazia de hospedá-la, por quase duas décadas, aqui no Brasil. Nesse poema escrito na década de setenta do século XX, ela estetiza o antagonismo que se constrói, entre os elementos urbanos da modernidade e o secular conjunto arquitetônico, colocando para os ouropretanos uma aparente contradição que até hoje os mobiliza: como elaborar a sintaxe entre a tradição e a modernidade, o intertexto entre a raiz (o ouro colonial) e a antena (a fumaça de Saramenha). Detentora de um Plutzs – um dos mais importantes prêmios da poesia norte-americana, em “Pela Janela: Ouro Preto” a poeta vê:

um caminhão Mercedes Benz/ enorme e novo,/ chega e domina a cena. Na carroceria/ botões de rosa brilham, enquanto o pára-choque/ anuncia: chegou quem você esperava“.

Em plena seara árcade, o signo do caminhão e o seu texto de parachoque roubam a cena em plenos anos 70. Neste início de milênio, os automóveis continuam circulando pelo cenário colonial, para espanto silencioso dos casarões imóveis e dos mutantes visitantes que contemplam a cidade.

Fundada sob o signo de câncer, em 24 de Junho de 1698, Ouro Preto nos olha. Mas a cidade não se entrega ao primeiro olhar de quem a visita ou vê. Seus mais de trezentos anos emprestam-lhe a segurança de quem sabe ser o tempo pai da forma. Suas fachadas, seus vãos, as treliças e as janelas (fechados ou luzidios) estão sempre a nos espreitar, possibilitando um diálogo óptico através do qual somos mais vistos que vemos. Em Ouro, a luz é sem data, dizia Cecília Meireles. Aqui uma luminosidade suave (nunca indecisa) namora a pele secular das paredes – lição que nos ensina serem a leveza e a superfície princípios vitais da existência e da criação.

Mas não é apenas a visão o sentido solicitado neste espaço. Aqui, a construção do sentido se dá a partir de todos os sentidos. Se o olho alimenta-se pela verticalidade de torres e telhados, e pelo diálogo exuberante das ladeiras e montanhas, ao mirá-las sentimos o cheiro do mato suavizando a porção íngreme das ruas (e se o cheiro é o sentido que mais remete à memória, como sugere Jung, o visitante ouropretano levará consigo matéria para infinitas rememorações). Também o olfato recebe por aqui fortes incentivos. Enquanto perambulamos pelas ruas, ladeiras e becos de Ouro, é comum sentir o cheiro de flores, cheiro de café torrado, de roupa lavada; o que facilmente converte-se em takes que remetem à infância (Tarsila do Amaral disse ter recuperado aqui as cores de sua infância[2]). Em Minas lavamos a alma. Minas vara o tempo. Não apagar nunca é a sina dos que transitam ouvindo sinos, com “sede de viver tudo” (“Fazenda”, Nelson Ângelo).

Pelo ouvido, o sim do sino do Museu da Inconfidência dá noticias dos últimos séculos. Na pele, o vento inscreve uma brisa cuja temperatura promove a movência interna. Se o frio multiplica as sensações e os sentimentos, em Ouro Preto é fácil o sujeito devolver-se a si, livrar-se da alta cota de automatismo que a maioria das grandes cidades e suas agendas exigem de seus habitantes.

Além da visão, do olfato, da audição e do tato, os nativos de Ouro sabem também o poder do paladar. Fazem circular pelo céu de nossas bocas as iguarias mais saborosas: haja queijo, pé-de-moleque, caldos e pães em cores que intensificam o desejo (quem prova, no Hostel Brumas, o bolo de cenoura com chocolate, feito por Tainana, sabe do que estou falando).


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A MODERNIDADE DE OURO


Não apenas Ouro Preto, mas todo o Estado de Minas Gerais constitui-se num dos “personagens” mais importantes da História do Brasil e da Literatura Brasileira. No plano sócio-político os números expressam a dimensão dessa história que também é forte na economia. Segundo Boris Fausto, até a Abolição da escravatura, Minas Gerais foi a província com a maior população do Brasil, e o maior número de escravos. Em 1872, Minhas Gerais abrigava 2,1 milhões de habitantes, sendo considerada a província mais povoada do Brasil. No final do século XIX, Minas Gerais possuía 192 mil escravos, enquanto o Rio de Janeiro tinha 162 mil e São Paulo 107 mil (1887).

A partir da queda da produção aurífera (+ ou - 1760) os números da população começam a mudar. Em 1740, a cidade possuía 20 mil habitantes; em 1804, apenas 7 mil pessoas residiam ali. Depois da queda da produção do ouro, após a Inconfidência delatada (1789) e a transferência da capital para Belo Horizonte (1898), a cidade caiu no ostracismo. Isso se deu em virtude do desprezo das elites republicanas pelo nosso passado colonial e escravista; e pela aversão dessas elites ao estilo barroco. Ser moderno era a meta do novo regime. E para isso era fundamental apagar as pegadas coloniais.

Somente em 1924 a cidade foi redescoberta pelos modernistas Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, dentre outros, na viagem por eles empreendida pelas históricas cidades mineiras. No seu empenho de conciliar o novo com o antigo, os modernistas brasileiros viram por outro ângulo as imagens de decadência e fantasmagoria inscritas pela literatura de viajantes europeus que por aqui passaram no século XIX.

O caso de Ouro Preto com a modernidade é antigo. Além de Bishop, a cidade dormiu com os poetas Manuel Bandeira, Carlos Drummond, Vinícius de Moraes, Murilo Mendes e Maria Ângela Alvim. Em Ouro viveram os pintores Alberto Guignard e Carlos Scliar e, dentre outros, o compositor João Bosco que por lá morou dez anos. Este Ouro é matéria de arte. Não é à toa que ainda hoje pela cidade circula uma gama de poetas, pintores, atores, músicos, escultores e dançarinos. Alguns por aqui permanecem; outros ficam poucas horas. Mas a cidade acostumou-se com a efeméride de seus visitantes. Amiga do tempo, ela sabe que tudo passa; por isso seus hóspedes e visitantes também passarão.

Mas Ouro Preto também diz, em suas curvas e montanhas que a circundam, sobre o tempo do eterno retorno. O resgate da memória e a construção imaginária dos seus visitantes – efêmeros ou permanentes – voltarão nem que seja num retorno que, embora não sendo eterno, é imaginário ou memorialístico.

Aqui onde a memória do ouro, na cumplicidade com a bruma, materializou-se, ficaram as pegadas de nossa conturbada história política e social. Neste passeio pela memória, Ouro leciona o quanto pode existir de futuro nas cores de um jardim, na exatidão de uma ponte, num chafariz que não pára ou numa fachada que resiste.

Quem atravessa algumas das 10 pontes da cidade, mira seus 15 chafarizes, visita suas 12 igrejas e sobe suas inúmeras ladeiras – ritmado pelos sinos –, levará para sempre a cidade consigo; quem leu sua simétrica lição e ouviu “a voz em off” de suas montanhas, descobre ser Ouro Preto um arquivo de formas seculares (Bom lembrar: o próprio ouro é um material generoso, cujas qualidades físico-químicas possibilita múltiplas transformações, fazendo-o “receber” várias formas).

As formas desse arquivo urbano foram relegadas durante décadas ao esquecimento. Somente no contexto político da era Vargas, a cidade passa “a ser reconhecida como patrimônio, monumento do passado. A partir disso, institui-se um verdadeiro culto a Ouro Preto, ao barroco mineiro, à obra escultural do Aleijadinho. Isso é fruto da atuação do SPHAN...”[3], hoje transformado em IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).

A localização de Ouro Preto ao pé de encostas e montanhas é singular. Sobre essa singularidade, ensina-nos o escultor Romã. Segundo ele, o espaço em forma côncava anuncia as infinitas possibilidades de conter e guardar que a cidade possui; ao contrário do espaço convexo que a tudo faz deslizar, desprender-se. Nessa configuração espacial onde tantos ideais de liberdade foram plantados e colhidos, a antiga Vila Rica guarda a memória colonial do Brasil; contém muito do nosso imaginário social e político construído principalmente nos séculos XVIII e XIX.

Aqui, tempestades noturnas podem fazer ecoar os gritos de velhas senzalas ainda hoje visíveis como peças históricas. É também comum ouvir, de quando em vez, um grito no ar, uma palavra áspera rasgando o silêncio da noite. Às vezes, escuta-se uma retórica da cidade noturna que é bastante violenta, e que parece atravessar os séculos. Segundo os historiadores, no século XVIII a violência e a desordem eram “personagens” corriqueiros na antiga Vila Rica. Suas ruas, desde então, passaram a ser “lidas” como “espaço de transgressão”[4].



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SOB O SIGNO DO BARROCO


Mas é também neste cenário do setecentos que a antiga capital de Minas Gerais esplende sob o signo do Barroco. Antes lido como “estilo tropical tosco” e depois resgatado como marco de nossa infância estética, ele influenciou as formas arquitetônicas, o vestuário, a arte, as cerimônias religiosas e as festividades do país. Em Minas, essas influências são caracterizadas pelo “esmero e requinte da ornamentação e da iluminação das ruas, os carros triunfais, com alegorias móveis, danças coreográficas, representações teatrais, torneios poéticos, óperas públicas, batuques...”[5]

Do Barroco, Ouro Preto herdou sua maior riqueza estética. Prova disso são os templos eclesiásticos, sua exuberância, seus excessos. Neles observamos a preferência pelas diagonais, pelas curvas. Podemos observar os contrastes e as dualidades expressos nos tons claros e escuros da maioria das igrejas. Até mesmo as alternadas imagens de luz e sombra que a natureza esculpe em toda parte, por aqui parecem refratar os efeitos luminosos e sombrios dos templos ouropretanos.

Ouro Preto refrata o espaço e o tempo. Dependendo da hora, do clima ou da estação do ano, seu cenário muda. Às vezes, vivifica-se por aqui mais de uma estação no mesmo dia. A riqueza de detalhes da paisagem faz com que o leitor esteja constantemente relendo a cidade, cujas formas e cujos sonhos foram esculpidos em pedra e madeira por Antônio Francisco Lisboa – O Aleijadinho, hoje enterrado na Igreja da Conceição de Antônio Dias. Para este templo, ele esculpiu quatro Suportes de Essa. “...É um silêncio de pedra:/ um silêncio esculpido pelo Aleijadinho/ no frontispício desta noite religiosa” [6].

O registro da obra do Aleijadinho é notório em várias cidades mineiras: Congonhas, Sabará, São João del Rei, Tiradentes. Em Ouro Preto, sua marca está presente em várias obras. Atribui-se a ele, por exemplo, o projeto da igreja de São Francisco, sua capela-mor, os púlpitos, a portada e o lavabo. São obras de um autor cuja preferência pelas formas vigorosas e pelos corpos atléticos de olhos amendoados o caracterizam. Acerca dele e sua arte, ouçamos o poema “São Francisco de Assis” dedicado à referida igreja por Carlos Drummond de Andrade:

Senhor, não mereço isto.
Não creio em vós para vos amar.
Trouxeste-me a São Francisco
E me fazeis vosso escravo.

Não entrarei, senhor, no templo,
Seu frontispício me basta.
Vossas flores e querubins
São matéria de muito amar.

Dai-me, Senhor, a só beleza
destes ornatos. E não a alma.
Pressente-se dor de homem,
Paralela à das cinco chagas.

Mas entro e, Senhor, me perco
Na rósea nave triunfal.
Por que tanto baixar o céu?
Por que esta nova cilada?

Senhor, os púlpitos mudos
Entretanto me sorriem.
Mais que vossa igreja, esta
Sabe a voz de me embalar.

Perdão, Senhor, por não amar-vos
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A imponência das igrejas, seus adros e torres, constitui-se em Ouro num espetáculo à parte. Mas até esses suntuosos templos do cristianismo, apesar de sua solidez secular, sofrem mutação na paisagem onde nada permanece igual. Acontece que por aqui a natureza dialoga com a cultura impondo também suas leis. Assim sendo, é possível presenciar, da Igreja de São Francisco de Paula, ao desaparecimento das igrejas de Nossa Senhora do Carmo e de Santa Efigênia, frente ao poderio sutil da bruma na primavera.

A movência da bruma é outro espetáculo que contribui para a leitura da paisagem ouropretana. Da cor da bruma, o macho atravessou os séculos e seu poder continua visível e enorme como aquele automóvel que Bishop introduz no poema. Takes rápidos e cotidianos registram esse secular domínio viril da raça branca. Num balcão, o gordo senhor claro de bigodes pretos ainda recebe o carregamento de laranjas das adolescentes de costas negras; numa igreja, enquanto a moça branca de grife importada ora, a velha senhora preta - vestida de algodão colorido - varre o sagrado chão de Jesus.


Nas esquinas do centro histórico, os vendedores de frutas são na maioria negros, cujos olhos – da cor da jabuticaba que oferecem – parecem janelas que ainda anunciam o quanto de escuridão habitava as senzalas. Ainda hoje, durante as festividades de final do ano, os brancos circulam pelo centro histórico em seus automóveis, enquanto o povo – a maioria negros – se acumula na Praça Tiradentes; em alguns momentos parecem avivar ‘as imagens da antiga rebeldia”[7]

Este chão divino e rebelde serviu de cenário não apenas para o povo e os artistas modernos. Nele está enterrado o escritor romântico Bernardo Guimarães (no cemitério da Igreja de São José).
Também aqui residiram Thomaz Antônio Gonzaga e Cláudio Manoel da Costa (assassinado na Casa dos Contos, em 1789) – os mais importantes poetas do Arcadismo brasileiro. Para a cidade que dividiu com Coimbra a tarefa de acolhê-lo, Claudio dedicou o poema “Villa Rica”[8] – composto de dez cantos e 82 notas –, cujo “argumento principal” é a fundação da cidade. O longo texto exalta os heróis fundadores, constrói um imaginário vigoroso em torno dos sítios naturais e, sobretudo, faz reluzir o ouro e outras pedras preciosas:

Abertas as montanhas, rota a serra,
Vê converter-se em ouro a pátria terra

(p. 217)

As safiras azuis produz a serra
Do itambê, tem rubis aquella terra

(p. 240 - Canto VIII)

Ditosas povoações, que hão de algum dia
Encher de lustre a luza monarchia

(p. 246 - Canto IX)

Vê-se outro mineiro, que se ocupa
Em penetrar por mina o duro monte


(p. 260 - Canto X)

Deste “país” de safiras e rubis, de ouro e da Arcádia, saíram pedras para ornamentar os templos da BA, de PE e do RJ, além da Europa. Segundo historiadores, as cifras arrecadadas nas Minas, de 1714 a 1746, eram altíssimas. Só para termos uma idéia da “sugação” lusitana, no ano de 1734 foram enviadas para Portugal 120 arrobas de ouro em pó e em barras: mais de 221 mil réis em moedas de ouro e 4 milhões em diamantes[9]. Ouro Preto tinha, no auge de sua produtividade econômica, cultural, artística e religiosa, o comércio mais movimentado do país. Além das pedras preciosas e das barras de ouro, outros produtos como algodão, couros, marmeladas e queijos saiam daqui para SP, BA, RJ e MS, dentre outras capitanias.


Essa opulência sócio-cultural e a ganância lusitana fizeram despertar idéias revolucionárias. “Se todos quisessem, poderíamos fazer no Brasil uma grande nação”[10]: Esse, o lema de Tiradentes. Ele e Felipe dos Santos - inconfidentes signos da condição brasileira de liberdade - pagaram um preço altíssimo por seus ideais. (“Em Minas respira-se liberdade”, anuncia um adesivo numa das 70 repúblicas estudantis da cidade; Minas dá bandeira: liberdade ainda que tardia).


Algumas pegadas desta história em busca da liberdade podem ser vistas na Casa do Pilar, situada no centro histórico de Ouro Preto. Ali se encontram livros pertencentes a Tiradentes, como a constituição americana, além dos autos do processo que o levou à morte, junto a documentos dos participantes da Inconfidência Mineira. Como ensinam os manuais de História, Tiradentes pagou caro: foi condenado à forca em 21 de Abril de 1792, e teve seu corpo retalhado e a cabeça exibida na praça de Ouro Preto.


Nenhum outro momento da história brasileira entreteceu com a poesia uma malha tão fecunda como o fez a Inconfidência Mineira. Poesia e Inconfidência são termos mutuamente implicados. Em primeiro lugar, pelo fato de poetas (Tomás Antônio Gonzaga, Alvarenga Peixoto, Cláudio Manuel da Costa...) terem participado do movimento ao lado de militares e liberais de toda sorte. Em segundo lugar, pelo fato de a Conjuração Mineira ter se convertido num tema literário que, despontando com os românticos, atravessa longitudinalmente toda a poesia nacional: de Castro Alves a Cecília Meireles, passando por Olavo Bilac, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e muitos outros.

Parte desse interesse dos poetas pela história mineira e seu solo pode ser mensurada em várias antologias. Dentre essas, destaco Vila Lira Rica, organizada pelos poetas da Cálamo, e a Antologia Poética de Ouro Preto, organizada por Jusberto Cardoso Filho. Essa última se organiza em torno de poetas brasileiros que tematizam a cidade e sua história, e cuja estetização conta com o olhar da maioria dos poetas árcades e, dentre outros, Guilherme de Almeida, Augusto dos Anjos, Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Manuel Bandeira e Vinícius de Moraes. Todos eles escreveram um poema à cidade onde “a flor nasce com força/ de odisséia” (Armando Freitas Filho).


Nesses arquivos históricos encontram-se também recibos e rabiscos pertencentes ao Aleijadinho, e o inventário da própria Marília de Dirceu. Além disso, há um exemplar de 1792 da obra de Thomaz Antonio Gonzaga que tem a musa ouropretana como título (a edição de “Marília de Dirceu” aqui utilizada data de 1862 e encontra-se na biblioteca da Casa dos Contos). De Claudio Manoel da Costa está arquivado, na Casa do Pilar, um tomo volumoso - de tamanho pequeno e capa original - que tem como título Obras Completas. O referido volume, contendo sonetos, fábula e cantatas, dentre outros, data de 1768 – marco inicial do Arcadismo brasileiro.

CORES E CARROS

E qual a cor dessa cidade tão pintada, cartografada e fotografada por artistas, historiadores e turistas? Se Curitiba é verde, como afirma o escritor José Castelo, se Natal é azul claro, como sugere a poeta Iracema Macedo, se é verde-azul o Rio de Janeiro, como entoa Guilherme Arantes e se Nova York é avermelhada, como lê meu amigo Bito, qual é a cor de Ouro Preto? Levando em conta a negritude sugerida pelo próprio nome, as mutantes tonalidades com as quais a natureza tinge a cidade, e de olho na multiplicidade de cores alegres e ousadas de suas fachadas, pode-se ler Ouro Preto como uma colorida cidade coberta de luz e sombra (mas não é o colorido festivo e escarlate da pulsante Salvador o mesmo daqui; em Ouro, a sintaxe das cores se dá de forma sóbria, remetendo a uma outra leitura).

Para melhor ler e contemplar o colorido deste cenário iluminado e sombrio, seria interessante que os seus dirigentes desviassem do centro histórico – principalmente da Rua São José e da Rua Direita – o tráfego de veículos que por ali circula. Esse desvio evitaria danos à cidade. Faria transitar com mais desenvoltura os seus moradores, hóspedes e visitantes. Faria também com que os sobrados e casarões – e não os automóveis, como no poema de Bishop – dominassem a cena. Neste novo trânsito todos sairiam ganhando. Principalmente a cidade de Ouro Preto - patrimônio universal da humanidade. Espaço permanentemente aberto à criação. Uma das raízes tentaculares do Brasil.


BIBLIOGRAFIA

01 - ANASTASIA, Carla Maria Junho et al. “Dos bandeirantes aos modernistas: um estudo histórico sobre Vila Rica” in: Oficina do Inconfidência. Revista de Trabalho. Ano 1, nº 0, Ouro Preto, 1999.

02 - BANDEIRA, Manuel. Guia de Ouro Preto. 4ª Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.


03 - BISHOP, Elisabeth. Poemas do Brasil. Trad. Paulo Henriques Brito. São Paulo: Cia. Das Letras, 1999.


04 – CARDOSO FILHO, Jusberto. Antologia Poética de Ouro Preto. Ouro Preto: Ed. Autor, 1995.


05 - COSTA, Claúdio Manoel da. “Villa Rica” in: Obras Completas. Tomo II. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1903.


06 – FAUSTO, Bóris. História Concisa do Brasil. São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial, 2002.


07 - GONZAGA, Thomaz Antônio. Marília de Dirceu. Rio de Janeiro: Livraria de B. L. Garnier, 1862.


08 - LIMA JUNIOR, Augusto de. Vila Rica do Ouro Preto. Síntese histórica e descritiva. Belo Horizonte: Ed. Do Autor, 1957.


09 - MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.


10 – WEINTRAUB, Fábio. (Org.). Vila Lira Rica. São Paulo: Cálamo, 1994.


NOTAS

[1] Bishop. “Poemas do Brasil”. 1998.
[2] Anastasia. “Oficina do Inconfidência”. 1999. P. 128.
[3] Anastasia. Op. Cit. P. 131.
[4] Anastasia. Op. Cit. P. 73.
[5] Anastasia. Op. Cit. P. 81.
[6] Versos do poeta Guilherme de Almeida na Antologia Poética de Ouro Preto.
[7] Costa. “Villa Rica”. 1903. P. 210.
[8] Costa. “Villa Rica”. 1903.
[9] Junior. “Vila Rica de Ouro Preto”. 1957. P. 33.
[10] Junior. Op. Cit. P. 127.



domingo, 9 de agosto de 2009

Pedra com limo





Uma versão deste texto foi publicada nO Jornal de Hoje, Natal, 12/01/1999


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Para Regina, Lenita e Rute Pinheiro


Uma educação pela pedra, por lições;
para aprender da pedra, freqüentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
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João Cabral de Melo Neto, "A Educação da Pedra"
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Com Itacirica, a pedra que pensava (INL/Abril Cultural/MEC, SP), o professor e escritor Waldson Pinheiro ganhou o Prêmio Mobral de Literatura/73. No prefácio do livro, o poeta Mauro Mota diz que o texto de Waldson ensina as coisas e ensina o melhor jeito de ensinar as coisas. Crendo no valor didático e comunicativo da narrativa, Mauro conclui: "Provocada por um romancista, a pedra abre-se e comunica-se fora da solidão e dos silêncios de pedra".

Lidando com o inusitado de criar uma personagem-pedra, Waldson parodia a (im)possibilidade da fala dos que não têm fala. Dá voz a um ser da natureza, num procedimento semelhante aos dos autores românticos que se utilizavam dos nossos cenários e simetrias tropicais para criar poemas, ensaios, narrativas... Na trilha aberta pelo Romantismo - que inscrevia um projeto identitário para o país e estetizava o indígena na categoria de herói -, Waldson leciona nossa história de costumes herdados dos indígenas (como as queimadas dos roçados) e nosso ritmo provido dos homens da cor da noite. O autor ressalta ainda a porção ecológica do indígena, nossa herança antropofágica, os costumes portugueses e africanos. Para o autor, "a raça daqui vai se misturando cada vez mais. Antes era só sangue de branco com sangue de índio. Agora acrescentou sangue de preto. E se dessa misturada sair uma raça amiga da boa paz, pra que coisa melhor? É levar a receita para outros cantos" (p. 90).

Escrito numa linguagem clara e direta, Itacirica... exibe - em seus 10 capítulos - lendas, relatos históricos, questionamentos existenciais e uma profissão de fé para o bicho homem. Otimista, Waldson outorga memória e discurso para sua personagem. O fato da pedra narradora possuir um memorial e deter o poder da linguagem transforma-se em signo de possibilidades para esse bicho que, às vezes, mais parece ordinário do que extraordinário em virtude das adversidades sociais e culturais que o cercam.

No espaço narrativo, o autor opera com o extraordinário, o maravilhoso. Num procedimento poético, a pedra nomeia as coisas humanas e, utilizando-se da linguagem coloquial, de provérbios e ditos populares, recicla-os, apostando numa didática incomum. Ouçamos a pedra que pensava lá com seus torrões: "...o mesmo dia foi da caça e do pescador." (p.47) Ou: "...e, um belo dia, bumba! meu boi, ela despenca do poleiro e lá vem rolando, que é mesmo arreda, senão eu passo por cima" (p. 28) E através da ação da linguagem a pedra inscreve-se, como demonstra essa recriação de ditos populares: "Vento frouxo em pedra fixe/ Não se arreda até que lixe" (p. 16).

Como o poeta mineiro de Itabira que tinha uma pedra no meio do caminho, Waldson também inscreveu a pedra do seu roteiro. Ela, como a pedra do itabirano, fala. Diz na sua mudez de signo que aponta, rola, refaz. Cria limo. Pedra que move. Vira fragmento de outra pedra que pensa, de forma concreta, homem que fala. Basta ouvir Gregório Pinheiro - neto de Waldson que, aos 6 anos, conhecia 4 idiomas: falava português e espanhol; estudava inglês e catalão. Basta antentar para as antenas e raízes de Larissa Spinelli, atualmente cursando mestrado na UFRJ. Waldson Pinheiro viveu cercado de livros, letras e páginas. Falava e lia vários idiomas. Como o olhar pessoano do autor, verão seus netos a língua como pátria?

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Os abismos da pele e as superfícies da alma

Uma versão deste texto foi publicada nO Jornal de Hoje, Natal, 05 de Fevereiro de 1999





os poetas Celso da Silveira e Eli Celso


INCIDÊNCIA
Para Eli Celso

Um sol de sal
tão vertical
sobre meus dias.
...

Myriam Coeli



Nenhum poeta potiguar publicou tanto em 1998 quanto Eli Celso. Primeiro ele lançou Ensaios Minimalescos, pela Boágua Editora, batizando de João Antonio Cajado Botelho seu irônico e bem humorado "quase heterônimo". A "ironia amarga" deste João, segundo o próprio Eli, estaria inscrita no último guru de uma linha cuja sucessão inclui autores como Hume e Cioran, dentre outros.

Em seguida, Eli Celso lançou Não & círculo - texto incluído no volume Ceia das Cinzas, um livro publicado com os poetas Iracema Macedo e André Vesne. E, por fim, veio a público Reminiscências do Tártaro, texto escrito na década de 80, incluído num livro em parceria com Celso Boaventura Jr e suas Lamentações.

A esses três títulos lançados em 1998, some-se o texto “Labiríntica ou cidade delenda!” - belíssimo escrito em prosa dedicado a seu pai, o escritor Celso da Silveira (vide vídeo), e publicado em Range Rede (Revista de Literatura, Rio de Janeiro, nº 3, 1998). Nesta revista, o poeta potiguar integra um elenco de peso, onde destacam-se autores como Benedito Nunes, Merquior e Dario Restrepo, neste número especialmente dedicado a Jorge Luís Borges.

Além dos três títulos acima mencionados - Ensaios Minimalescos, Não & Círculo e Reminiscências do Tártaro -, a bibliografia de Eli Celso ostenta outra tríade de publicações: Elogio das Figuras Borradas (1991), Vale Feliz (1991) e Rua do Coração Perdido (1995). Este último livro, incluído na coletânea Gravuras foi, juntamente com Vale Feliz, lançado com a participação de Iracema Macedo e André Vesne (o poeta Celso Boaventura também participa da coletânea Vale Feliz). Para 1999, Eli planeja iniciar a escritura de sua tese de doutorado em Literatura Comparada (UFRJ), além da publicação de Driftings, Rotations e Translations - livro com poemas em inglês, a ser lançado pela editora Boágua.


No horizonte da poesia



Natal
Sem aura nem ideologia, a poética de Eli Celso não distingue temas nobres ou menores. Diz o poeta: Estou sempre me colocando fora das distinções maniqueístas de sagrado x profano. As coisas são o que são, dê-se o nome que se quiser a elas. E como o algo que são, não deveriam ser discernidas. Esse trânsito indiscernível pelo universo da palavra permite uma pluralidade de leituras. Dos aspectos da virtualidade às minúncias concernentes ao universo das pulgas; do martírio colorido de Frida Khalo aos mares de Jasão; das reminiscências da bisavó Dondon às prostitutas de Maxaranguape; tudo pode ser estetizado no poema deste exímio leitor de Murilo Mendes e Myriam Coeli - mãe do poeta, e autora dos seguintes livros de poesia publicados na década de 1980, em Natal: Vivência Sobre Vivência, Cantiga de Amigo e Inventário.

Herdeiro dessa "vivência" poética, cuja "incidência" solar verticaliza o sal, a cal, o vento, o sangue, a sombra, Eli produz uma "letra" cuja estetização parece ser mediada por uma linguagem que sonoriza os abismos da pele e as superfícies da alma. A produção dessa linguagem alegórica diz muito das formas do deserto e das paisagens eletrônicas habitadas por imagens velozes. De olho nessas figurações mutantes, o poeta anuncia que algo se prepara na Rua do Coração Perdido:

E queria dizer que algo se prepara,
que a metamorfose
ruge e fia,
que a metamorfose
lã e zela.
Faz cera e cala.
Asa.
Zera.


O poema de Eli é construído sem catecismo teórico nem bula vanguardista. Nele, podemos ler uma intensa intimidade do poeta com o signo verbal e suas nuanças. Sua poética ostenta um visível apreço pelo trabalho com a sintaxe, além da presença dos procedimentos da re-leitura da tradição literária, da reminiscência e da ficcionalização da memória.


Esta poética sugere um leitor que, a exemplo de Borges, recria a existência, confundindo os limites entre a memória emocional de quem lê e as figurações do memorial produzido pelo contexto sócio-cultural. O poeta transforma em arte esse manancial - as memórias, as leituras e as cidades. Para isso, ele cataloga potências e patologias que confundem a memória, e reconhece uma imagética de cidades recentes que sucumbem às cidades da memória. Essa estetização memorialística inscreve-se em textos como “Primeira visão”, de Reminiscências do Tártaro:


...na jornada
Das minhas dúvidas, que cruzam
Por pontes
Repletas de memórias



Izmir


Também o eu poético de “O globo líquido”, do livro Não & círculo (1998), aviva o fio memorial. Esse fio parece perpassar toda a poética de Eli Celso, erguendo-se do pó memorialístico à forma estética, através da poesia: a memória se arranja/ em alvéolos de barro. Outra característica marcante desta poética é a pluralidade de eus estetizados. Eus que atuam, de formas múltiplas e alternadas, pelos abismos da pele e nas superfícies da alma. São eus que celebram a alegria da carne letrada e a melancolia dos sorrisos no motim de homens de gesso.

Nos livros do poeta percebe-se estes eus que, descentralizados, evidenciam o outro na busca de inscrição da diferença. Esses eus profundos e de superfícies parecem abrir mão da internalizada postura dos românticos e dos que, intitulando-se “modernos”, sequer enxergam aquele outro interno, seu duplo, que o habita. A poética de Eli celebra a mutação da alteridade, poetizando seus motivos mais inusitados. Exemplo disso são o eu poético de “Sombras, ó Tu...” com sua audível tonalidade religiosa, o "narrador" rebelde e bem humorado de “O Clitóris da História”, o eu lírico e amoroso de “Uma estrada de coisas mortas”, e a dicção filosófica da voz narrante de “Perpendicular”, como podemos ler nessses textos que compõem o volume Não & círculo.

Estetizando vários eus (diferentemente daquele autor cujo texto repete ad infinutum uma mesma voz), Eli fabrica um polifônico horizonte ficcional onde o fingimento literário é urdido de forma a recriar várias personas. O leitor ama essa polifonia que possibilita, a cada poema, uma outra voz. Ela torna-se viável porque o poeta, sedimentado num catatau de leituras, lança mão da própria literatura como instrumento de criação. Mestre em Tecnologia Educacional, com Licenciaturas em Matemática e Física, e com trânsito pela Medicina, o poeta domina um bom arquivo de formas, e ordena um utópico espaço existencial em meio ao caos que nos circunda.


O poema a seguir, do livro Reminiscências do Tártaro, deixa entrever alguns ângulos polifôncios deste horizonte poético. Nele, a matéria memorialística, a forma mítica e a luz apolínea dialogam inscrevendo o contexto estético e existencial de quem escreve e lê neste final de milênio.

Após peregrinar
Pela matéria inerme,
Nasci do útero de Leto.
E no Tártaro fiquei
Porque não sei.
Empurrei pedras, fiz ofício
De vazio, cuspi meus dedos
Desabados em conflitos
De meus fantasmas.
Todos os dias o sol me engolia.
Todos os dias se arredondavam mais as rochas.
Todos os dias eu repetia
O que nunca fazia igual.
Me fazia desigual, todos os dias.



Em Informação da Literatura Potiguar, o ensaísta e professor Tarcísio Gurgel refere-se ao poeta Eli Celso da seguinte maneira: "Bastante culto, utiliza-se anarquicamente de sua formação filosófica para chegar ao osso da indagação poética. Além disto, usa com habilidade a ironia para demonstrar como encara as alternativas de jogar o jogo da vida numa sociedade nada lírica."



terça-feira, 14 de julho de 2009

De ouvido atento ao redor










Texto publicado na Revista Suíte Rio, ano 3 . n 12 - Rio de Janeiro, abr/maio, 2006


Pop, cult, eclética, pós-moderna. Esses são alguns dos adjetivos com os quais a cantora carioca Marisa Monte foi saudada pela crítica, em 1989, ao lançar um vinil intitulado com o próprio nome, depois de divulgar as canções numa intensa relação com o palco e o público.

Nesse primeiro trabalho, ela inovou ao optar pela noção de multiplicidade. Mostrou-se à vontade ao entoar gêneros e ritmos díspares – samba, pop, jazz, xote, rock –, e já sinalizava a diva que viria a ser na década seguinte, quando inscreveu-se como intérprete da poesia urbana e contemporânea de Arnaldo Antunes (“Comida”, “Flores”, “Alta Noite”...), e depois como compositora no CD Mais.

Esse talento para compor ficou cada vez mais audível nas cinco das treze canções que compõem Verde anil amarelo cor de rosa e carvão. Considerado um clássico de nossa música contemporânea, este CD de 1994 tem participações de Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Laurie Anderson e Época de Ouro, dentre outros, e nele Marisa canta “Ao meu redor” – uma bela canção na qual Nando Reis, ainda como membro dos Titãs, inscrevia sua marca diferencial. Entoados, portanto, desde o século passado, os sons e as imagens que estão ao redor da cantora continuam a dar o tom da sua trilha. Prova disso são estes dois CDs solos, que vêm à luz após a maternidade de Marisa, e cujos títulos sugerem um diálogo entre os seus roteiros estéticos e existenciais: Universo ao meu redor (sambas) e Infinito particular (pop).


As formas demoram


Ao contrário da maioria dos artistas que demarcam os prazos midiáticos de seus lançamentos, Marisa demora na produção de sua obra. Ela sabe que a construção das formas artísticas e culturais requer tempo e maturação. Enquanto geram seus ritmos, suas imagens e rimas, as formas demoram na construção do diálogo entre o espaço e o tempo. Isso demonstram as 27 canções que agora vêm a público após Crônicas, memórias e declarações de amor, de 2000. Entre essas duas safras-solo, Marisa produziu trabalhos de antigos sambistas; produziu também o CD que gravou em parceria com os tribalistas em 2002, quando mergulhou no nosso imaginário afetivo. Nesse mergulho, fez o país inteiro resgatar a sua porção lúdica e entoar o fato de ter como melhor amigo o próprio ser amoroso ("Velha Infância").

Parir fez bem à cantora. Sua voz está cada vez mais leve. Seus timbres e nuanças imprimem uma cadência particular às canções; e ela arrasa na viagem que faz, por exemplo, no “Bonde do Dom” e em “Satisfeito” (belíssimos sambas em parceria com os tribalistas Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown). Essa cadência é também audível na interpretação de sambas como “Três Letrinhas” (Moraes e Galvão, de Acabou Chorare, 1971) e “Vai saber?” Nessa última canção, Adriana Calcanhoto celebra sua fé na dúvida e na linguagem contraditória dos amantes, e cria um universo musical onde ressoa a precisão marítima de Caymmi e a suavidade vocal de João Gilberto. A canção é um marco.

Para construir a sua cadência marcante, Marisa capta e recria a “atmosfera do samba”, através do diálogo com a Velha Guarda de escolas cariocas. Para reciclar o pop, a cantora opta pela competência melódica (“Pra ser sincero” e “o rio”), audível nos arranjos de Philip Glass, Eumir Deodato e João Donato, e nas composições de seus parceiros mais recorrentes: Arnaldo e Brown.

Fã de estúdios, gerânios e eletrodomésticos, a cantora alia a seus projetos estéticos o domínio técnico e vocal, o ecletismo de um repertório que não pára de se reinventar e uma excelente recepção pública. Coisas de quem ouve como reza o barulho do rio, e de quem assume ir aonde a leva sua voz. Materializada em sons e sins, ela (en)canta um universo particular onde “a alma aproveita pra ser a matéria e viver”.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Surto com rajadas de água lusa



















Uma versão deste texto foi publicada em março de 2009 em:
http://www.adrianacalcanhotto.com/sec_textos.php?page=3&type=5&id=522



Com capas coloridas e título recortado com letras de caixas de remédios, Saga Lusa (2009), de Adriana Calcanhoto, é um livro extremamente corajoso. Texto testemunho, a obra narra um surto psicótico da autora, e tem tudo a ver com o contexto bélico e de superfície no qual vivemos, onde a memória e o referente ganham uma importância antes creditada apenas ao imaginário. Repleto de referências existenciais, o texto recicla informações artísticas e culturais e brinca consigo neste grau:


Minha mãe sempre me disse que um dia eu ia escrever um livro, gozado. A gente se esforça, batalha, luta, faz psicanálise, vai ao teatro, tudo, pra se constituir, pra ter recorte. Aí, na primeira surtadinha faz o quê? O que mamãe queria. Não sei não, achei meio caído.


"To surtada, não surda” é um “capítulo” que dá o tom deste texto onde “curvas enganam o olhar”. A narrativa é um prato cheio para psicólogos, psiquiatras, educadores e afins. Nele, a cantora narra como, através da escrita, encarou a Coisa (“ela ruge na tua cara”) durante a excursão do seu cd Maré por Portugal, “cara a cara com a multidão e seu deserto”. No seu “rito de passagem”, Adriana pede socorros a analistas e psiquiatras, cancela shows, visita hospitais. Surta com a lucidez e os roteiros de Suely – a produtora acesa de todas as horas.


Em sua viagem lusa, a autora transita por uma zona limite perigosa, onde a maioria evita ir, embora um número cada vez maior de contemporâneos tenha ido (sem assumir que foi). Neste trânsito entre as imagens criadas pelas pílulas, as cenas midiáticas e as figurações contextuais ao seu redor, ela contata uma dimensão psíquica antes relacionada à loucura. Hoje, o contato com essa dimensão é cada vez mais administrado no meio social, seja através do uso de pílulas ou por meio da criação de siglas como TOC e outros transtornos mentais (será mesmo verdade que, ao nomear, o homem perde o medo do que desconhece?).


Como nas canções, a escrita de Adriana Calcanhoto possui leveza e humor – ingredientes raros em nossas letras geralmente comprometidas em representar algum tipo de “real”. Saga Lusa faz rir, sentir prazer, pensar: “O que não pode é panicar, descontrole cognitivo, essas baixarias”. O livro é um recorte da subjetividade aflita e fragmentada que circula por cenários bélicos pós 11 de setembro. Diz muito da nossa condição doída, das identidades em trânsito nesta primeira década do milênio. Mas sem drama, encarando a Coisa: “Me erra, Coisa. Vai, sai, que este corpo não é teu.”
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Toda criação requer uma ruptura com a ordem vigente. Concluída a leitura deste livro, lembro de Nise da Silveira e do seu Museu do Inconsciente. Lembro também de Van Gogh, Gauguin, Byron, Tolstoi, Antonin Artaud, Schummam, Lima Barreto, Arthur Bispo do Rosário... São tantos os nomes, na história da arte e da cultura, que ultrapassaram os limites do que chamamos normalidade... Haveria nesses criadores e na própria Saga... de Adriana alguma centelha daquela espécie de "loucura divina" que Platão lia como fundamento de toda criação?


domingo, 12 de julho de 2009

"Minha música não quer pouco"



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Entrevista publicada na Revista Suite Rio, ano 2 - n 9, Rio de Janeiro, 2005



“Minha música não quer pouco”. Com esse verso, a cantora e compositora Adriana Calcanhotto finaliza o cd A fábrica do poema, e inscreve um dos seus lemas. Conhecida nacionalmente a partir dos anos oitenta, ela é autora de outros cultuados títulos da nossa música, como: Senhas, Maritmo, Público, Cantada e, dentre outros, Adriana Partimpim. A ótima recepção desse último cd motiva o atual show da cantora, cuja direção ela divide com Hamilton Vaz Pereira e Leonardo Neto.

Ouçamos a seguir a moça, cujo canto – cosmopolita e contemporâneo – faz parte da trilha sonora de um tempo no qual a arte e a cultura de massas, a raiz e a antena, a infância e a maturidade, dialogam sem subordinação. Sobre Partimpim, a passagem do tempo e a conexão com as artes, a artista lança aqui o seu olhar, cuja visão traduz uma das “letras” e vozes que mais expressam a cultura e a subjetividade produzidas neste início de milênio.


NG – Para criar seu heterônimo Partimpim, você dialogou com nomes como Hokusai (ilustrador japonês) e Fernando Pessoa (poeta português). Qual é a contribuição desses artistas para a sua criação atual?

AC - É enorme. Suas relações com seus outros, seus desprendimentos quando se transformam em outros, tudo isso foi e é muito rico para mim.


NG – Seu “piston cretino” é um dos “personagens” que mais se destacam neste show. Gostaria que falasse sobre a criação e a utilidade desse instrumento.

AC - Esse é um dos instrumentos criados por Walter Smetak (1913-1984) e que, segundo ele, é o único instrumento que inventou onde não procurava um som nobre e sim algo engraçado e infantil. Construímos o Pistom Cretino para o show a partir das instruções de Smetak e eu adorei fazer isso, adoro qualquer tipo de proposição na linha “faça você mesmo”.


NG – Quais são as diferenças entre o público de Adriana Calcanhotto e a platéia deste show “Adriana Partimpim”?

AC - Do ponto de vista etário, o público Partimpim atinge um espectro muito maior. Na platéia tem crianças, velhinhos, adultos, tem de tudo. Esses públicos diferentes reunidos num teatro se auto-contaminam e o resultado é encantador.

NG – "Encantador" é o diálogo audível em seu trabalho com os múltiplos campos da arte. Principalmente com o artista plástico Hélio Oiticica e com os poetas. Poetas de diferentes contextos e estéticas, como: Antonio Cicero (“Água Perrier”, “Inverno”, “Pelos ares”), Waly Salomão (“A fábrica do poema”, “Remix século XX”), Mário de Sá-Carneiro (“O outro”) e, dentre outros, Ferreira Gullar (“O ronrom do gatinho” e “Dono do pedaço”). Gostaria que comentasse a sua relação com as outras artes, a poesia e os seus parceiros.

AC - Sempre tive dificuldades para respeitar as fronteiras entre as linguagens, nunca achei que isso funcionasse ou mesmo existisse na prática. Sou sinestésica e acredito que todo artista, em maior ou menor medida, também o é. Gosto de me deixar impactar por autores e inventores de qualquer linguagem e me deixo permear por eles quase como um exercício de aprendizagem, de humildade e de poesia.

NG – Num desses seus "exercícios" estéticos e existenciais, você teve uma sacada genial: relacionou a passagem do tempo à perda das certezas. E os ganhos? Haveria algum em amadurecer?

AC - Amadurecer é ganhar. Perde-se a juventude, as certezas vão-se embora, mas ganha-se experiência, rugas, peso e alguma autoridade. Hoje em dia, quando alguém me pede algo que considero chato ou absurdo eu digo – não posso fazer isso, sou uma senhora – e ninguém ousa retrucar, rs,rs.

NG – A idéia do heterônimo é ligada às noções de pluralidade, de multiplicidade – conceitos que têm muito a ver com as identidades deste contexto. Quais cores, imagens e palavras você usaria para pintar um painel do seu tempo?

AC - Acho que pintaria um painel como um borrão de algo que passou em alta velocidade, e usaria todas as cores. O tempo em que vivemos parece ser o mais veloz que consegue ser e mesmo assim anseia por mais rapidez. Eu gosto dessa idéia, mesmo com seus exageros e com o nível de superficialidade que parece predominar; prefiro o privilégio de viver em um tempo assim do que num tempo de marasmo. É bem verdade que não temos muitas alternativas já que as mudanças que precisam ocorrer têm de se darem rápido antes que o planeta seja exterminado.

NG – Partimpim é um sopro de vida nas imposições feitas pelo mercado globalizado. Em que sentido esse sopro alcança Adriana Calcanhotto, a outra?

AC - Nesse momento, quando tenho eventualmente que lidar com alguma coisa do trabalho Calcanhotto, sinto que há mais frescor, parece ser uma grande novidade pra mim e acho que isso é muito bom. O próximo trabalho Calcanhotto estará fatalmente marcado pela experiência Partimpim, principalmente no que diz respeito ao que posso obter dos músicos em suas performances em termos de liberdade e humor, e também em relação a mim. Acho que adquiri uma soltura maior como performer. Em relação ao mercado vi que mesmo sendo muito difícil é possível furar alguns bloqueios ainda que um projeto como este seja apenas um grãozinho de areia.

NG – É possível que outros heterônimos (“uma segunda pele”) venham a conviver com Adriana Partimpim?

AC - É terrívelmente provável, rs,rs....






quarta-feira, 8 de julho de 2009

Para este mundo acordar







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Texto de apresentação do Anuário da Cultura, Natal- RN, 1998


Os conceitos, as funções e a utilidade (?) da arte e da cultura são questionados em cada contexto, por vozes que dialogam com múltiplos discursos de tempos e espaços diferentes. Para as vozes de filiação platônica, por exemplo, as artes e culturas denunciam e postulam as questões e os conceitos concernentes à sociedade e aos contextos sócio-políticos nos quais são produzidos. Para outras vozes antenadas com os preceitos da ruptura artística e da forma estética, a arte e a cultura desautomatizam e têm como objetivo a recriação do ser humano. Segundo outras vozes mais contemporâneas, a arte recicla e recria o arquivo de formas e linguagens artísticas e culturais, herdadas da tradição, objetivando a inscrição das vozes excluídas e periféricas. As concepções são múltiplas, contraditórias e, claro, políticas. Mas, uma coisa é inquestionável: num universo cujos signos mais freqüentes são balizados pela reprodução /repetição de imagens e conceitos patrocinados pela tecnologia de ponta, a produção de objetos artísticos e culturais torna-se um perene imperativo da condição humana e sua marca diferencial.

Como objeto que buscar reafirmar essa marca diferencial, este Anuário da Cultura objetiva reunir num mesmo espaço os produtores culturais e os feitores de arte no Rio Grande do Norte, registrando estéticas múltiplas e tendências díspares. Mapear e difundir a produção potiguar é o objetivo deste Anuário. Sua publicação sugere que num tempo globalizado no qual cada tribo expõe a sua marca diferencial, nada mais pertinente que a reunião, a postura do banquete ou o desejo de integração. De olho no século XX, não foi isso o que fizeram os primeiros modernistas paulistas, a tropicália baiana, a marginália literária carioca e os musicais mangueboys pernambucanos? As lições dessas e de outras tribos nos ensinam postulados básicos, como a necessidade de verificar o suporte diferencial do outro, esculpir cara própria. Essa demarcação identitária sugere a importância de mapear o terreiro para a batida dos atabaques, entoar os afoxés, letrar a raiz, instalar antenas. “Poty or not Poty” - Medeiros, Oswald, Shakespeare.

Como na canção lupiscínica, este Anuário da Cultura conclama “maestros, músicos, cantores, gentes de todas as cores”, e aciona os devoradores /demolidores /consumidores da arte e dos produtos culturais para fazer este mundo acordar. “Quem tiver apito, apite”. Quem puder fazer arte, arda, anuncie, inscreva-se. Conjugue o verbo cascudear. Como diz o mestre potiguar, autor da História dos nossos gestos, “Indispensável é a alegria do trabalho, esperança inabalável no Êxito, colaboração unânime e fervorosa em toda a colméia."