segunda-feira, 13 de julho de 2009

Surto com rajadas de água lusa



















Uma versão deste texto foi publicada em março de 2009 em:
http://www.adrianacalcanhotto.com/sec_textos.php?page=3&type=5&id=522



Com capas coloridas e título recortado com letras de caixas de remédios, Saga Lusa (2009), de Adriana Calcanhoto, é um livro extremamente corajoso. Texto testemunho, a obra narra um surto psicótico da autora, e tem tudo a ver com o contexto bélico e de superfície no qual vivemos, onde a memória e o referente ganham uma importância antes creditada apenas ao imaginário. Repleto de referências existenciais, o texto recicla informações artísticas e culturais e brinca consigo neste grau:


Minha mãe sempre me disse que um dia eu ia escrever um livro, gozado. A gente se esforça, batalha, luta, faz psicanálise, vai ao teatro, tudo, pra se constituir, pra ter recorte. Aí, na primeira surtadinha faz o quê? O que mamãe queria. Não sei não, achei meio caído.


"To surtada, não surda” é um “capítulo” que dá o tom deste texto onde “curvas enganam o olhar”. A narrativa é um prato cheio para psicólogos, psiquiatras, educadores e afins. Nele, a cantora narra como, através da escrita, encarou a Coisa (“ela ruge na tua cara”) durante a excursão do seu cd Maré por Portugal, “cara a cara com a multidão e seu deserto”. No seu “rito de passagem”, Adriana pede socorros a analistas e psiquiatras, cancela shows, visita hospitais. Surta com a lucidez e os roteiros de Suely – a produtora acesa de todas as horas.


Em sua viagem lusa, a autora transita por uma zona limite perigosa, onde a maioria evita ir, embora um número cada vez maior de contemporâneos tenha ido (sem assumir que foi). Neste trânsito entre as imagens criadas pelas pílulas, as cenas midiáticas e as figurações contextuais ao seu redor, ela contata uma dimensão psíquica antes relacionada à loucura. Hoje, o contato com essa dimensão é cada vez mais administrado no meio social, seja através do uso de pílulas ou por meio da criação de siglas como TOC e outros transtornos mentais (será mesmo verdade que, ao nomear, o homem perde o medo do que desconhece?).


Como nas canções, a escrita de Adriana Calcanhoto possui leveza e humor – ingredientes raros em nossas letras geralmente comprometidas em representar algum tipo de “real”. Saga Lusa faz rir, sentir prazer, pensar: “O que não pode é panicar, descontrole cognitivo, essas baixarias”. O livro é um recorte da subjetividade aflita e fragmentada que circula por cenários bélicos pós 11 de setembro. Diz muito da nossa condição doída, das identidades em trânsito nesta primeira década do milênio. Mas sem drama, encarando a Coisa: “Me erra, Coisa. Vai, sai, que este corpo não é teu.”
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Toda criação requer uma ruptura com a ordem vigente. Concluída a leitura deste livro, lembro de Nise da Silveira e do seu Museu do Inconsciente. Lembro também de Van Gogh, Gauguin, Byron, Tolstoi, Antonin Artaud, Schummam, Lima Barreto, Arthur Bispo do Rosário... São tantos os nomes, na história da arte e da cultura, que ultrapassaram os limites do que chamamos normalidade... Haveria nesses criadores e na própria Saga... de Adriana alguma centelha daquela espécie de "loucura divina" que Platão lia como fundamento de toda criação?