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segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Proust tem razão ou Godard que me desculpe







Uma versão desta crônica foi publicada em
http://www.substantivoplural.com.br/prosa/


Para Tetê Bezerra (RN) e Leonardo Gandolfi (RJ)

I
O rei continua vivo. Que bom poder ouvir, após 50 anos de carreira, a voz intacta do Roberto. Enquanto alguns dos nomes mais representativos da sua geração ostentam um audível cansaço pendurado nos timbres e tons de suas vozes, o rei encara - de peito literalmente nu - a tarde de sábado na TV. Encara e (en)canta. Canta a plenos pulmões, sem pose nem play back. Com ele, canta o país inteiro. O país para o qual ele serviu de trilha sonora nas cinco últimas décadas, mesmo quando não era de bom tom gostar de suas canções.

II

Agora é fácil. Durante a ditadura militar, na década de 70, eram poucos os jovens politicamente corretos que assumiam ouvir o rei. Plugada, Maria Bethânia sacou a eletricidade da onda e acionou a Tropicália. Mas, a maioria das pessoas de esquerda e grande parte dos intelectuais eram contra. Ouvir as canções do Roberto não era bacana ou cult como passou a ser depois. Na esfera literária, conta-se nos dedos os autores como Ana Cristina Cesar que assumia descaradamente: "Ouça muito Roberto: quase chamei você mas olhei para mim mesmo etc. Já tirei as letra que você pediu" (Correspondência Completa).

III

Guiados pela emoção, Roberto e o Brasil continuam cantando "Como é grande o meu amor por você" e "As canções que você fez pra mim"। Seus versos fazem parte do nosso imaginário afetivo e social. Conheço vários brasileiros que, como eu, demarcam alguns dos acontecimentos marcantes de sua vida em sintonia com o disco anualmente lançado pelo rei em determinado contexto. Dependendo da canção ou da capa do vinil, eu sei onde morava, com quem andava, os bares frequentados, os carros da vez, o que fazia naquela fase da vida... São tantas emoções... Um dia, quem sabe, escreverei sobre as noções de luz e sombra na obra do rei. Porque ecoam até hoje em mim, versos como estes: "Fui abrindo a porta devagar, mas deixei a luz entrar primeiro" ou "Há sempre uma sombra em seu sorriso" ou "...depressa em minha vida anoiteceu e eu não vi você" ou "Qual sombra da noite de um céu nevoento" ou "Em compensação o anoitecer, a tempestade e a dor" ...

IV

Nunca li Proust (nem sei se dará tempo ler); mas tenho alguns amigos que leram. Com eles aprendi que, para o autor de Em busca do tempo perdido, a nossa memória encontra-se fora de nós: nos cheiros dos quartos abafados, no aroma que a chuva anuncia, no chá cuja temperatura retorna com algum momento vivido... Ver Roberto nesta tarde de sábado, trouxe-me de volta às trilhas de algumas cidades e pessoas por que passei. Fez-me ver como Proust tem razão: a memória é principalmente algo externo. Parte da minha memória está no rei. Figurações da nossa história antiga (minha e do país) foram acionadas pelos primeiros acordes de sua melodia presente. Fiquei emocionado com a enxurrada de pensamentos, imagens e percepções que a voz do rei acentua num corpo que armazena sua música. Não é uma questão cerebral, please. De cabeça, é fácil. Difícil é acender o imaginário coletivo. Dialogar com o corpinho pragmático e esperto que o sistema automatiza a cada dia, a cada ano, a cada década, tornando robôs e clones a maioria dos que seguem repetindo os mesmos gestos, as mesmas falas, usando as mesmas marcas e dizendo sim sim sim...

V

O canto do rei aciona o pé e o pau. Desnuda corações e veias... É outra coisa, topa? É "da cabeça até a ponta do dedão do pé", como canta ele num hit da Jovem Guarda. Como diria Tetê Bezerra, Godard que me desculpe; mas o Histoire(s) du cinema, no MAM, só amanhã. Se o rei não aparecer de novo neste horário na TV.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Há um fio narrativo na voz em off, ouça





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Texto publicado na Revista pequena morte. Antologia comemorativa de dois anos. Rio de Janeiro, Oficina Raquel, 2008.


Leonardo Gandolfi lançou no entanto d`água, o seu primeiro livro de poemas, em 2006. Há nesse livro uma voz que se constrói às vezes meio secreta, aparentemente leve, dialogando em vários tons. Alguns desses tons são mais agudos, outros menos; e outros há com ecos de porão e rua. Essas pistas vocais, seus andamentos e alguns compassos paisagísticos estão presentes com vigor na sua nova lavra de poemas (“Os espiões”, “– Todas as minhas coisas são tuas” e “Mande nem que seja um telegrama”).


Nessas novas paisagens textuais, o poeta confirma-se exímio na fabricação de títulos e versos, na retirada do peso da linguagem e na construção de personagens poéticos em trânsitos narrativos. Para erigir a oralidade dessas micro-narrativas, ele garimpa versos banais de canções populares, recicla nomes de narrativas comuns, recorta o discurso de personagens bíblicos, ouve ecos da tradição literária. Nessa audição, o poeta brinca com a aparente rigidez dos gêneros e põe, no contexto dialógico do poema, o assassino do filme B, a mulher instruída, o músico, o detetive do romance policial e a sua propensão a “perceber essa mesma ponta de felicidade/ resignada se abater sobre cada um deles.” ("Os espiões").


Nessa inversão estética e contextual, não é exatamente a personagem que mata, o homem que toca, a instrução feminina ou os meandros do crime que interessam: o poeta se apossa do que esses personagens possuem, no cerne da sintaxe, de precioso – a fala da deriva, os prazos e as pausas do desvio silencioso, o discurso da sedução da linguagem. Essas são as armas de quem relê alguma partida na qual, mais do que saber, o ser pensa e atua: “Penso num carro de retrovisor partido/ lançando-se urgente por estradas,/ avenidas, cidades, crianças, canções”(“Mande nem que seja um telegrama”).


A uma geração de autores sem credos nem manifestos pertence Leonardo. Nenhuma sombra metafísica ronda sua página. Se a sua poesia inicial sugere a inscrição do "sangue derramado do carneiro” ou do assassino “como condição de leitura”, o seu poema possui a saúde de não evocar aura, ideologia, bula estética (Isso dá um alívio!). Por isso, a sua linguagem inunda o ouvido da paisagem, rompe com “os hábitos da percepção”. Sua poética é feita de avisos do corpo para ouvir a voz em off – legião – da paisagem e suas cores: “O que está em vermelho indica o começo do caminho”. (“Mande nem que seja um telegrama”).


Os espiões

(“Dans un moi dans um an”, Françoise Sagan)

Escreviam cartas como se cortassem
as unhas. Atenção e distração redobradas.
Ao meu filho, além de um revólver,
eu deixo certa propensão tocante
para o arrependimento e para a deserção.
Aliados ou não, foram indispensáveis.
Minha estátua de sal já está pronta,
mas seria preciso pelo menos outros 27 anos,
agora de diligência, para a gente começar a pensar
em algo como lealdade ou remissão.
Em vários outros momentos podemos
perceber essa mesma ponta de felicidade
resignada se abater sobre cada um deles.
O que – verdade seja dita – já é alguma coisa
numa época em que nada se abate sobre nada.



– todas as minhas coisas são tuas


Quando fiz Do you know the way to San Jose ,
preparei algumas variantes que acabaram
ficando de fora da versão final, gravada
em 1968 por Dionne Warwick. A mais importante
delas talvez tenha sido uma pequena quebra
de andamento mais ou menos na metade da música,
indicada sobretudo por uma mudança de nota
no terceiro dos cinco trompetes que, naquele
instante, preenchiam os espaços em branco. Isso,
apesar de rápido, sempre me remetia a um tempo
em que meu pai me levava ao bar a meio quilômetro
da nossa casa. As notas de um piano que eu nunca
mais ouviria. Anos depois, toda vez que toco
Do you know the way to San Jose , penso no meu pai,
mãos no bolso. A música que fiz com certeza
não fala disso, a suspeita a um só tempo oportuna
e desacreditada que nos separa dos nossos. Frio
antigo e úmido que, como depois percebi, da ação
até a demora não leva nem mesmo alguns segundos.

Mande nem que seja um telegrama

(“Half away”, W.H. Auden)


O que está em vermelho indica o começo
do caminho. E em amarelo, sua metade.
Já estas indicações são possíveis campos
de batalha e as letras em gótico marcam
lugares de interesse apenas arqueológico.
É essa a minha herança, a minha divisa.
Aceitar do novelo a linha, um catálogo
dos nomes, datas, barcos que me levam
para atrás das promessas e do esquecimento.
O tal sujeito vai contigo até a torre
de tiro. Daí em diante terá que ir sozinha.
Numa semana ou duas as coisas podem
mudar. Em Bigsweir procure por Kelpie
e não deixe que um tal de Mr. Wren
te veja, senão tudo vai por água baixo.
Não mandarei nenhum telegrama ou qualquer
coisa do tipo. Toda batalha, eu sei,
é perdida e se ainda penso ou falo
algo é só para confirmar que sigo
dentro do incêndio, avançando pela parte
mais superficial do dia, sem olhar
para trás à procura de pistas ou marcas
do que achamos que ainda é nosso.
Faz mais de um ano e nada. Para todos
os efeitos ninguém se lembra de você.
Algo mais? Ótimo. Agora pode ir.
Quando lembro da minha outra vida,
a que não foi secreta porque nunca
correu o risco de ter sido o oposto disso,
penso num carro de retrovisor partido
lançando-se urgente por estradas,
avenidas, cidades, crianças, canções.