Mostrando postagens com marcador Realidade. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Realidade. Mostrar todas as postagens

domingo, 24 de abril de 2011

Overdose do real

De olho nos autores que começaram a publicar a partir da década de 90 do século XX, no Brasil, percebe-se que com essa chamada geração realista surge uma outra forma de profissionalização literária. A partir do surgimento dessa geração 90 e tendo por base alguns textos lançados pela geração 00, podemos dizer que um outro perfil do autor literário passa a ser redefinido nestas primeiras décadas do século XXI.

Para a construção desse perfil autoral, a publicidade pode armar estratégias de inscrição cultural e de consolidação literária, diferindo de tudo o que foi visto no universo das Letras. Antenado com a subjetividade maquínica e virtual, esse novo perfil autoral possui muito pouco do autor que tinha na leitura e na escrita de textos verbais as bases do seu universo literário. Para alguns desses autores contemporâneos, literatura é outra coisa. Seus procedimentos estéticos e culturais são outros. Para eles, a literatura transformou-se em algo bastante diferente do que era, por exemplo, a arte literária para um escritor do século XIX – o mais literário de todos os séculos, como diz Eduardo Lourenço.

O perfil literário contemporâneo surge em sintonia com os gráficos da mídia e do mercado, mas de ouvido aberto ao discurso da crítica. Esse novo autor busca atender demandas múltiplas como as patrocinadas pelas feiras de livros e eventos culturais como as bienais, por exemplo. Daí, as agendas trepidantes e os infindos roteiros – reais e virtuais – da maioria desses autores. Eles elegem as letras urbanas e as ruas modernas como “personagens” de seus textos.

Esses textos são lidos, em sua maioria, por um viés realista। Esse realismo não tem nada a ver com aquele velho Realismo cheio de certezas e das noções de totalidade que aprendemos com Lukács. Não se trata de um realismo que acredita no poder supremo da representação. Mas nele faz falta, muitas vezes, uma imersão inventiva no universo imaginário onde os sonhos da razão não produzam apenas referente, mas principalmente letras.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Machado Moderno: discurso, corpo, memória




.
.
.

Texto elaborado a partir da “Apresentação” do Simpósio Machado Moderno: discurso, corpo, memória, coordenado por mim no I Seminário Machado de Assis realizado na UERJ em parceria com UFRJ e UFF, Rio de Janeiro 08 a 11 de Agosto de 2008


Leituras do Real Sem Realismo


Cética, irônica, desconfiada, a modernidade caracteriza-se por, dentre outros, questionar os ajustes e as conexões entre a representação e a realidade. Machado de Assis (Rio de Janeiro, 1839 – 1908) antecipa essa problemática, e inscreve-se numa linhagem de criadores modernos que põe em xeque a forma e os padrões romanescos dos modelos românticos e realistas.

Se o narrador realista contradiz o idealismo e a subjetividade dos românticos, tentando analisar o mundo com exatidão e demonstrando uma atitude “científica” diante do real, Machado deles se diferencia abdicando da objetividade como lema. Nada naturalista, jamais acredita possuir as chaves do real: “...voltemos os olhos para a realidade mas excluamos o Realismo”, dizia. Descartando as idéias de unidade e de totalidade, o autor cria personagens volúveis cujas identidades são mutantes e contraditórias que nem a sociedade da qual fazem parte.

Como o professor Rubião, o seu personagem mineiro que vem morar no Rio de Janeiro, no romance Quincas Borba (1891), o carioca Machado também coteja “o passado com o presente”. Nesse cotejar, o autor de Memorial de Aires (1908) relê o arquivo de formas da tradição literária e cultural (William Shakespeare, Laurence Sterne, José de Alencar, Goethe, Edgar Allan Poe, Montaigne, Voltaire, Pascal, Schopenhauer...).

Essa sintonia com a tradição traduz uma leitura de mundo de quem lê a arte na “paisagem social” (Bosi) do final do século XIX – em pleno Segundo Reinado do Brasil Império – como “missão social”, “nacional” e “humana”. Essa releitura histórica e estética se dá de ouvido nas construções discursivas desses autores da tradição ocidental, de olho nas identidades e nas figurações dos corpos de seus personagens e atento às linguagens e às memórias de quem narra.

Temas, Formas, Procedimentos

O autor aciona, através desses procedimentos narrativos, um acirrado intertexto entre a literatura e outras áreas do saber e da criação, como a história, a mitologia, a cultura e a filosofia, além dos fatos sócio-políticos. Com base nessa intertextualidade, este simpósio acolhe, de forma interdisciplinar, as análises e leituras que inscrevem o diálogo entre as produções estéticas de Machado de Assis e essas áreas do saber, abordando questões relacionadas aos seguintes núcleos temáticos: o discurso, o corpo, a memória.

A abordagem desses três núcleos temáticos possibilita a leitura e a comparação de diferentes contextos. Estabelece inusitados diálogos e relações entre as noções de tempos e espaços. Sugere uma multiplicidade de conexões entre a produção de linguagem e a reflexão em torno de temas como: ideologia, violência, abolição, erotismo, loucura, religião, arte, política, nação... As leituras e interpretações em torno de tais temas possibilitam uma polifonia por meio da qual inscrevem-se as vozes de quem narra e as questões sociais, psicológicas e existenciais dos personagens.

Essas abordagens em torno do discurso, do corpo e da memória evidenciam as múltiplas formas inscritas pelo autor – conto, novela, teatro, romance, poema, crônica, carta, ensaio, tradução e crítica (de romances, estudos, teatro, óperas...). Evidenciam também os principais procedimentos estéticos e culturais que estruturam e se anunciam nessas formas machadianas como, por exemplo, a metalinguagem, a intertextualidade, o corte, o diálogo com o leitor, a paródia e a ironia. Como sabemos, esses procedimentos estruturam não apenas a construção da “letra” do criador da ABL, mas sedimentam as grandes narrativas da modernidade.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Rayuela: utopia e realidade no espaço urbano




















Ensaio publicado na Revista Terceira Margem, ano VI - n 7, Rio de Janeiro, 2002



I

Num tempo no qual o espaço da virtualidade impõe-se como elemento constitutivo na formação da identidade do sujeito, a imagem associa-se à construção do real ou parece confundir-se com este. Mas, a qual realidade estamos nos referindo? A contemporaneidade parece cada vez mais propensa a construir o real a partir de múltiplos estágios espaciais. Estes, podem ser articulados de várias maneiras: através do olhar voyeur que transita na multidão, na relação corpo a corpo, na tela de cinema, no uso do controle remoto e num clic na tela do pc, por exemplo.



Na leitura que faz da realidade imaginária contemporânea1 , Nelson Brissac Peixoto assegura não haver mais diferença entre realidade e imagem. Essa assertiva tem por base a figura do viajante que, em vez de percorrer espaços, vê imagens - pela janela, pelo espelho retrovisor, na tela de cinema. Como as imagens de Rayuela, de Júlio Cortázar, estas imagens (a)parecem sempre em movimento; o que possibilita a construção de um nível de realidade já que, ao moverem-se e cruzarem-se no espaço, elas - as imagens - propiciam uma relação2 .



Relacionamos aqui a viagem realizada por este sujeito - que vê tudo enquadrado - com o roteiro de André Bueno em "Viagens pelo mundo desencantado"3. Neste ensaio, o autor lê vários textos de Cortázar, e diz da viagem como ação que, ao buscar romper com o movimento retilíneo e unilinear, possibilita uma outra leitura do tempo e do espaço. Associando a imaginação literária e o tema da viagem, diz André:

Ao invés da viagem real, embora misturada com algum tipo de imaginário, temos agora muito mais a viagem imaginária, o deslocamento forte do desejo, da linguagem, dos movimentos utópicos, quase sempre a partir de um sujeito cindido, em crise, diante de uma realidade que se torna hostil4 .

Talvez seja o fato destes deslocamentos ocorrerem mais no plano imaginário, como sugere André Bueno, o que leva Nelson Brissac a dizer que não existe mais diferença entre a imagem enquadrada no veículo e a que se vê na tela de cinema. Para o autor de Cenários em Ruínas, as imagens apresentadas por ambos os espaços - o veículo e o cinema - são auto-referenciais, na medida em que a imagem vista do veículo já foi veiculada na tela. Segundo ele, o contemporâneo olhar que lê estas imagens é objetivante, muito mais distanciado.



No texto de Cortázar, os deslocamentos do sujeito, seus movimentos utópicos pressupõem a crença numa espécie de ideal socialmente desejável que possui com o imaginário uma forte relação. Atrela-se este ideal ao anseio de rupturas; é contrário aos petrificados modelos existenciais, e idealiza a produção de uma outra subjetividade através da construção de outras imagens.


I I


Na cena contemporânea, procuramos ler o texto e seu contexto como espaços produtores do real e a partir dos quais se estabelece, como na escritura de Walter Benjamin, a relação entre ética e estética. Essa relação dialógica - entre texto e contexto - leva em conta a idéia de fragmentação (e não a busca de um sentido pleno), remetendo à noção de alegoria exposta por Benjamin e sugerida por Cortázar (Cap. 102): Tudo se decompunha em fragmentos, que se fragmentavam por sua vez; nada conseguia captar por meio de uma noção definida5 .


A alegoria lida nos dramáticos cenários alemães de Walter Benjamin remete às noções de fragmentação, de diferença e à expressão da margem, opondo-se ao símbolo e sua representação da lei, da ordem. Deste modo, pode-se associar as proposições do sentido alegórico ao ideal utópico, já que ambos postulam a ruptura de uma determinada ordem de valores vigentes (a noção de alegoria benjaminiana é resgatada da cabala e de sua pluralidade interpretativa, sem resvalar para a questão da fé, mas para a elaboração de um método. Este método - antes circusncrito apenas ao espaço religioso -, ao ser transplantado para o espaço da arte e da história vê pelo retrovisor o passado sempre renovado, a tradição relida, rememorada).



O lance genial de Benjamin foi reler a tradição percebendo, no cenário industrial das primeiras décadas do século XX, os novos ritmos impostos ao corpo e ao pensamento - o que possibilitou uma outra percepção do sujeito moderno. A partir desse cenário industrial e dos ritmos perceptivos dele oriundos, a lição benjaminiana adentra este novo milênio e seu cenário virtual ensinando-nos o quanto de histórico e social há na construção da percepção. Diz sua lição: se muda a percepção da comunidade, mudam-se as formas de produzir arte e cultura6 .


Estas mudanças de percepção e das formas artísticas foram captadas por Julio Cortázar, ao construir Rayuela - este metafísico rio de letras - que corre na inquieta Paris e na caliente Buenos Aires dos anos 50/60 e que, segundo Arrigucci, é lido como uma espécie de filosofia de toda a obra do autor argentino. As personagens do romance - Oliveira e a Maga, Traveler e Talita, Pola, Remorino, Gekrepten, os membros do Clube da Serpente - indagam e problematizam sobre vários temas e questões ligadas à arte, cultura, filosofia, ciência e religião, dentre outros. É através de associações entre esses diferentes campos do conhecimento que as personagens tentam compor as dimensões utópicas e identitárias dos espaços nos quais transitam.


Desta forma, aquelas áreas do saber e da cultura são mediadas por uma outra destacada "personagem" do texto: a cidade. Ela é o espaço no qual brotam as indagações e os questionamentos acerca da utopia e da realidade que engendram o texto de Cortázar; o que possibilita lermos sua narrativa como inscrição do real e do espaço utópico, a partir dos quais o sujeito constrói sua identidade. Nesta construção identitária, a leitura do sujeito e do texto se dá através de um discurso no qual a interrogação predomina.


"Encontraria a Maga?" - Esta primeira frase de Rayuela parece ser o signo que aponta para o discurso narrativo de Cortázar: um discurso que mais indaga que responde, mais sugere que propõe e parece dialogar melhor com as idéias de falta que de plenitude. Apontando para o fato de que quanto mais próximo da indagação mais nos acercamos da ordem do humano, o narrador indaga nossa distância em relação à ordem divina: Por que tão longe dos deuses? Talvez por perguntá-lo. ...O homem é um animal que pergunta. No dia em que soubermos verdadeiramente perguntar, haverá diálogo7 .


A indagação e o diálogo remetem a uma dimensão reflexiva que evidencia a perene necessidade humana de questionar-se. Como a Maga, as outras personagens parecem eternamente afeitas a dialógicos e exercícios interrogativos e, de olho na perene leitura do espaço no qual desenvolvem suas performances, erigem e desconstrõem seus discursos, buscando a tecitura do real. Estes discursos (a)parecem associados à uma realidade construída a partir das ações móveis e mutantes que compõem o (con)texto. Dentre os elementos destas ações, a linguagem talvez seja o mais importante, já que por meio dela é criado e atualizado o real. Acerca disso diz Etienne (cap. 99): ...a criação de ....uma linguagem... mostra irrefutavelmente a estrutura humana... A linguagem quer dizer residência numa realidade, vivência numa realidade8 .


É interessante observar que os próprios nomes das personagens alternam-se durante a narrativa, o que sugere a inserção delas numa realidade que não é dada de antemão. Assim, dependendo do contexto e seu discurso, Lúcia pode ser a Maga, Ossip é Gregorovius, Horácio é Oliveira... Como a Maga, a maioria deles - munidos do sentimento utópico expresso na oposição aos valores contextuais - parece recusar-se a aceitar o aceitável9 . Como Oliveira, eles descobrem que as suas sina é procurar - razão de todos os destruidores de bússolas10 ; razão de todos os que acreditam na possibilidade de materialização de um ideal considerado absolutamente bom (como eram lindos os anos sessenta...).


Indagando, questionando, recusando o aceitável, as personagens de Rayuela habitam uma Paris fabulosa. Seguem os seus roteiros a partir da frase ouvida de um passante. Lêem os signos e os sinais da cidade, na tentativa de construir o real; embora a leitura destes signos e sinais não pressuponha uma crença religiosa, mas apontem para uma leitura cuja interpretação estabelece vínculos diretos com o intérprete, e não com símbolos que postulem uma verdade pétrea, linear...


I I I




O capítulo 2 de Rayuela expressa claramente a preocupação do narrador com a questão do real. Aqui, o estilo de vida das personagens evidencia a desordem que os regem, o caos portátil no qual se inserem. Neste caos, por exemplo, um bidê converte-se em arquivo de correspondência e a cama - desarrumada de muitos dias - transforma-se em palco de cerradas discussões lítero-afetivas. Diante desse cenário, ouçamos o narrador: Eu depressa compreendera que não se podia apresentar a realidade à Maga em termos metódicos...11




Para a Maga, a desordem e o caos pareciam compor uma outra ordem; como se ao sujeito necessitasse a percepção particular de sua inserção em meio às pessoas, idéias e objetos que o cercavam. A construção dessa outra ordem poderia, numa primeira instância, parecer absurda, até que daquilo surgisse algo coerente. Diferentemente de Horácio, a Maga carecia de poucas explicações. Ela sentia. Parecia bastar-se neste sentir. Pouco afeita aos meandros da reflexão, ela era contrária às leis do discurso cartesiano, às lições de Dona Moral e norteada por um saber de ordem sensorial: não era na cabeça onde ela tinha o centro12 .


Mergulhado em questionamentos metafísicos e seguindo preceitos utópicos, Horácio põe no espaço urbano a ação e o sentido de sua renúncia como protesto, já que para ele o ato de agir parece associar-se a uma moral, moral da ação. No texto esta moral está relacionada à realidade da classe média argentina. Segundo Horácio, a ação dessa classe serviria para tirar o corpo da realidade nacional e de qualquer outra noção do real, e para julgar-se a salvo do vazio que a rodeava13 . Renunciando à dialética da ação, nossa personagem busca fugir do universo às vezes automatizado da classe média, no qual a dúvida inteligente cede espaço para a esclerose, a definição; para a cena repetitiva e previsível.



Nesta cena, Cortázar estetiza as máquinas do conformismo - responsáveis, em grande parte, pelo automatismo nosso de cada dia e pela nossas dificuldades em relação às leituras do devir. Contrário ao que se estabelece a priori, e em sintonia com a pulsação proposta pelas personagens de Cortázar, ouçamos o escritor cubano Severo sarduy: ...nada na vida tem um sentido prévio... a missão do homem é precisamente dar sentido à vida, forçar o sentido: esse é o único sentido14 .


A história tem demonstrado ser a arte um dos espaços nos quais a construção desse sentido postula uma gama de possibilidades de inscrição do real. A própria noção de utopia pode ser lida como um gênero literário, uma espécie de ficção política cujo desejo de mutação afirma-se no plano imaginário. (Imperativo observar que o espírito utópico pode, por um processo de sublimação, gerar obras de arte que exprimem - de modo simbólico - o estado desejável a que ele aspirava mas que não conseguiu materializar15 ). Ao criar sua obra, o artista pode tentar iluminar o real ou mesmo criar uma outra noção de realidade, consciente de que a verdadeira realidade - sempre incompleta - consiste em algo que se produz a partir de nós (em sintonia com a alteridade).


O que Cortázar parece propor com seu jogo é a produção de uma realidade a partir de um saber com sabor, como queria Barthes, e não apenas da informação pura - o simples referente -, descartada da experiência sensorial. Isso evidencia-se na fala do narrador ao assumir que descreve e deseja o rio, enquanto nada a Maga - personagem que, frente às situações, decide-se, muitas vezes, epidermicamente. O real pode ser também saboreado na assertiva de Etienne, por exemplo, ao dizer que pinta com todo o corpo e ao contrapor-se à idéia do Logos compreendido exclusivamente como verbo. Esta contraposição aposta na crença de um real construído a partir de diferenças, da assimilação de pluralidades ou mesmo de uma circularidade que parece perpassar a existência de todas as coisas, criando sentidos inusitados, tecendo percepções múltiplas; tecitura essa que pressupõe o fim do raciocínio binário.


Estas noções de realidade - vivificadas por Maga e Etinne - sintonizam-se com as ambigüidades do projeto utópico da maioria das personagens. Esta sintonia que pode ser lida na interpretação que elas fazem do real levando em conta a alteridade, e não apenas ansiando uma espécie de satisfação narcísica que permeia pequenas sociedades fechadas - o que não se aplica ao Clube da Serpente. Neste sentido, imperativo seria apreender a unidade em plena pluralidade, que a unidade fosse como o vértice de um turbilhão e não a sedimentação do mate, lavado e frio16 .

Esse princípio de pluralidade (e de circularidade, poderíamos acrescentar) possibilita múltiplos estados perceptivos e remete a várias leituras do universo; dentre elas, uma que o interpreta a partir da forma labiríntica. Em Rayuela, a própria Paris, segundo o narrador, é lida como labirinto onde as fórmulas pragmáticas conduzem à perda. Com base nessa perspectiva borgeana, entendemos que a realidade não é somente aparência, mas sentimento e também imaginação, e o mundo não é um caos, mas um labirinto, um cosmo que se oculta, e temos a tarefa de descobri-lo17 .


Para a consecução dessa descoberta, a múltipla leitura do contexto possibilita a inscrição do real. Às vezes isso se dá de forma indireta como, por exemplo, quando o sujeito lê, no rosto da mulher amada, a rua de uma cidade. Noutras páginas, são luzes que brilham num olhar, remetendo à nuvens, a um viaduto ao anoitecer (cap.11). Às vezes, essa leitura é típica de quando uma mulher se transporta num homem - em sua pele, em seus cabelos, nos seus olhos - e assim atinge uma outra mulher (A Maga, por exemplo, sentindo a existência de Pola em Horácio).

Outras vezes a real tessitura do próprio espaço urbano é lida através do tapete desbotado (embora todos assumam viver um grande amor às cegas por ela - a cidade), que desbota ao rés do chão. Mesmo no pantanoso terreno dos afetos, descobre-se ser a leitura do espaço viável quando entramos no Jogo, ...atraindo-se e rejeitando-se, como é necessário quando não se quer que o amor termine em cromo ou em romance sem palavras. (...) nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura...18

I V

Não apenas no discurso amoroso, mas também no discurso estético, a busca de desvendar o labirinto, na tentativa de fundar o real, está presente no jogo vivido pelas personagens. Após discutirem a pintura no capítulo 9, o capítulo 10 e o 17, por exemplo, evidenciam a música, destacando a importância do blues e do jazz. A música compõe a estética de Rayuela: tece a realidade e o ser. Isso nos remete novamente aos Cenários em Ruínas que, ao colocar sob o refletor a figura do estrangeiro, evidencia a descoberta de musicais elementos identitários incorporados pelo sujeito que viaja, emigra. Diz Nelson Brissac, como se dissesse das personagens de Cortázar: Eles descobriram no blues, música dos desterrados americanos, daqueles que tiveram de partir, que perderam tudo, a expressão de sua própria deriva, do seu estranhamento19 .


Em Rayuela, a própria música é ouvida como personagem migrante: ...o jazz é... um pássaro... que imigra ou transmigra, salteador de barreiras, contrabandista, algo que corre, que se difunde... (cap. 17). Pássaro à deriva sobre os espaços... Salteador cujo estranhamento desautomatiza, educa tímpanos... Essa deriva do jazz é também vivificada no diabólico divórcio das formas e dos conteúdos, às vezes lido por Etienne (cap. 16); o estranhamento jazístico pode expressar-se na forma como Gregorovius define Oliveira para a Maga: sujeito patologicamente sensível à imposição de tudo aquilo que o rodeia... Em resumo: ...despedaçado pela circunstância (cap. 17). Esse despedaçamento do sujeito pode expressar-se na voz do narrador. Ao relacionar o ser ao jazz, ele improvisa com o que de mais e de menos distingue o humano de sua criação musical:

...um homem é sempre mais do que um homem e sempre menos do que um homem, mais do que um homem por encerrar em si aquilo que o jazz faz sentir e até antecipa, e menos do que um homem em virtude de ter feito dessa liberdade um jogo estético ou moral, um tabuleiro de xadrez onde se reserva ser o bispo ou o cavalo, uma definição de liberdade que se ensina nas escolas...20

Neste jazz e neste jogo, a epifania é lida como iluminação que ordena o caos aparente de cada dia. Da desordem transformada em texto - som ou imagem - gera-se, a partir de um olhar utópico, uma outra ordem. O espírito da utopia ajuda a olhar com mais acuidade e sutileza o contexto. Pode, por exemplo, buscar sentido numa tela de Mondrian que, mesmo aparentando não possuir ar, sugere outro modo de respirar. Essa sugestão nasce quando a naturalidade e a realidade se tornam inimigas (cap. 21), e o passado debate-se com a realidade presente.
Na ciranda do tempo, o Jogo da amarelinha diz da necessidade de reinstalar-se no presente e chover internamente para que sejam descartados os olhos que olham sem ver. Neste jogo faz-se bom uso do próprio silêncio e o humor torna-se ingrediente imprescindível, tipo numa cena onde os fósforos começam a falhar, um após o outro. É quando o real expõe sua cárie - sua precária noção de limite. Mas, qual chama que arde no tostado corpo feliz, a noção de limite é também mutante; movência que anuncia outro fósforo, outra luz, outra cor.


Muitas vezes nenhum fósforo e nenhuma luz são usados pelo Clube da Serpente ao travar discussões acerca do real (cap. 28). A tecitura do que seja a realidade faz-se, às vezes, pouco luzidia, com traços miúdos de um cotidiano coletivo cuja oralidade detona as dicotomias ocidentais. No Clube, os avisos debaixo da pele comunicam o que o dicionário pode omitir. Exemplo: para o Clube, às vezes, a audição da chuva serve como trilha sonora... Nestes momentos, percebe-se

que o homem parece seguro somente quando se encontra em terrenos que não o tocam a fundo: quando se distrai, quando conquista, quando arma os seus mais diversos disfarces históricos à base do “ethos”, quando delega o mistério central a “cura” de qualquer revelação21 .

Rayuela às vezes radicaliza ao eleger a revelação e os movimentos utópicos, dentre outros, como elementos representativos da noção de profundidade. Nossa provisória condição humana e moderna demonstra, principalmente ao fitarmos as imagens que nos cercam, que plainar na superfície, distrair-se e conquistar podem ser verbos de um outro jogo que, sem abrir mão da construção do real, o lê de outra forma.


V

Do lado de lá a discussão sobre o real envolve todo o Clube. Para o pragmático Ronald, ...o problema da realidade não se enfrenta com suspiros. Gregorovius questiona. Ronald insiste no fato de não necessitar de qualquer palavra para sentir, e a isso chama de realidade. Oliveira concorda, mas lembra a eterna impossibilidade de captação da totalidade e da incomunicabilidade existente entre os seres, já que eles dispõem apenas dos sentidos e das palavras - elementos dos quais preferem desconfiar. Para ele, cada ponto de vista pessoal possibilita um ângulo de leitura diferente do real, e referindo-se a Ronald, diz: ...o seu egocentrismo barato não lhe dá qualquer realidade válida. Só lhe dá uma crença fundada no terror, uma necessidade de afirmar tudo que o rodeia...22




Oliveira sabe que perante um momento de crise a realidade precipita-se e o sujeito renuncia à dialética. Criticando o absurdo de um mundo ordenado, ele diz que a razão só serve para dissecar a realidade na calma, ou para analisar as suas futuras tormentas, nunca para resolver uma crise instantânea23 . Essa lógica parece apontar para a necessidade de, em alguns momentos, ser necessário descartar a dialética e os históricos valores herdados (a verdade e a bondade, por exemplo) a fim de alcançar outras instâncias do real. Ou, como sugere Gregorovius, talvez essa lógica seja estranha e inexplicável como os sonhos e as revelações, por exemplo. Mas tudo isso é tão imprevisível e mutante quanto o movimentado roteiro das pedras e das perdas no jogo... Mas tudo isso é tão dúbio e difícil quanto chegar com a pedrinha ao céu no jogo da amarelinha (cap. 36). Será por isso que precisamos inventar o Éden, colher brisa, escrever poemas, tecer utopias? Talvez seja por esse motivo que o moderno Oliveira anseie por um bonde menos incômodo, uma noção de centro, de unidade, de ubiqüidade. Outras chaves e cifras. Ele sabe da necessidade de intuirmos o que constitui nosso real, do ser ao verbo, não do verbo ao ser (cap. 99).




Dessa forma poderemos expressar o desejo de anular a distância entre o que a ordem social é e o que deveria ser, caso fosse possível torná-la satisfatória24. A essa expressão do desejo chamam de utopia. Construindo leis e roteiros existenciais para a sociedade contra a qual se volta, a criação utópica oscila, segundo Benedito Nunes, entre a compreensão reflexiva das possibilidades humanas ainda em suspenso e a negação imaginária do real que se desprendem25. Mas, embora negue este real, a utopia revela, por outro lado, as possibilidades objetivas que ele contém. A partir disso, uma de suas principais funções consiste em estimular a imaginação criadora a fim de criar um começo de modelagem - projetar linguagens e ações futuras. Com base nesse estímulo imaginário, torna-se viável a invenção de possibilidades coletivas, jamais imóveis ou individuais, patrocinadoras de ações e relações entre os homens.




O exercício destas ações e relações humanas parece expressar seu significado no capítulo 56, no qual as duas personagens situam-se em territórios diferentes, entre o limite e a passagem. Talvez a distinção entre ambos - limite e passagem - esteja no exercício da voz (mais sonora e vibrante) oriunda da máscara, construção da persona. Ao ressaltar que o dionisíaco Oliveira mistura as realidades e as recordações de um modo sumamente não-euclidiano, diz Traveler: Estar vivo parece sempre ser o preço de alguma coisa. E você não quer pagar nada. Nunca o quis. Uma espécie de pureza existencial. Ou César ou nada, esse tipo de definições radicais26 .
.
Tão radical quanto o poema rápido e certeiro do polêmico Paulo Leminski: Para que cara feia?/ Na vida/ Ninguém paga meia27.


Notas

1- PEIXOTO, Nelson Brissac. “Imagens” in Cenários em Ruínas. A realidade imaginária contemporânea. São Paulo: Brasiliense, 1987. P. 155.


.
2- Idem, p. 153.


.
3- BUENO, André. “Viagens pelo mundo desencantado” in Terceira Margem. Viagens e Outros Ensaios. Revista de Pós-Graduação em Letras da UFRJ. Ano IV/V - Nº 5-6, 1997-1998. P. 16.


.
4- CORTÁZAR, Julio. O Jogo da Amarelinha. Trad. Fernando de Castro Ferro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. (Col. Biblioteca do leitor moderno, vol. 124). P. 414.


.
5- BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Obras escolhidas. Vol. I. Trad. Sergio Paulo Rouanet. 5ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. P. 169.


.
6- CORTÁZAR. Op. cit. p. 505.
7- Idem, p. 04.
8- Idem, p. 05.
9- Idem, p. 09.
10- Idem, p. 21.
11- Idem, p.14.


.
12- JOSEF, Bella. Diálogos Oblíquos. 34 escritores falam de literatura latino americana. Entrevistas a Bella Jozef. 1ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1999. P. 117.


.
13- BOUDON, Raymond. & BOURRICAUD, François. “Utopia” in Dicionário Crítico de Sociologia. Trad. Maria Letícia Guedes Alcoforado e Durval Ártico. São Paulo: Ed. Ática, 1993. P. 593.
.
14- CORTÁZAR. op. cit. p. 72.



.
15- BORGES, Jorge Luís. “Realidade” in O Dicionário de Borges. O Borges oral, o Borges das declarações e das polêmicas. Org. Carlos R. Stortini. Trad. Vera Mourão. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. P. 179.


.
16- CORTÁZAR. op. cit. p. 27 e p. 29.
17- PEIXOTO. op. cit. p. 151.
18- CORTÁZAR. op. cit. p. 64.
19- Idem, p. 141.
20- Idem, p. 143.
21- Idem, p. 145.
22- BOUDON. Op. cit. p. 598.


.
23- NUNES, Benedito. “Das utopias” in O Dorso do Tigre. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1976. (Col. Debates, 17). p. 31.


.
24- CORTÁZAR. op. cit. p. 297.


.
24- PAULO, Leminski. Caprichos e Relaxos. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 131.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Entre a raiz lusitana e a antena mineira





Uma versão desta resenha foi publicada, com outro título, no Suplemento Literário 85, Belo Horizonte - MG, 2002


Raramente desprendemos energias para ler (ou estetizar) uma estação que nos atordoa. Mas nem sempre é assim. Isso pode ser aferido em Outono atordoado – novela do escritor e ensaísta Edgard Pereira, vencedor do 4º Festival Universitário de Literatura da Xerox Livro Aberto (SP). O exercício narrativo do autor e a forma como o seu narrador celebra a estetização da existência levam em conta vários procedimentos estéticos. Dentre esses procedimentos, destaca-se a re-leitura do arquivo de informações e saberes acadêmicos, o diálogo com a historiografia literária e a estética do cinema, além da inscrição de referências filosóficas, musicais, culturais e políticas.

Em Outono atordoado, o autor de Lobo do Cerrado (1996) erige um tipo de narrador pouco estetizado por nossos ficcionistas. Trata-se de um narrador que acessa o repertório do espaço acadêmico, e neste desenvolve suas performances sócio-políticas e culturias. Não confundir, portanto, com o sujeito que possui no magistério a sua ação e que tem na imagem do professor sua marca profissional (nisso nossa ficção é opulenta). É outro o narrador estetizado por Edgard: “entre a academia e a curiosidade” ele pesquisa, ensaia e publica. Além disso, ostenta a ousadia de, acreditando em “coração aceso”, viver – ação às vezes protelada pelo sopro do automatismo que de quando em vez perpassa solenemente os corredores acadêmicos. Nesta novela, o olho curioso que consulta o arquivo acadêmico é o mesmo que vasculha faminto a vida e seu arquivo de formas em ebulição.

É bastante prazeroso o discurso deste narrador de tom sóbrio, elegante. Nenhuma grandiloqüência lingüística, nenhuma trama mirabolante em seu enredo. Nada de estratégias morais e articuladoras do politicamente correto: o texto de Edgard Pereira é despretensioso. Seu narrador, desprovido de aura e ilusão, perdeu a noção de completude; sabe que driblar a falta é o signo nosso de cada dia. Ele aprendeu os limites das revoluções e das vanguardas. Conecta o seu projeto existencial aos roteiros acadêmicos, apostando numa narrativa que opta pelo tempo presente (ele assume pertencer “a uma geração que leu Freud através de Lacan”, e por isso sabe que a ficção é também uma forma de realidade).

Portugal e Brasil são os cenários nos quais o narrador estetiza a “partilha do corpo e da casa”. Para isso, quem narra aciona a leitura dos espaços urbanos – Lisboa e Belo Horizonte, mais especificamente. Se a princípio os dois espaços parecem antagônicos, logo percebe-se que a forma desenvolta como o narrador transita pelo topos que deseja inscrever aproxima as duas cidades. Nesta sintonia entre a antena e a raiz, a voz narrante "historiciza" a nossa infância sócio-política explorada pelos lusitanos. Ao narrar essa exploração, essa voz aciona uma leitura do nosso corpo social, sugerindo no capítulo 3 – onde o discurso corporal do narrador entra em cena –, a leitura da Bahia como nossa lúdica porção “genital”.

A aproximação entre Lisboa e Belo Horizonte possui vários topos. Pode começar, por exemplo, pela lusitana Rua do Ouro – um espaço estetizado num verso do poeta Fernando Pessoa e fisicamente situado na capital mineira. Ao lermos essas aproximações, vislumbramos os reflexos da luz tropical na sombra européia; ou as reminiscências do “ouro das Minas Gerais financiando os sonhos de D João V” (cap. 8). Deste modo, o texto flui porque a cidade lusa pela qual transita o narrador fora antes lida na página literária. No solo lusitano, é possível ler a geometria das ruas pela lente do poema de Cesário Verde (cap. 10). Mesmo a leitura das cores lusas sugere a herança óptica das coloridas fachadas mineiras (Cap. 5), e os olhos da atendente noturna de um hotel no Cais do Sodré remetem aos “olhos inchados das beatas” de Minas. A inscrição da identidade urbana de Belo Horizonte (cap. 9) é uma das folhas mais instigantes deste Outono.... Vejam que forma bela e lusitana de ler uma cidade mineira: “Na encosta de serra mutilada, a Cidade guardou a sina das quedas, a inclinação natural para o lado esquerdo, as revoluções oblíquas (políticas e culturais)”.

Outono atordoado é também uma sutil indagação (ou um claro manifesto?) sobre o corpo. Corpo de uma geração que viveu a repressão política e “a ilusão juvenil de tudo poder reinventar”. Não é à toa que a novela só termina quando um outro corpo começa, nasce. Entre a sutileza que indaga e a clareza manifesta, uma pergunta perpassa o texto a partir do capítulo 10: qual o futuro de uma sexualidade que possui na repressão católica sua base adolescente? Não existe apenas uma resposta para essa indagação. O princípio da ambigüidade evidencia-se na relação com Isaura – a musa lusitana – e nos takes homoeróticos que permeiam a narrativa. Sem grandes dilemas, o narrador transita entre uma e outra esfera afetiva.



Uma outra senha acerca da questão sócio-afetiva pode estar em Onireves - o nome da personagem que assume a sua condição de um Severino às avessas no meio (no meio!) da narrativa. Até o capítulo 10 ele não se identifica. Mas o capítulo seguinte contém uns versos do poeta Hélder Castanho que poderiam muito bem epigrafar esta novela: “Corro por este/ risco: ousadia hesitando entre/ amor e textos” (atentar para o substantivo abstrato no singular).




Intertextos urbanos e literários
.
.
.

Edgard Pereira envereda por uma trilha cuja “letra” possui na concisão vocabular de Graciliano Ramos e no memorial sucinto e silencioso de autores como Albert Camus suas marcas. A partir destas marcas, é interessante confrontar a velocidade desta narrativa contemporânea com, por exemplo, o ritmo de um romance romântico. Nesse confronto, percebemos que enquanto o narrador de Outono... precisa de apenas uma informação (um parágrafo de dez linhas para registrar uma relação com um corpo masculino), um descritivo texto romântico gastaria vários parágrafos para descrever uma parte do corpo humano (geralmente o corpo feminino). Rasurada (ou descartada?) sua porção romântica, o narrador não consegue ver as estrelas apontadas pela “musa”. Descobre, porém, em Lisboa, que “as luzes da madrugada têm uma cintilação risonha, uma transparência alucinada” (cap. 9).

O diálogo entre as duas cidades – Lisboa e Belo Horizonte – é estetizado através de um profícuo intertexto literário e memorialístico, através do qual se delineia a forma narrativa. Haja citações e releituras de Camões, Pessoa, Sá-Carneiro, Eça, Sena, Cesário, Camilo, Saramago. Da literatura brasileira ouvem-se, neste Outono..., as vozes de Gonçalves Dias, Manuel Bandeira e Carlos Drummond. Essa polifonia literária tranforma a literatura numa das principais "personagens" desta "estação", como demonstra o final do cap. 13:

"Por que um museu de literatura? Como é sabido, graças ao seu exoesqueleto de quitina, a barata é quase indestrutível. A bomba atômica nada pode contra ela. Só ela restará para contar o caso de quando o sol existia para o dia e a lua para a noite e porque, um dia, os homens escolheram não mais ver. Ela e as palavras, conservadas nos livros do museu subterrâneo da literatura. A existência desse museu articula de forma estreita a escrita e a morte. Um inseto vive como eremita na única referência bibliográfica do escritor provinciano num grande dicionário de literatura."


.




Os encontros pessoais do narrador com poetas como Hélder Castanho e Afonso Forte constituem-se em pequenas epifanias, através das quais a criação e os seus procedimentos literários revelam-se de forma leve e sutil, fazendo desta uma narrativa que leciona sem parecer enfadonha. Didático, poético ou leitor do trágico, o narrador frui. Sua fruição – oriunda de uma deriva vivenciada nos roteiros urbanos – diz de uma subjetividade construída a partir do texto da cidade onde se lê “as questões sociais pairando no ar carregado”; mesmo quando é “provisória” a relação entre o espaço e este narrador muitas vezes mais poético que narrativo.

Se a literatura é aqui considerada uma das principais "personagens" deste Outono..., é através da poesia que ouvimos uma senha que muito auxilia na construção narrativa. Essa senha remete ao chamado das águas, mesmo quando “todo o cais é uma saudade de pedra!” (Fernando Pessoa). Ouvido atento a esse chamado, o leitor percebe que quando essa “saudade de pedra” ancora no “cais” existencial, é tempo de redescoberta. Ao ler Outono Atordoado descobre-se que descobrir é uma das nossas melhores heranças lusitanas. Descobre-se, sobretudo, um excelente criador. Tomara que chegue logo a próxima estação de Edgard Pereira.




quarta-feira, 3 de junho de 2009

O que dizem os olhos de quem narra





Reescrito a partir do ensaio publicado na
Revista Odisséia nº 06, Natal, UFRN, 1998



Onde seus olhos estão as lupas desistem
Ana C. A teus pés


Revestindo-se de uma postura cenográfica diante da fragmentação do sujeito e do seu espaço, e atenta à rápida mutação do real, Ana Cristina Cesar adere, em sua poética, a um procedimento de tomadas (no sentido cinematográfico) desse real. A poeta adota o olho como câmera a flagrar o que passa em velocidade. Essa visibilidade imprime no objeto fugaz a significação estética.

Através desse olhar, a poeta registra as multifacetadas Cenas de Abril, lê e recolhe informações em Correspondência Completa, “vampiriza” a tradição literária e cultural em Luvas de Pelica e institui a paixão e a celebração do outro em A teus pés. Nestes textos, o narrador criado a partir de um “olhar estetizante” (Ana C.) sabe ser a grande verdade uma ficção. Uma construção lingüística. Por isso, esse olhar que narra relaciona a informação que capta com elementos imaginários, tecendo uma narrativa que deseja do leitor cumplicidade e sintonia. Um leitor que, munido de humor e repertório, possa reler os signos do “vocabulário de formas” assumido nas produções estéticas da contemporaneidade.

Esse narrador de “olhar estetizante” apenas olha. Contempla. Passeia pelas “alamedas do olhar” alheio. Sua narrativa constrói-se a partir de fragmentos do real e do trânsito imaginário. Ele estetiza o real, confundindo os limites entre realidade e imaginação. A realidade virtual parece ser a quintessência disso, ao colocar a questão do real como forma de ordenação de possibilidades. Na percepção dessa realidade e na leitura desse olhar que narra, o leitor desvenda que o real consiste numa sintaxe histórica e existencial; numa organização gramatical e dialógica entre seres, formas, textos, signos, imagens, espaços...

A problemática do narrador


Podemos diferenciar o narrador clássico do narrador pós-moderno colocando em relevo questões que envolvem a sabedoria e a informação. Enquanto o narrador clássico é sábio e possui sua base na experiência vivenciada, o sujeito contemporâneo narra a partir da observação, da contemplação. Tem argumentos seu olho: informa. Este olho é um instrumento útil e prazeroso na construção narrativa. Como o estranho sujeito dos Cenários em Ruínas[1], quem narra na pós-modernidade é informado que:

Enquadrar, delimitar tudo pelo ângulo da visão, é a obsessão primeira destes indivíduos à procura de imagens, retratos de si mesmos e dos lugares que estão buscando. É por isso que vivem cercados por todo tipo de aparelhos ópticos. São homens do olhar: aqueles que vêem tudo como imagens.

A visão dessas “imagens” possibilita a conjugação dos verbos na narrativa da contemporaneidade: enxergar, enquadrar, estetizar. São essas as ações que se vinculam à metonímia do olhar, no lugar da metáfora da plenitude, como demonstram os narradores das micro-narrativas de Ana C. Vejamos:


As chaminés espumam pros meus olhos
As hélices do adeus despertam pros meus olhos

Cenas de Abril, p. 60

O olho, como um balão bizarro, se dirige para o
infinito; no horizonte, o anjo das certitudes, e no
céu sombrio, um olhar interrogador

Luvas de Pelica, p. 118

Ao vincular-se à metonímia e à ação do olhar, esta poética procura re-ver o fragmento, reconhecendo haver na incompletude, no inacabado, menos beleza e mais problemas (Silviano Santiago). Observemos como esse sentido de incompletude revela-se, através do narrador estetizado em Luvas de Pelica[2]:

Perdi um trem. Não consigo contar a história completa.
...
Aflição de não poder retornar daquele ponto,
com toda a inocência de turista.

Também em Inéditos e Dispersos o narrador fruitivo da “Carta de Paris” testemunha o inacabado que é expresso através do desejo. Mas ali vê-se uma “saída” onde mesmo o incompleto e o provisório se mostram: uma saída de vida[3]. Com a narrativa incompleta, seu “desejo inacabado” (Ana C.) e tendo a inocência perdida, o narrador da pós-modernidade é justamente por isso o “mais problemático” (Silviano Santiago). Primeiro, porque ele não possui o domínio da narrativa, nem tem as “chaves do real” (Ana C.). Segundo, porque a estética do seu olhar é escapante, assim como também o é seu foco narrativo.

A complexidade desse narrador amplia-se na medida em que lidamos com um sujeito que escapa de si próprio. Ao invés de centrado em si, ele atinge o outro. É por este atingido. Como demonstra a leitura dessa poética, a intersubjetividade é posta em questão no próprio ato de narrar. Este narrador não personifica o bom retratista preocupado com o embelezamento (Aristóteles), nem narra tentando alcançar os sentidos da ordem e da distinção (Lukács). Não é o narrador sábio, experiente e aconselhador (Benjamin), nem expõe a neutralidade proposta pelo narrador realista. Também não atua, esse narrador, no nível do simbólico; mas na esfera da alegoria, do imaginário, da pulsão. Daí a problemática dessa narrativa dever-se à experiência estética do tropeço, do desfalecimento, da rachadura (Lacan).

Problematizando o problemático “enquanto categoria objetiva do conhecimento”, Deleuze aposta nele como capacitado para “solucionar seus próprios problemas” [4] e sugere:

Devemos... romper com o longo hábito de pensamento que nos faz considerar o problemático como uma categoria subjetiva de nosso conhecimento, um momento empírico que marcaria somente a imperfeição de nossa conduta, a triste necessidade em que nos encontramos de não saber de antemão e que desapareceria com o saber adquirido.

Lendo a ensaísta de Deleuze e a poética de Ana Cristina, percebemos que a problemática do narrador pós-moderno envolve a possibilidade de experimentar a interação entre sua subjetividade e a do outro - a causa do desejo. A leitura dessa intersubjetividade - que possui esse outro como parâmetro - é um dos elementos constitutivos dos discursos históricos e estéticos das poéticas e das narrativas contemporâneas. Sem noção de hierarquia, essa leitura intersubjetiva traz o eu e o outro para o mesmo campo de sensibilidades, coordenando-os, justapondo-os, e não subordinando-os. Dessa forma, coloca-os numa problemática linha de tensão co-existencial.

eu é um outro

O narrador pós-moderno distingue-se também do narrador romântico (séc. XVIII), cuja atuação é mediada pelo olhar (vidente?) de um Eu absoluto e definido. Para entendermos melhor essa destinção, recorremos a Nelson Brissac Peixoto, no livro Cenários em Ruínas[5], Segundo ele,

o eu contemporâneo é uma construção imaginária. Não existe uma identidade inerente, original, que possa ser restabelecida. Ela é desde logo construída como uma imagem. Ela está construída como uma imagem. Ele está sempre querendo fazer esta construção, substituindo-a por outra imagem.

Estas imagens proliferam nos eus estetizados por Ana Cristina. Neles ecoam também outras vozes. Imagético, esse eu narrante da contemporaneidade é fragmentado, mutante. Metonímico, ele sabe que sua existência só se torna viável como parte de um outro que falta; um outro imaginado, desejado. Sintonizado com este outro, o narrador atenta para a leitura do corpo e sua fala, cujas fendas captam/repassam a informação de um “eu mínimo” (Lasch). Este eu habita um espaço oscilante de imagens, no qual a realidade e a ficção se cruzam. Trata-se de um eu que perdeu a onipotência, e cuja “subjetividade se parece com um roubo inicial” (A teus pés).

A atuação do narrador pós-moderno é, portanto, indireta. Por centrar-se no outro, e não em si, esse narrador lança um olhar presente, dando voz para si e tecendo “conjeturas sobre a vida do outro”, como diz Silviano Santiago. Para o autor de Nas Malhas da Letra, o outro é a “meta do deslocamento lingüístico”, já que a “linguagem poética existe em estado de contínua travessia” para ele. Esse "deslocamento" e essa "travessia" remetem ao detetive de Cenários em Ruínas que, através da investigação do outro está, na verdade, em busca de si mesmo, de sua história. Tal qual o outro nos poemas e nas micro-narrativas de Ana C., cujos narradores são objetos do desejo de nossa mira. Como aquela voz que anuncia o “gozo narrativo” (Barthes) das “Primeiras Notícias da Inglaterra” (A teus pés):

Beberico
os nevoeiros ingleses em mim e por fora
(e o amor se germanizando todo)

ou como nas impressões colhidas pela voz que narra “atrás dos olhos das meninas sérias”, (A teus pés), informando:

Aviso que vou virando um avião. (...)
Não me afogo mais... Não olho
para trás e sai da frente que esta
é uma rasante: garras afiadas e pernalta.



No primeiro trecho, a intersubjetividade envolvendo o sujeito e a mutação do espaço no qual ele atua é mediada sob o signo amoroso. Já a voz que informa, no segundo trecho, tem o outro como referencial óptico; anuncia um olhar que rejeita o passado, enquadrando numa “rasante” o que vem pela “frente”.

Essa busca do outro inclui o desejo de suprir a falta, o isolamento e o vazio; desejo esse que desliza na cadeia ininterrupta de informações que se repetem, transformam-se em simulacros, geram o texto. Como ocorre na “Carta de Paris” (Inéditos e Dispersos). Nela Ana rescreve, de olho nas “luzes trêmulas dos trópicos”, o poema “O cisne” de Baudelaire: As cidades mudam, mas meu coração está perdido, e é apenas em delírio que vejo.

Perdido, silencioso, mutante é o poético narrador contemporâneo. Sua identidade é refeita porque ele está sempre em transição. A busca de construção dessa identidade - instável, provisória - acontece a partir do olhar, e leva em conta dados referenciais e imaginários. Semelhante identificação caracteriza estranhos sujeitos perdidos de suas origens. São sujeitos sem passado muito definido e, às vezes, desterritorializados. Eles perambulam por espaços que os colocam quase sempre em situações de dúvida; às vezes, em situações de perdas. Isso é típico do narrador de A teus pés que, por vezes, atravanca “agora, nesta contramão”. Assobia!

[1] Peixoto. Cenários em Ruínas. 1987. p. 155.
[2] Cesar. Luvas de Pelica. 1980.
[3] Cesar. Inéditos e Dispersos. 1985. p. 81.
[4] Deleuze. Lógica do Sentido. 1988. p. 57.
[5] Peixoto. Op. Cit. p. 212.