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domingo, 27 de dezembro de 2009

Ensaio II

Ensaio: uma poética da reflexão


Pensar, analizar, inventar... no son actos anómalos, son la normal respiración de la inteligencia.

(Borges in “Pierre Menard, autor del Quijote”, Ficciones).


I

Como a autobiografia, o diário e tudo aquilo que Bakhtin enquadrou no grupo de “gêneros menores”, o ensaio é uma “deriva”[1]. Essa “deriva” possui o eu como ponto de partida. Apesar do intertexto que mantêm entre diferentes formas e linguagens, estes “gêneros menores” possuem características bastante distintas. Enquanto a autobiografia, por exemplo, procura confessar, o ensaio busca mais a reflexão; enquanto o diário tenta dar conta do registro presente, a forma ensaística engendra vários tempos.

Por relacionar-se com as dimensões da crítica e da problematização, o ensaio é um gênero que se destaca muito mais pelo levantamento das questões que suscita do que pelo repertório de respostas que venha a insinuar, sugerir ou prescrever.

A partir disso – das indagações e dos questionamentos feitos com base num determinado tema ou numa selecionada forma –, acionamos nossa leitura dessa “deriva” ensaística como uma poética, ou seja: buscamos ler o ensaio como gênero poético-reflexivo que, ao lançar mão de diferentes tipos de discursos, engendra uma poética da reflexão.

Para a inscrição do ensaio como poética reflexiva, tomamos por base os conceitos desenvolvidos por Walter Benjamin na Suíça, entre 1917-1919, em sua tese de doutorado O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão (ao contrário da rejeitada tese de livre-docência – a belíssima Origem do Drama Barroco Alemão –, a tese de doutorado obteve nota máxima, summa cum laude).

A tese benjaminiana divide-se em duas partes: a reflexão e a crítica de arte. Desta tese, interessa-nos basicamente as noções e o conceito que o autor elabora acerca da reflexão; embora estes se encontrem sintonizados com a ordem do universo natural e um romântico recorte vocabular que pouco tem a ver com o nosso. O discurso da crítica romântica é pontuado por vocábulos e expressões, tipo: totalidade da experiência, primeiro gênio, Eu, essência, absoluto...

Apesar desse recorte, dessas crenças e de, por exemplo, lerem na originalidade “a medida mais elevada de todo valor da obra de arte”, o saldo dos românticos é bastante positivo. Uma atenção para o recorte vocabular daquele contexto, e percebemos que a coisa areja: a partir deles, a antiga expressão Juiz da Arte é substituída por crítico da arte. Mas a herança romântica não se reduz às mutações do recorte vocabular. Com base nos românticos arcabouços teóricos, Benjamin pode edificar, para a modernidade, o conceito de crítica de arte daquele período.

Segundo Benjamin, a reflexão é o tipo de pensamento mais freqüente nos primeiros românticos; o que pode ser comprovado pela produção de um pensamento que se concretiza através da construção de fragmentos, como sinaliza Schlegel – o auto cuja obra é a base benjaminiana.

Em sua tese, Benjamin coloca o pensar e o refletir no mesmo plano. Isso é feito a partir do pensar definido por Schelegel como “a faculdade da atividade que volta sobre si mesma, a capacidade de ser o Eu do Eu...”[2]. Para o teórico romântico, o objeto do pensamento é o próprio eu, o que nos remete à etimologia da reflexão e faz-nos deduzir que pensar o objeto é pensar a si. Logo, quando ensaiamos acerca de determinados temas, formas ou idéias, numa correlação que se constitui no objeto de nossa própria matéria reflexiva, ensaiamos acerca de nós mesmos. Com base nessa conceituação esta poética lê o ensaio como gênero da crítica (que tenta refletir ou interpretar sobre) e da autocrítica (cuja reflexão diz do próprio intérprete).

Além de Schlegel, Fichte destaca-se como outro autor fundamental para a tese benjaminiana. Em sua “doutrina-da-ciência”, ele expõe “a interpretação mútua do pensamento reflexivo e do conhecimento imediato”, demonstrando haver, na reflexão, dois momentos: o momento da imediatez e o momento da infinitude (grifos nossos).[3]

Segundo Benjamin, o primeiro momento - a imediatez - “fornece” à filosofia de Fichte a senha para se buscar no imediato “a origem e a explicação do mundo”. Mas a imediatez é “turvada” pela infinitude, e esta termina sendo eliminada da reflexão fichteniana. O curioso é que a infinitude descartada por Fichte gera um dos pressupostos mais importantes daquele Romantismo: “o culto do infinito”. Herança e negação de Fitche, a infinitude transforma-se, segundo a tese benjaminiana, no pensamento mais “original” dos românticos. Na busca da inscrição do ensaio como poética da reflexão optamos, como eles, pelo momento da reflexão que privilegia a infinitude.

Rejeitada por Fichte, a infinitude é re-lida por Schlegel e Novalis não como uma “infinitude de continuidade”, mas uma “infinitude de conexão”. Ou seja: no momento reflexivo da infinitude tudo pode conectar-se de uma “infinita multiplicidade de maneiras”, possibilitando “níveis infinitamente numerosos de reflexão”.[4]

Como percebemos com base no conceito de reflexão, o Romantismo “funda” sua teoria do conhecimento direcionando-a para “o culto do infinito”. Embora essa expressão possa pressupor algo da ordem do infinitamente inacabado, inconcebível, a reflexão “não vagueia numa infinitude vazia”: ela é “substancial e completa em si mesma”.[5]

Desta forma, vale ressaltar que a infinitude romântica está relacionada não a algo “infindável e vazio”, mas a um contexto que cria miríades de possibilidades de conexões. Ou, como diria Hölderlin, via Benjamin: “conectar infinitamente (exatamente)”.[6]

Conectando o momento reflexivo da infinitude romântica com a nossa proposta de lermos o ensaio como uma poética da reflexão, podemos imaginar as diferentes formas e possibilidades de criação que o gênero ensaístico possibilita, através de suas “conexões” e intertextos com outros discursos estéticos, outras esferas do conhecimento. Através de procedimentos paródicos, intertextuais e de simulação, o gênero ensaístico, assim como o romanesco, por exemplo, possibilita a produção de um texto conectado com outros códigos; e embora aponte para algo em aberto, a ensaística – feito a reflexão de origem romântica – apresenta-se “substancial e completa em si mesma”.

A reflexão que é a matéria-prima dos românticos é, portanto, o nosso objeto. “O simples pensar com o algo pensado que lhe é correlato constitui a matéria da reflexão”.[7] Nessa conceituação sistematizada por Benjamin, o pensamento e a reflexão encontram-se no mesmo plano. Não é outra a nossa matéria. Podemos reler essa assertiva benjaminiana dizendo que o simples refletir que dialoga com o algo criado que lhe é correlato constitui a matéria do ensaio.
E se, na teoria romântica, ao atingir o grau do pensar a reflexão identifica-se com o conhecer, podemos imaginar que, ao utilizar-se da reflexão e dialogar com o objeto do ensaio, o gênero ensaístico perscruta novas leituras; o que de certa maneira produz e intensifica outras formas de conhecimento. Noutras palavras: refletir e conhecer são os verbos conjugados por quem ensaia na contemporaneidade.

O exercício da reflexão e do conhecimento remete à problemática da forma, levantada na Introdução deste ensaio e retomada no próximo capítulo. Ela - a reflexão - “no sentido construído pelos românticos, é pensamento que engendra sua forma”[8]. A partir desse exercício reflexivo, herança da teoria romântica do conhecimento, buscamos colocar a questão da autonomia formal referente ao ensaio.

Como observamos na Introdução, a estrutura formal do ensaio pode ser sugerida ou determinada pela idéia ou forma pré-existente que serve de parâmetro para a escrita ensaística. No caso deste ensaio, por exemplo, alguns procedimentos poéticos (a fragmentação) e metalingüísticos (a existência desse parágrafo e o que ele encerra de metalinguagem) determinam os aspectos formais, e justificam-se na medida em que o ensaio ensaia a si próprio, na tentativa de refletir acerca de sua própria poética.

Embora partamos, neste ensaio, da romântica noção de reflexão para construirmos uma poética do reflexivo, nossa conceituação de vários outros elementos diferenciam-se da óptica dos românticos. Diferentemente deles, não associamos o belo à ordem natural, nem o lemos em tudo o que é, simultaneamente, atraente e sublime. Mas concordamos com Schlegel e sua noção de fragmento, tão associada ao ensaio, como vimos na introdução deste.[9] Segundo o autor de Conversa sobre poesia...,


é preciso que um fragmento seja como uma pequena obra de arte, inteiramente isolado do mundo circundante e completo em si mesmo, como um ouriço.


Esta romântica noção do fragmento como obra de arte parece ter influenciado a escritura ensaística do modernidade, como exemplifica a produção de autores como o próprio Benjamin, Barthes e Borges (“Minha obra é feita de fragmentos; é uma miscelânea”). Adorno também se alia a esse time retomando, além da fragmentação do Romantismo, as noções de reflexão e o momento da infinitude. Diz ele:

A concepção romântica do fragmento – como uma formação nem completa nem exaustiva do tema, mas que através da auto-reflexão vai avançando até o infinito – defende esse tema antiidealista no próprio seio do idealismo.


Descrente do idealismo, a escrita do fragmento nada mais traduz que o estilhaçamento do sujeito contemporâneo frente a um metonímico espaço-tempo no qual a simbólica completude metafórica cedeu espaço para a alegórica fragmentação da metonímia. Neste contexto, os questionamentos acerca da representação, das construções canônicas, das noções de autoria, e as novas formas de leituras acionadas a partir da subjetividade maquínica produzida no cenário eletrônico e digital, contribuem para a mutação da própria noção de gênero.

De olho neste fragmentado cenário, ensaiamos uma espécie de exegese: refletir acerca do ensaio enquanto poética que interpreta a si. Quem sabe isso contribua para que o exegeta – deixando de ser um deus que às vezes aparece sem ser invocado – possa ser o sujeito que interpreta impulsionado pelo objeto, pela própria reflexão.


I I

Segundo Auerbach, Montaigne ìnteressava-se “calorosamente pela vida dos outros”, mas desconfiava dos cientistas e historiadores. Dos primeiros, porque aqueles se afastavam do conhecimento de si próprio, em prol de uma inconvincente compreensão das coisas; dos segundos, porque estes, além de apresentar o homem geralmente heroicizado, caracterizavam as coisas de forma fixa, una.

Na leitura empreendida pelo autor de Mímesis, o pai do ensaio “deseja averiguar o comportamento quotidiano, comum e espontâneo dos seres humanos, e para isso o ambiente que o circunda e que pode observar através da sua própria experiência, é, para ele, tão valioso quanto o material da história”[10].

Nesta leitura da condição humana feita por Auerbach a partir dos Essais, os “acontecimentos privados e pessoais” interessam “tanto, ou talvez até mais”, a Montaigne do que as “ações públicas”. Neste sentido, podemos imaginar que, para o ensaísta francês, a dimensão de um involuntário movimento interno seja tão relevante quanto a magnitude de uma programática atitude social.

Ressaltando os temores platônicos, em relação às “leis” do corpo –suas dores e volúpias –, o pai do ensaio outorga ao discurso corpóreo um papel preponderante na constituição do ser. No capítulo “De l’expérience”, destacado por Auerbach,[11] Montaigne expõe sua porção – até certo ponto aristotélica, assim:


...que o espírito desperte e vivifique o peso do corpo, que o corpo prenda a leveza do espírito e o fixe. Não há peça indigna de nosso cuidado, neste presente que Deus nos fez; devemos prestar contas dele, até de um cabelo; e não é, para o homem, um encargo secundário o de conduzir o homem segundo a sua condição.


As relações entre Aristóteles e Montaigne parecem mais estreitas, como insinuamos a seguir. Mas o que mais surpreende na visão do corpóreo Montaigne, além desse apreço pelas minúcias da natureza humana, pela consciência da relação corpo-espírito, é o fato dele habitar o abundante planeta das possibilidades: para o ensaísta, pouco importa se os acontecimentos ocorreram ou não; tudo o que acontece desperta interesse, possui serventia. É o que afirma o próprio autor[12]:

No estudo que trato de nossos costumes e movimentos, os testemunhos fabulosos, sempre que sejam possíveis, servem tanto quanto os verdadeiros; acontecido ou não acontecido, em Paris ou em Roma, com João ou com Pedro, é sempre um aspecto da natureza humana.


A “natureza humana” é o alvo de Montaigne. Desconfiando de si e da possibilidade de estetizar a existência através do registro de ações pessoais, o autor assume sua opção por priorizar a dimensão da fantasia. Essa relevância que Montaigne empresta aos “testemunhos fabulosos”, ao feito “acontecido ou não”, nos faz associar sua ensaística aos princípios da Poética aristotélica. No capítulo IX da referida obra, ao tecer relações entre a poesia e a história, Aristóteles diz da ação de representar o que poderia acontecer como sendo o “ofício de poeta”.

Lendo uma supremacia filosófica na poesia, e ressaltando um maior grau de seriedade desta em relação à história, Aristóteles justifica sua leitura ao inferir que a poesia capta o universal no futuro (do pretérito), enquanto é característica da história narrar o particular que acontece. Essa visão aristotélica é também assumida por “Pierre Menard, autor del Quixote”: “La verdad historica no es lo que sucedió; es lo que juzgamos que sucedió”.[13]

Embora não descartemos, como Aristóteles, o particular da história, observamos que nas leituras dele, de Montaigne e de Borges os “ofícios” do poeta e do ensaísta assemelham-se. Na visão destes autores, o plano da fabulação, as construções imaginárias, ganham dimensão inusitada; o que, de certa forma, associa a criação ensaística às possibilidades de elaboração de uma poética da criação. Uma poética da reflexão na qual criar e pensar sejam ações intercaladas.

Tratando do que Benjamin chama de “estrutura básica da arte”, Novalis ressalta a relação intrínseca que existe entre quem pensa e quem faz poesia. Diz o romântico[14]:


A arte da poesia é certamente apenas uma utilização arbitrária, ativa e produtiva dos nossos órgãos - e, portanto, pensar e poetar constituiriam uma mesma coisa...


Herdada do Romantismo, parece que essa relação entre pensamento e criação ficou muito clara na Modernidade, como anuncia a leitura feita por Benjamin em torno da obra de Baudelaire. No Brasil, a consciência crítica do poeta moderno em relação às linguagens da história expõe-se, por exemplo, em autores como Manuel Bandeira (“Poética” in Libertinagem) e João Cabral (“O artista inconfessável” in Museu de Tudo).

O poeta-crítico aprendeu a lição borgiana do “Pierre Menard, autor del Quijote”: “...censurar y alabar son operaciones sentimentales que nada tienen que ver con la crítica”.[15] Ao invés de nuanças sentimentais, o poeta-crítico da modernidade lançou mão do repertório, da reflexão, tecendo outras releituras.

Segundo Benjamin, os românticos “fomentaram a crítica poética”. Através deste “fomento” tornou-se possível superar a distância entre os procedimentos críticos e poéticos. Sobre essa aproximação entre os procedimentos – que remete ao nosso projeto de uma poética da reflexão e sugere a possibilidade de alçar o ensaio ao estatuto de obra de arte –, ouçamos as idéias românticas transcritas por Benjamin[16]:

Um juízo de arte que não é ao mesmo tempo uma obra de arte, ...como exposição de uma impressão necessária em seu devir, não possui nenhum direito de cidadania no reino da arte...

Essa crítica poética... exporá novamente a exposição, desejará formar ainda uma vez o já formado..., irá completar a obra, rejuvenescê-la, configurá-la novamente.

Boa leitura fez Lukács ao ler o ensaio como forma artística. Benjamin não apenas leu como fez romper essa forma. Construídos num estilo que aproxima procedimentos literários de experiências pessoais, reflexões metafísicas e construções imaginárias, os textos de Benjamin seduzem. Neles convivem de forma interdisciplinar a filosofia e a história, a literatura e as outras artes, tornando intertextual a construção de um saber que media o fazer ensaístico, o processo crítico.

Benjamin percebeu que as formas literárias são mutantes; e experimentou o ensaio como forma através da qual patrocinou sua própria ruptura. Como crítico ”ruminante” das metamorfoses da modernidade, Benjamin aprendeu a lição de Schlegel: “Um crítico é um leitor que rumina. Ele deve, portanto, ter mais de um estômago”.[17]


NOTAS



[1] Lima. op. cit. p. 88.
[2] Benjamin. O Conceito de Crítica de Arte... 1993. p. 30.
[3] Ibdem., op.cit. p. 35.
[4] Ibdem., op. cit. p. 36.
[5] Ibdem., op. cit. p. 40.
[6] Ibdem., op. cit. p. 36.
[7] Ibdem., op. cit. p. 37.
[8] Ibdem., op. cit. p.
[9] Schlegel. op. cit. p. 103.
[10] Auerbach. op. cit. p. 266.
[11] Ibdem. op. cit. p. 270.
[12] Ibdem. op. cit. p. 266.
[13] Borges. Ficciones. 1978. p. 57.
[14] Benjamin. op. cit. p. 73.
[15] Borges. Ficciones. 1978. p. 50.
[16] Benjamin (1993). op. cit. p. 77.
[17] Schlegel. op. cit. p. 83.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Ensaio I









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Mário de Andrade e Câmara Cascudo no RN




Texto escrito a partir de uma monografia acadêmica produzida no curso de doutorado “Protagonistas e Coadjuvantes da Modernidade”,UFRJ, 2000.


“o ensaio como exercício da escrita”


Em 1999, ao responder a uma enquete do Jornal do Brasil, o escritor João Gilberto Noll disse estar lendo “muito Walter Benjamin”. Segundo o autor de A céu aberto (1996), ao revelar uma voz “quase” “ficcional”, o texto do ensaísta e pensador alemão “substituiu um certo tipo de romance que anda meio escasso”.

Assim como Noll, Benjamin escrevia “sob o livre céu de Deus”[1]. Por motivo dessa sintonia, ele talvez gostasse dessa outra percepção literária do final do século XX: um escritor contemporâneo dizer da “substituição” da voz romanesca pela voz ensaística de tom “quase” “ficcional”.

Apesar de o gênero ensaístico nascer com Montaigne e seus Essais (séc. XVI), trazendo em si um forte traço subjetivo, a historiografia das formas literárias jamais associou o ensaio aos gêneros nobres. O ensaio surgiu como texto curto, miscelânea, escrita pessoal. Não teve, por exemplo, a recepção tida pelo gênero romancesco. Embora seja bom lembrar que, da origem folhetinesca do romance até a sua ascensão nos séculos XVII e XVIII, sua história não parece tão “nobre” assim. Um retorno rápido ao contexto do Romantismo alemão, e nos deparamos com a seguinte assertiva de Schlegel: “O contexto dramático da história não faz do romance, de modo algum, um todo, uma obra”[2].

Aqui deste contexto moderno, nossa percepção é outra: longe vai o tempo no qual Aristóteles, com base nas sua idéias de semelhança e imitação, elegia como gêneros constituintes de uma certa nobreza artística “as formas trágicas (a poesia austera)”[3].

Supremacia entre gêneros à parte, o gosto pelo ensaio vem dos primórdios. Em 1583, ao traduzir para o latim os Essais como gustus (de gustare - saborear, provar), o filólogo holandês Justo Lípsio já apostava nessa forma cuja dimensão subjetiva buscava “escutar a si próprio”.[4] A essa dimensão ensaística filiou-se, desde o final do séc. XIX, uma linhagem de autores como Freud, Marx, Benjamin e Barthes, dentre outros, redimensionando a densidade do ensaio e a sua forma leve de expressar opiniões.

Acionada por esses autores, a ruptura da forma ensaística caracteriza-se pela inserção de uma mescla de informações teóricas, junto a experiências existenciais e profissionais. Some-se a isso, as reflexões pessoais e a introdução ao ensaio de um “tom imaginário” (Ana Cristina Cesar.). Fruir e refletir são os verbos conjugados pelo ensaísta moderno. A partir disso, a substância histórica, a dimensão cultural e o aparato formalístico do ensaio ganharam novos “tons”.

Após a ruptura de gêneros patrocinada pela modernidade, o texto ensaístico – aberto a outras formas e dialogando principalmente com a ficção e a filosofia – parece adquirir cada vez mais um estatuto de aceitação em meio aos gêneros considerados “nobres”. Essa aceitação começa a ser mais assumida a partir do surgimento do poeta-crítico da modernidade. Na contemporaneidade, é cada vez mais consensual a idéia de que, assim como o gênero poético ou o romanesco, por exemplo, o gênero ensaístico pode também alçar ao estatuto de obra de arte.

Trazendo para o seu corpus elementos referenciais, reflexivos e imaginários, o ensaio adentra o próximo milênio com uma dicção múltipla. Seus “tons” e timbres remetem a vários contextos históricos /estéticos: às vezes lembram a melodiosa voz narrativa cuja oralidade embalou os narradores anônimos; noutras vezes, os tons ensaísticos reportam ao ápice romanesco cuja linguagem ritmou os iluministas; remetem também aos experimentos modernos iniciados no final do século XIX e radicalizados pelas vanguardas do século XX. Adentrando o século XX, os timbres do ensaio apontam para os tons bruscos, às vezes ásperos e certeiros, herdados dos discursos da contracultura; ou ainda sintonizam-se com a tonalidade de “superfície” da era do virtual, das performances identitárias.

Como o romance, o ensaio tornou-se híbrido e polifônico. Em seu corpus o elemento biográfico, a “memória da pele”, o discurso corporal, a leitura da cidade, os cadernos diários, viagens, impressões cotidianas, as mutações do texto literário, a sala de aula – tudo pode ser incorporado à “arquitextura” ensaística.

Tomemos como exemplo o caso do professor e sua escrita. A articulação que esse personagem desenvolve entre a prática do magistério (a performance da sala de aula) e a produção ensaística (“o ensaio como exercício da escrita”) parece definir, em muitos casos, a forma do ensaio erigida por este personagem – o ensaísta, profissão: professor. Sobre essa relação intrínseca entre o exercício do magistério e a produção ensaística, ouçamos Sílvia Claro. Ao ensaiar acerca da sincronia entre “o ensaio e a aula“ na obra de Antonio Candido, ela diz:

O ensaio falado da sala de aula enseja o ensaio escrito, impresso, definitivo, cristalizado, mas ainda sempre marcado pela ebulição no laboratório da classe. O ouvinte atento da palestra é parâmetro palpável do leitor afastado, longe da vista.


Se o ouvinte presente é “parâmetro” para o futuro leitor e o ensaio pode ser lido como “exercício da escrita”, a aula (e seus elementos) não poderia ser acionada como exercício da forma ensaística? Essa forma é justamente o objeto de cobrança de parte da crítica literária ao ler o ensaio como “produto híbrido”, desprovido de uma tradição formal.

Esta “hibridez” e a descrença desse “produto” enquanto gênero são os elementos ressaltados por Adorno na leitura que ele faz de “O ensaio como forma”. Publicado na década de 50, o texto adorniano tece intertexto com, dentre outros, Nietzsche, Max Bense e Lukács – leitor do ensaio como “forma artística”, e demonstra o elegante exercício da escrita operado pelo pensador da Escola de Frankfurt.

Adorno interpreta o ensaio como “um protesto” contra o sistema de pensamento cartesiano. Sua escrita detona a “intuição intelectual” de Kant e a “transcendência da linguagem” oriunda de Heiddegger, sem remeter sequer às duas principais fontes da tradição ensaística: Montaigne (França) e Bacon (Inglaterra).

E para justificar a discriminação sofrida pelo ensaio naquele contexto, o autor diz da impossibilidade de prescrever “o âmbito” da “competência” ensaística. Acerca do gênero em questão diz Adorno:

Ao invés de executar algo científico ou produzir algo artístico, o seu esforço ainda espelha a disponibilidade infantil, que, sem escrúpulos, se entusiasma com aquilo que outros já fizeram.


Impossibilitado de “executar” algo nos domínios da ciência ou da arte, o gênero ensaístico, na visão ressaltada por Adorno, “espelha” sua falta de maturidade. De quantos olhares diferentes constitui-se a modernidade! Não seria exagero referir-se à falta de “escrúpulos” no caso de alguém criar algo a partir de outrem ou entusiasmar-se com os feitos de uma outra voz?


A leitura intertextual e, às vezes, até os procedimentos da cópia, da citação e da simulação operados por Benjamin, Barthes, Borges e/ou Bakhtin, na modernidade, prescreve no diálogo com o outro – a tradição – uma das possibilidades de re-leitura do texto, do contexto, do próprio cânone literário.

Nessas releituras, Borges – leitor do diário, do sonho e da enciclopédia como gêneros literários – é exímio. Exemplar disso é o seu “Pierre Menard, autor del Quijote”, texto de Ficciones (1941). Neste conto de cunho eminentemente ensaístico, Borges cria um “rol de escritos” que ele define como “um diagrama” da “história mental” de Pierre Menard, seu personagem. Autor do século XX, Menard tenta reescrever o Quixote com as mesmas palavras de Cervantes – um escritor do século XVII. Claro que a empreitada consegue outros intentos, mas Borges evidencia sua crença de que é possível atribuir um mesmo texto a diferentes autores em contextos diferenciados.

O texto ensaístico abre-se a essa re-leitura. Parte sempre de um aspecto formal preexistente (o próprio Cervantes tem nas novelas de cavalaria a forma a partir da qual constrói seu romance). O ensaio refere-se, geralmente, a algo criado a partir de uma forma. Ou seja: o texto ensaístico, na maioria das vezes, nasce a partir de algo que insinua, sugere ou determina, a sua própria formação.

Embora seja cobrado deste gênero uma autonomia formal há, em relação ao ensaio, sempre uma forma a priori. E como as formas são socialmente construídas, podemos pensar que: não apenas em relação ao gênero ensaístico, mas a quaisquer gêneros aos quais o autor submeta-se, existe sempre um arquivo de formas historicamente pré-determinadas apontando, de certa forma, os limites de sua criação (ou, como dizia o catatau Paulo Leminski, o poeta já nasce meio que aprisionado por um determinado “estoque de formas”). Mas não apenas os poetas que escrevem ensaios são cônscios desse aprisionante estatuto das formas. Percebendo “que o significante acompanha ou orienta as batidas cardíacas do texto”[5], o ensaísta Eduardo Portella também diz da forma como “responsabilidade de todo e qualquer escritor”.

A “disponibilidade infantil” e a falta de “escrúpulos” da visão ressaltada por Adorno parecem apontar, no exercício do ensaio, para a carência de idéias de fundamento (texto científico) e para a noção de originalidade (obra de arte). Essa leitura sintoniza-se com uma romântica visão de mundo que credita a “algo primeiro” a condição a partir da qual se torna possível criar.

Em seu ensaio, Adorno associa essa visão a uma leitura positivista que aposta no “purismo científico”. Ele crê na possibilidade de desvelar e manter intacta a objetividade do objeto ensaiado (como se fosse possível a apreensão de uma verdade independente do olhar que a constrói). Mas aqui o próprio Adorno dá a senha: “Naquilo que é enfaticamente ensaio, o pensamento se liberta da idéia tradicional de verdade”.[6]

A visão que cobra essa objetividade parece sintonizada com um olhar que vislumbra ser possível ancorar, ad infinitum, em algo da ordem do real, o verdadeiro. Dessa crença distancia-se o ensaio. Este gênero parece mais próximo do efêmero e do fragmento. Sugere uma forma que “prefere perenizar o transitório”[7], descartando conceitos calcados nas idéias de ordem, totalidade e fundamento. Tecendo relações acerca do “vazio correlato ao indivíduo” e da produção ensaística, Costa Lima[8] associa o ensaio à fragmentação, assegurando:

...o fragmento partilha com o ensaio o caráter de inacabamento e de ser uma individualidade e não a expressão de algo anterior. O fragmento é a forma mínima do ensaio. ...Fora de distinções temáticas, que diferenças há entre um fragmento de Pascal e um ensaio de Montaigne além da expansão do segundo ou, inversamente, da redução em que se deixa o primeiro?

Fragmentado, o ensaio enseja uma outra ordem. Ele nada funda. Da fenda onde fabrica e faz circular sua linguagem, ele mais aponta, insinua, desloca. Dilata o ensaio os limites da forma textual (assim como a poesia exercita o limite da linguagem). O ensaio repassa outra forma, outra senha. “Impulsionado pela movência, o ensaio não tem ponto de repouso”[9].

O ensaísta contemporâneo sabe da impossibilidade de idetificar-se com algo que remeta a um centro fixo e às idéias de plenitude e totalidade. Ele percebe que a construção da verdade, na pós-modernidade, torna-se viável a partir de experiências estéticas e retóricas, ou mesmo a partir de experiências ficcionais e/ou poéticas. Isto vincula a idéia do verdadeiro à perene “substancialidade da transmissão histórica”.[10]

Nesta “substancialidade” “histórica”, o dado provisório, o elemento cotidiano ganham aumento na lente de quem ensaia. Isso é exemplificado, por exemplo, na prática ensaística de autores como Câmara Cascudo ou Gilberto Freyre – autores às vezes propositadamente assistemáticos no que se refere à produção de suas obras.

Freyre e Cascudo desceram os degraus da Casa Grande... e, às vezes deitados na Rede de Dormir, ensaiaram uma outra nação. Nesse moderno ensaio da nacionalidade, eles transpuseram, “o gueto das disciplinas fechadas”, narraram o Canto de Muro e os Sobrado e Mucambos... Tendo como “foco narrativo” o nordeste brasileiro, os dois ensaístas cruzaram outros “olhares, percepções, linguagens” [11]. Nesse cruzamento, levarem em conta outros elementos como: os cheiros do curral e da feira, os sabores da cana-de-açúcar e do sal, a fala e os gestos lentos, precisos, às vezes contrafeitos. Não deixaram de fora das suas escrita o corpo “desengonçado, torto” e os harmoniosos passos do maracatu.

Para quem ensaia não existem coisas banais. Todos os elementos inserem-se numa ordem instaurando os objetos e as idéias na historiografia do saber e da cultura. Na história ensaística, tem a palavra Montaigne[12], cuja necessidade de “escrever o punha à procura de uma forma”:

As coisas mais ordinárias, mais comuns e conhecidas, se soubermos trazê-las à luz, poderão formar os maiores milagres da natureza e os mais maravilhosos exemplos, sobretudo em relação às ações humanas.


Talvez a tentativa de inscrever as “coisas mais ordinárias” e “comuns” traduza o desejo de elaborar-se uma poética do referente, uma poética da reflexão; uma poética do que é (aparentemente) menor ou até superficial. Para a inscrição desta poética, pensamos numa produção ensaística cuja reflexão “abarca o máximo da realidade dos sentidos”,[13] lançando mão do que a fantasia produz de infinitude e conexão, entusiasmo e imaginação.

Imaginamos que o engendramento formal, possibilitado pelos atos de refletir e conhecer, possa vincular-se à ação da escritura, constituindo-se na própria forma ensaística. Atentamos assim para a legitimação de uma poética que ao invés de expressar, tenta inventar a sua própria forma. Uma poética que, descartando o abismo, pode eleger a superfície como espaço privilegiado de sua inscrição formal. Forma que exercita a sua escrita ao apostar na pele virtual enquanto signo contemporâneo.



NOTAS


[1] Benjamin. Rua de Mão Única. 1995. p. 38.
[2] Schlegel. Conversa sobre a poesia... 1994. p. 67.
[3] Aristóteles. Poética. 1973. p. 446.
[4] Montaigne apud Auerbach. Mímesis. 1987. p. 258.
Sobre essa escuta de si, é pertinente lembrar Walter Benjamin: “Ser feliz significa poder tomar
consciência de si mesmo sem susto” (Benjamin. Rua de Mão Única. 1995. p. 37.).
[5] Portella. “Roland Barthes, e depois”. Terceira Margem. 1995. p. 169.
[6] Adorno. “O ensaio como forma” in Adorno. 1994. p. 175.
[7] Idem., op. cit. p. 175.
[8] Lima. Limites da Voz - Montaigne, Schlegel. 1993. p. 88
[9] Idem., op. cit. p. 88.
[10] Vattimo. O Fim da Modernidade. 1987. p. 16.
[11] Portella. “Trópicos impuros, impudicos e plurais” in O Globo. 2000. p. 03.
Neste ensaio, o autor refere-se especificamente à produção de Gilberto Freire, como obra primeira na “compreensão cultural das raças”, destacando seu pioneirismo ao “contar as pequenas histórias da vida privada”.
[12] Pinto. Alberto Camus. Um elogio do ensaio. 1998. p. 101.
[13] Ibdem., op. cit. p. 41.