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segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Osso, luz


...
e pode às vezes
(o poema)
com sua energia
iluminar a avenida
ou quem sabe
uma vida

Esses versos de Ferreira Gullar fazem parte do poema “Inseto”. Esse poema está no livro “Em alguma parte alguma” que o poeta acaba de lançar. O livro faz parte de uma extensa bibliografia composta de diferentes formas como poesia, música, literatura infanto-juvenil, teatro, crônica, tradução, ficção...

Dentre os livros de poesia de Ferreira Gullar, três títulos podem ser lidos como textos representativos da poesia moderna produzida no Brasil: “A luta corporal”, “Dentro da noite veloz” e “Poema Sujo”. Muitos temas e formas desses volumes publicados na décadas de 60 e 70 estão no livro “Em alguma parte alguma”. Aqui temos novamente as frutas podres na quitanda ou amadurecendo sobre a mesa, vemos os velhos personagens do Maranhão, lemos nomes de ruas do Rio, relemos bichos (haja gato, aranha, rato...) e, dentre outros, um infindo exercício metalingüístico através do qual a trindade corpo-poema-cidade ganha vida e dialoga sem subordinação lingüística ou estética.

Esse diálogo entre o corpo, o poema e a cidade vivifica o ser e estar no espaço cotidiano. A vida vira um problema de linguagens e espantos. O escuro ganha necessidade de forma, como na abertura do poema “Bananas podres 4”: “É a escuridão que engendra o mel/ ou o futuro clarão no paladar”.

É do sol cotidiano que Gullar desentranha grande parte da sua poesia. O poeta sente na boca “o alarido do sol”. O cotidiano é sugado pela boca, pelo olho. Paladar e visibilidade engendram esse cotidiano do poeta moderno romanticamente atravessado por relâmpagos e clarões. Muitos relâmpagos. Pequenas epifanias. Não as epifanias à lá Clarice e Caio onde a luz atravessa, geralmente de forma atordoada e sã, o corpo de quem vê e frui. Em Gullar a luminosidade faz sua travessia nas próprias coisas, no cotidiano mais chão, de onde brota uma poesia feita de pequenos esplendores, assim:
...
mas o perfume daquelas frutas
que feito um relâmpago
desceu na minha carne
... volta a esplender

A juventude não é tudo

No próximo dia 10 Gullar completa 80 anos. Merece todas as comemorações, prêmios e reflexões. Na leitura madura (“A maturidade é tudo”) de Alfredo Bosi que abre o livro, o crítico indaga se materialismo e metafísica “podem conviver em amorosa tensão”. Concluída a leitura de “Em alguma parte alguma”, o leitor sabe que pode conviver sim. Pode casar luz e osso. Pode sugerir relações estéticas, filiações literárias que não acabam nunca.

Mas nesta poética onde Bosi ouve Drummond, meu ouvido escuta Cabral (embora uma tonalidade concretista ecoe de quando em vez dos muitos versos entrecortados, de algumas palavras fragmentadas ou de algumas estrofes alinhadas como nos tempos que o mundo era concreto). Dessa fonte ecoam, desde há muito, “Barulhos”, “Muitas Vozes”...

quarta-feira, 25 de agosto de 2010


UFRRJ – UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO
CURSO: Letras – DISCIPLINA: Teoria da Literatura– Carga H: 60 h
PROFESSOR: Dr. Raimundo Nonato Gurgel Soares


EMENTA

Conceitos de Teoria e de Literatura. Teoria da Literatura como disciplina. Teorias Críticas. Texto, contexto, intertexto. Autor, leitor, narrador. Metalinguagem no texto moderno. Procedimentos estéticos da narrativa contemporânea. Figurações da identidade nas relações entre o corpo e o espaço.


CONTEÚDOS


1 – TEORIA DA LITERATURA

1,1 – Conceitos de Teoria e Literatura
1.2 – Teoria da Literatura: objetivos, definições, funções
1.3 – Teorias Críticas do século XX: Formalismo, Nova Crítica, Estruturalismo, Psicanálise, Marxismo e Estudos Culturais

2 - CRÍTICA E NARRATIVA MODERNAS

2.1 – Re-leituras da tradição: intertextualidade e metalinguagem
2.2 – Benjamin: passagens do narrador e da narrativa
2.3 – Todorov leitor

3 – PROCEDIMENTOS ESTÉTICOS DA FICÇÃO

3.1 – Benjamin e as mutações perceptivas do discurso
3.2 – Barthes, a língua, a linguagem e o prazer do texto
3.3 – Bakhtin, a forma e as vozes do romance

4 – IDENTIDADE, CORPO E ESPAÇO

4.1 – O sujeito moderno e as identidades contraditórias
4.2 – Figurações da identidade na ficção contemporânea
4.3 – O mito fundador e a identidade cultural do Brasil


BIBLIOGRAFIA BÁSICA – Teoria da Literatura

BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética. A teoria do romance. Trad. Bernardini, Aurora Fornoni et al. São Paulo: Hucitec, 1990.
BARTHES, Roland. Lição. Lisboa: Edições 70, 1988.
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre Literatura e História da Cultura. 5a ed. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1993.
CULLER, Jonathan. Teoria da Literatura: uma introdução. Trad. Sandra G. T. São Paulo: Beca, 1999.
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes.


Bibliografia Complementar
ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
BARTHES, Roland. O Prazer do Texto. Lisboa: Edições 70, 1978.

CHAUI, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: FPA, 2000.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
GURGEL, Nonato. “Walter Benjamin e um par de faróis” in Revista de Letras. Duque de Caxias: UNIGRANRIO, 2005.
LIMA, Luis Costa. Teoria da Literatura em suas fontes. v. 1. 2. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983.
SANTOS, L.A B., OLIVEIRA, S.P. de. Sujeito, tempo e espaço ficcionais: introdução à teoria da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
SILVA, Vitor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. São Paulo: Martins F., 1976.
SOUZA, Roberto Acízelo de. Teoria da Literatura. São Paulo: Ática, 1986.
TODOROV. A Literatura em Perigo. Trad. Caio Meira. Rio de Janeiro, 2009.
VILA MATAS, Enrique. “Intertextualidad y metaliteratura” (site do autor).
WELLEK, R. & WARREN, A. Teoria da Literatura. Lisboa: Nova América. 1962

Sobre Seminários

Para os seminários em grupo, serão sugeridos um roteiro metodológico, uma bibliografia com textos teóricos e textos de ficção dos seguintes autores: Machado de Assis, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Carlos Heitor Cony, Caio Fernando Abreu, Ana Cristina Cesar, Jorge Luís Borges, Julio Cortázar, César Aira, Albert Camus e Ítalo Calvino.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

PROLER – Casa da Leitura – BN


CURSO: Floração da prosa no Sertão

O curso empreende uma leitura da prosa moderna produzida no Brasil do século XX, e seus autores mais representativos: Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Clarice Lispector e Guimarães Rosa। Leitura dos procedimentos estéticos utilizados por esses autores modernos na construção dos seus textos. Diálogos entre Literatura e Teoria Literária nas figurações da identidade, nas relações entre espaço e corpo.
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Plano do Curso

27/07 – AULA 1 – O sertão é o mundo
- Roteiros bibliográficos, recortes teóricos, formas e procedimentos

03/08 – AULA 2 – Os Sertões (1902) de Euclides da Cunha
- A identidade cultural do Brasil
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10/08 – AULA 3 – Angústia (1936) de Graciliano Ramos
- A linguagem do corte ou a retórica do seco
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17/08 – AULA 4 – Grande Sertão: Veredas (1956) de Guimarães Rosa
- O romance de formação do Brasil
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24/08 – AULA 5 – A Hora da Estrela (1977) de Clarice Lispector
- O sertanejo é, antes de tudo, forte ou paciente?
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31/08 e 14/09 – AULAS 6 e 7
A voz e a Vez: compartilhando efeitos de sentido
- Participações especiais

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Letra urbana no calor da hora



“Amor que cruza a madrugada e no dia seguinte ajuda a tirar água do poço”. Nessa dedicatória cheia de afeto para a sua Valquiria, o autor Marcus Vinícius Faustini entrega o contexto cotidiano e amoroso no qual inscreve o seu Guia Afetivo da Periferia, lançado em 2009 pela coleção Tramas Urbanas da editora Aeroplano. Afetivo. O adjetivo “afetivo” anunciado no título salta da dedicatória para os roteiros do sumário, e perpassa depois o território da narrativa num “ritual de passagem para o amor”. Afetivo é também o que ecoa dos mapas e bússola da leitura.

Escrito por quem vinga no trânsito entre teatro, cinema e cultura, o livro de Marcus começa na verdade pelo corpo que serve de laboratório para a escrita. “A primeira verdade está na terra e no corpo”, diz Clarice em Perto do Coração Selvagem. No braço do autor uma tatuagem anuncia um “mar de possibilidades”. Seriam essas as várias possibilidades de leituras do Guia..., apontadas no belo Prefácio de Luís Eduardo Soares? Diz o primeiro parágrafo:

“Romance de formação; etnografia urbana; história social do subúrbio carioca; ...fragmentos de um discurso amoroso sobre o Rio de Janeiro...”. Guia... pode ser tudo isso. Tudo animado pelos ritmos e repetições de um “narrador-DJ” que é pura mixagem e espécie de intérprete das várias vozes que narram, guiam, transitam...

Crença nas Conversas

Marcus pertence a uma linhagem de autores andarilhos. Sujeitos que se deslocam incessantemente por trajetos urbanos carregando sacolas, memórias, latidos. Seus “personagens” transitam por entre livros de Dostoievski, frases de Proust, radiola de ficha, anúncios e quadrinhos. Assistem aos filmes do cemitério, do cinema, Corujão.

Nestas páginas, uma “geografia humana” habita becos e bairros produzindo gestos e imagens urgentes. Takes sem aura nem transcendência. Há nesses takes rastros ideológicos que sinalizam o quanto de crença existe nas práticas sociais e nas conversas entre os homens. Pegadas de um imaginário que se afirma como potência e espaço de sobrevivência: “O espaço sideral era a forma de afirmar a nossa imaginação”.

Guia... são letras ágeis em estado bruto. Narrativas escritas a partir de identidades provisórias e encantamentos infindos. Literatura selvagem no calor do corpo, no ritmo da hora. Texto que lembra, na sua eletricidade, a rapidez sinestésica da escrita marginal dos anos 70 e o seu legado romântico de passar para a página o que o corpo registra: “Fiz da minha tuberculose meu pacto com a literatura”.

Urbano, ligado no ritmo dos trens e das vans (“sempre acreditei nas conversar”), o “narrador-DJ” é também uma câmara. De olho nas paisagens do centro e da periferia, ele lê de dentro do ônibus o texto da cidade, seus travessões, suas lacunas. Ficcionaliza, no percurso da viagem diária, a força do belo e essa crença nas conversas. Possui, como bom flâneur andarilho, a percepção acesa e declara, no sentido mais Walter Benjamin do calor da hora, o seu amor pela cidade: “Sempre vivi para a rua e para as coisas que tinham nela”. É bom quando a escrita fala a voz do nosso tempo com linguagens do nosso tempo.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Canil que trago no peito

Texto publicado no blog de Ailton Medeiros em Maio de 2009


O poeta consagrado elogia minha rede. Sua vida e obra abrangem os mais variados gêneros. Ele saca a sarna da vida. Não é mais um sem cais nem canil. Encara a sombra de antigos espelhos que carrega nos ombros.

Erra uma vez e foi lindo. Mas não vai passar: já passou. Enquanto escuto o poeta, o cachorro ao lado aproxima-se. Encosta a cara em meus lábios. O que deseja esse bicho sugar da minha boca? Esse Cão não teme a mim. Lembro do cachorro que é um rio cujas águas amolecem ossos e pedras. Bebo o que me resta: essa tentativa de beijo animal. Seus cheiros, os conheço bem; seu rosnado, agasalha quando o contexto pede silêncio viril.

Para viver este ciclo canino, desenvolvo uma metodologia animal. Uso líquidos de uma mulher que me ama e faz do corpo obra de arte. Foi ela quem nomeou o canil que trago no peito. Antes dela, provei chás suicidas da moça que enxuga dorso de montanha.

Ouvi cão sem dono mais uma boca que rumina afetos caninos. Essa, curte Ribeira, Lapa, Beco do Rato, faunas noturnas. Nutre-se de Clarice Lispector e seus animais. Clarice é bicho corajoso. Confessa que certa vez apaixonou-se, de cara, por Dilermando – um cachorro com cara de brasileiro encontrado numa rua da Itália. Resultado: pagou (isso: pagou) e levou o cão para casa. Rolou a partir daí uma narrativa de cheiros, comidas, abanos, gestos obscenos e, claro, beijos disfarçados. As visitas – coitadas – ficavam passadas.

Segundo Clarice, cachorro cheira as coisas para compreendê-las. Diz ela que eles não raciocinam muito, mas são guiados pelo amor dos outros e deles mesmos.Clarice é a autora brasileira que mais entende de bichos. Em sua obra eles constituem uma simbologia do ser. Por isso ela saca no cão um bicho misterioso que quase pensa. Sem falar que ele sente tudo, menos a noção do futuro.

Na sua escrita, cachorro tem fome de gente. Tem desejo de (ser) homem. Aprendi com Clarice e TT que, às vezes, para abanar o humano é preciso contatar nos lábios o Cão que te deseja. Principalmente quando você e esse Cão usam o mesmo remédio, as mesmas formas.Tudo isso para responder as mesmas perguntas que os questionários da existência e do cotidiano repetem, sem dó, para quem optou por si, por ser só. Mesmo quando o humano rosna ou ri – lindo – por perto.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Do Título



Segunda versão do prefácio do livro Ceia das Cinzas, coletânea de poemas de Eli Celso, Iracema Macedo e André Vesne. Natal, Boágua, 1998.




da Ceia



Ceia das Cinzas. Comecei a participar desta ceia desde que ouvi pela primeira vez o seu nome. Teria tido essa audição em Teresópolis, na companhia do poeta Eli Celso? Pensei na viabilidade de lê-lo – o título Ceia das Cinzas – pela lente dos discursos míticos, das narrativas poéticas, das histórias das culturas, dos saberes.

Ceia das Cinzas insere-se na tradição literária do Ocidente. Os vocábulos desse título fazem parte do arquivo histórico e estético de signos, formas e linguagens construtoras da nossa historiografia poética. Lembra A Cinza das Horas, o primeiro livro de Manuel Bandeira, publicado em 1917. Ceia das Cinzas remete a um verso de Mallarmé: “o bosque tinge-se de ouro e cinza”. Remete também a versos de Ledo Ivo: “... a cinza sonha / ...ser o dia/ condensado nas pétalas”. Cinzas trazem de volta o fogo criador de Clarice Lispector, e a sua consciência fruitiva de que, ao escrever, o sujeito renasce delas – as cinzas.

Bandeira, Mallarmé, Ledo, Clarice. Autores que inscrevem textos e traços da tradição literária. Tradição devorada, ceada na contemporaneidade. O poeta contemporâneo sabe que, desde o Romantismo, o autor perdeu a aura / idéia de gênio herdada da tradição clássica. O poeta é testemunha de que as grandes narrativas fragmentaram-se. Ele sabe que os conceitos de verdade e realidade tornaram-se relativos (vide a virtualidade), passando a ser relidos a partir de uma estética formatada com base nas noções da simulação e do inacabado. Em sintonia com esse contexto de mutações, rupturas e cinzas, diz o poeta Manoel de Barros: “é dever dos poetas de hoje falar de tudo que sobrou das ruínas – e estar cego. Cego e torto e nutrido de cinzas”.

Este cinza nutre. Possui sabor. Saboreia-se neste livro uma memorial poética das cinzas que possui no mito da Fênix o seu “horizonte das ficções” ("Hierografia", Eli Celso). Parafraseando Bachelard (na natureza “tudo o que corre é criminoso”), poderíamos dizer que, na cultura contemporânea, tudo o que move é vital. Essa vitalidade pode ser aferida na capacidade de mutação e renascimento, lingüísticos e culturais, observada em diferentes idiomas e culturas. Pensemos, por exemplo, na Língua Latina – idioma hoje em cinzas – e o seu percurso estético e histórico da região do Lácio até os mares lusitanos...

Neste contexto mutante e cultural, a ceia é ação; a cinza, matéria. Lemos, assim, o poeta e a sua proposta mais radical: acionar o desejo gerador do texto, através dos verbos reler e rememorar – ações vitais para a re-construção da linguagem poética.


das Cinzas


Entre os Maias, a cinza tem função mágica, ligada à imaginação e ao eterno retorno. Misturar sementes de milho às cinzas, imunizando-as contra a putrefação, além de construir cruzes de cinzas para defender os seus milharais, são gestos daqueles povos latinos. Os colombianos são mais cênicos e inusitados: chamam chuvas espalhando cinzas do alto das montanhas. Bonito, esse gesto de chamar chuva.

Todos nós sabemos, a consciência humana da nossa condição-cinza é explicitada na Bíblia, em primeiro pessoa. No livro do Gênesis 18, 27 lemos: “Eu, poeira e cinza, atrevo-me a falar do meu Senhor.” Cônscia dessa condição, a poeta Iracema Macedo estetiza a mulher que, entornada ao barro, vibra no verso que indaga: “Que queres na tua janela de vidro/ com o teu corpo de cinzas?” (“Canção de amor para uma moça judia”). È imperativo lembrar que, na tradição judaico-cristã, a cinza é utilizada em certos ritos, sendo a ressurreição simbolizada pela cor cinza.

Eterna vizinha da brasa que é mãe e filha do fogo, cinza surge na ceia das cores como gris (cinzenta), sendo composta, em partes iguais, das cores branco e preto. Se o branco e o preto são, respectivamente, presença e negação de todas as cores, o cinza pode ser vista como uma cor una. Como visibilidade que unifica. Cinza lido como diálogo óptico que se dá no envolvimento das duas cores.

A universalidade das cores que compõem o cinza diz de um ser metaforizado pela própria cinza diária que o seu corpo tece. Essa metaforização pode ser aferida nas “labaredas/ queimando céus de um insuspeito azul”, que aquecem o poema “O mergulhador que deixou seus pulmões na superfície”, de André Vesne. O espaço no qual atua esse corpo é composto de cores variadas. Isso é visível no poema de Eli Celso, onde as cores que compõem o cinza matizam “Uma estrada de coisas mortas” na qual o outro convida, atalha e o estranhamento produz: “Ela me convidou a um pequeno apocalipse/ e atalhou caminho por mundos estranhíssimos”.


Essa universalidade das cores diz também de um tempo no qual os homens cantam “o sol desta manhã tão cinza”, e mulheres ardem dizendo assim: “a brasa que nos resume é muito mais ligeira” (“A casa”, Iracema Macedo). De ouvido atento a essas vozes, o que dizer de uma tela imaginária na qual as brasas estão acesas, brasas avermelhadas por entre mares de cinzas? Qual o nome desse olhar que lê e imagina brasa? Como chamar este olhar que a essa tela lê e discerne por entre o pó as brasas de la pasion?


do fogo poético


Ceia das Cinzas nos remete a Fênix, o ser mítico de dupla fábula: pássaro que arde em fogo próprio e ente que renasce das próprias cinzas. Simbologia do tempo circular e do eterno retorno (Borges e Nietzsche). Pássaro eterno como o fogo. Fogo poético roubado por Prometeu: “Eu libertei os homens da obsessão da morte... eu lhes presenteei o fogo... dele, eles aprenderão artes sem numero” (Ésquilo, Prometeu).

E o que faz o homem com o fogo que rouba dos deuses? Conscientes de sua condição de simulacro (Deleuze) perante a imagem divina, os poetas sabem que não salvam. Mas esses poetas nos convidam a cear. Há vários sabores nesta ceia. Ceia das cinzas de crianças devoradas pela mitologia potiguar adubam “A lenda da viúva Machado”, poema de Iracema Macedo. Nesta mesma ceia, uma poética memorialística inscreve-se no poema “O globo líquido”, de Eli Celso, cujas ruínas abissais de “babilônicas e babéis” anunciam que “a memória se arranja/ em alvéolos de barro”; enquanto os fragmentos das Lições de Trevas centelham, demonstrando que a palavra “se presta a vários encantamentos” (“Os jogos amorosos”, André Vesne).

Os poetas e leitores participantes desta ceia celebram sons e saboreiam novos sentidos, como em “Chove sobre a cidade”, de André Vesne. Junto com o poeta e professor Eli Celso, os participantes da ceia devoram ícones (“Angústia de Frida Khalo” e “O clitóris da história”), e flagram o verbo no seu passeio pelo imaginário (“Ancestral”, Iracema Macedo). Os 3 poetas convidam o leitor a degustar a linguagem do fogo. Linguagem do fogo eterno da poesia. Convidam o leitor a, como eles, também queimar neste fogo poético. Convidam para re-ler o idioma do pó e traduzir a sintaxe das cinzas, inscrevendo – na pele e na página – a perene memória da língua.

No cardápio destes poetas, destacam-se os textos cujo teor poético vem nos nutrindo desde as publicações de duas coletâneas: Vale Feliz (1991) e Gravuras (1995). Prometeus ladrões do fogo poético da tradição, a trindade (Eli, Iracema e André) arde, abrasa, cinza. Provemos deste fogo – da língua, da arte, da paixão – senhores leitores: nas próximas páginas é posta a ceia.

sábado, 6 de março de 2010

E o romance do final do século XX?



Uma versão deste texto foi publicada em O Jornal de Hoje, Natal-RN, 19 /10/ 1999



Aconteceu na sala de aula. Aconteceu mais de uma vez. Em meio a uma aula do Curso de Doutorado em Ciência da Literatura, na UFRJ, o professor encara a turma e indaga: quem se destaca na prosa brasileira da década de sessenta para cá?

Uma certa insatisfação compõe o silêncio que se instala na sala. Há risos incômodos e palavras silenciadas de alguns de nós; principalmente por parte daqueles que escrevemos dissertação de mestrado sobre autores brasileiros, como Lígia Fagundes Telles ou Ana Cristina Cesar, por exemplo.

As garotas que tiveram as tragédias de Nelson Rodrigues e os diários de Lúcio Cardoso como objetos de estudo, abrem um sorriso de uma orelha a outra. Por questão contextual e mesmo de consenso, os seus objetos de estudo estão a salvo da indagação. Quem, durante o Curso de Mestrado, aventurou-se além das letras nacionais e viajou pela Grécia de Kavafis ou pela Argélia de Camus, parece sentir-se menos responsável pela resposta à pergunta do professor.

Alunos bem intencionados sugerem Rubem Fonseca e Hilda Hilst como autores representativos da prosa brasileira na década de sessenta. De pronto o professor pronuncia-se: nenhum deles. Sinto vontade de perguntar: nenhum dos textos desses dois autores embarcariam na sua arca no dia do dilúvio? Uma pesquisadora de literatura contemporânea “arrisca” o nome da escritora Patrícia Melo. Discípula de Rubem Fonseca, a autora de O Matador (1995) é um dos nomes cultuados pela vertente pós-moderna da academia. Mas o professor desconhece a escrita da moça que também escreve roteiros cinematográficos. O seu desconhecimento ganha adesão de um outro aluno, cujo argumento possibilita ao mestre elaborar o seguinte raciocínio: “... não me interesso por entender o imaginário dos delegados de polícia”.

A questão do critério de valor é realmente ambígua, aberta. Uma questão que gera querelas infindas. Produz violência. Isso é visível na fala de uma outra professora do referido curso da UFRJ. Na sua arca não viajaria o romancista João Gilberto Noll e os seus 7 livros – escritos de 1980 até hoje – devidamente traduzidos para o inglês. Motivo? “Noll é um autor menor” – diz a referida pesquisadora. Esse tipo de assertiva tem geralmente os autores clássicos e canônicos como parâmetro; possui na Poética de Aristóteles, escrita na Antiguidade clássica, a sua fundamentação em torno da problemática das formas e dos gêneros. Trata-se, portanto, de um ajuizamento que tem como leme uma arte normativa – forma desvinculada das poéticas modernas centradas muito mais nas noções de deslocamento e mutação.

O aluno que agora escreve sente-se provocado pela indagação do professor e tenta inscrever as suas senhas. Cito Raduan Nassar (Lavoura Arcaica e Um copo de cólera) e Paulo Leminski (Catatau, Agora é que são elas e Metaformose). Apenas a primeira senha é aceita. Apesar disso, o professor deixa claro que gostava muito do poeta de Curitiba. Gostava do Leminski como pessoa. Mas aqui no jornal onde escrevo, assim como na sala de aula, o que conta é o autor e a sua obra. Conta principalmente a dificuldade de criação na prosa brasileira, após as produções monumentais e de ruptura de Guimarães Rosa e Clarice Lispector.

Benjamin: voz quase ficcional

Essa dificuldade criativa perpassa o atual debate crítico e acadêmico. Não é por acaso que o crítico Davi Arrigucci Jr, professor da USP, lançou em 1999 o seguinte desafio através do Jornal do Brasil: “Qualquer escritor que se pretenda como tal, deve pensar nisso: como dar forma a essa coisa viva que é a substância histórica?” Noutras palavras: “a literatura brasileira está a espera de um escritor que dê conta dessa coisa viva que é a substância histórica”, ratifica o referido jornal elucidando a fala de Arrigucci.

Em sua entrevista, o autor de Humildade, Paixão e Morte: a poesia de Manuel Bandeira, diz do ensaio como obra de arte e o compara a outros gêneros. Diz ele: “vejo o ensaio como obra de arte não diferente dos demais gêneros como o romance e o poema”. Ao referir-se ao ensaio dessa forma, Arrigucci revela a sua visão moderna de crítico e ensaísta. Ele lê na ruptura de gêneros miríades de formas de re-ler e construir o texto. Essa releitura sugere a possibilidade de registrar, na escrita ensaística, uma percepção do sensível buscando traduzir uma tonalidade que brota da faculdade da imaginação.

Ao expor essa leitura do gênero ensaístico, o autor refere-se a uma tradição de escrita que possui em Montaigne a sua gênese, e na qual se insere autores representativos como, dentre outros, Barthes e Benjamin... Autores de cujas páginas são audíveis ecos de um certo tom romanesco। Barthes utiliza o seu ensaio para, dentre outros objetivos, “psicanalizar” o imaginário do discurso, os mitos modernos e as formas da escrita. Na construção do seu texto, ele dialoga com os materiais do desejo, vinculando-se principalmente ao tempo presente. O autor anota o presente. Prepara o texto do tempo presente. Em alguns dos seus livros, é audível o tom romanesco de Barthes. Por isso que a sua escrita aciona no leitor os ritmos do seu tempo, e às vezes lemos o seu ensaio como se fora um romance. Segundo o autor de A preparação do romance, esta forma literária consiste numa ”prática para lutar contra a secura do coração”. Essa “luta” é notória principalmente nos últimos textos do autor.

Já a prosa ensaística de Benjamin é repleta de palavras e ecos da tradição, do passado. Essas palavras e ecos são lidos no tempo presente sem susto nem censura. O escritor é atento aos fatos do seu tempo. Ao penetrar no coração das obras, das coisas e das mercadorias, o autor de Rua de Mão Única escreve uma história repleta de elementos românticos, na qual aquela “substância histórica” de que fala Arrigucci está presente. Sua narrativa histórica é repleta de “pequenas catástrofes” e de “avisos de incêndios” causados pos elementos políticos, culturais, teológicos. Por pura sintonia estética, o escritor João Gilberto Noll aparece nesta mesma edição do JB de 1999, respondendo a pergunta “O que eles estão lendo.” O autor gaúcho diz estar lendo “muito Walter Benjamin”.

Confirmando a assertiva de Arrigucci ao comparar o ensaio ao romance, Noll diz que Benjamin “substitui um certo tipo de romance que anda meio escasso”. Além de atestar essa substituição textual, Noll ressalta no autor das Passagens uma voz “quase” “ficcional”. Exímia leitura, essa que consegue ouvir um certo tom romanesco que emana da letra benjaminiana, em meio a tanta letra sem eco, sem trabalho com a linguagem. Em seu último romance, A céu aberto (1996), o autor elabora narradores múltiplos, cuja tonalidade anuncia deslocamentos constantes, e nos ajuda a ler e construir o imaginário do nosso tempo. No desejo de inscrever as identidades mutantes e contraditórias desses narradores, Noll os situa num “campo de batalha” onde são confrontadas as questões estéticas e culturais componentes das identidades contemporâneas.


Tradutores de formas e subjetividades contemporâneas


Além de Noll e dos demais autores acima mencionados, escritores como Rubens Figueiredo, Bernardo Carvalho, Milton Hautoum e Silviano Santiago, dentre outros, continuam produzindo prosa. Poucos deles possuem o aval do público, da academia ou da mídia. Mas é muito importante o registro das marcas culturais e históricas dessa produção. Quem sabe, no futuro, alguns deles sejam tradutores das formas literárias utilizadas para pensar as questões estéticas e culturais do final do século XX. Quem sabe as suas práticas textuais possam traduzir as subjetividades individuais e coletivas inscritas no cotidiano – nas aulas, na crítica, na academia – deste milênio que se anuncia.

Afinal, Kafka não se tornou canônico logo que os seus primeiros escritos foram publicados. Sousândrade esperou mais de um século para ser lido. E Guimarães Rosa, vejam só, não foi de início muito bem recepcionado pelo celebrado autor de Vidas Secas. Ou seja: demorou muito para que fosse possível “uma rosa de Guimarães/ nos ramos de Graciliano.” (Paulo Leminski).

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Alguns inícios são assim

Antes de iniciar este livro, imaginei
construí-lo pela divisão do trabalho.
Algum tempo hesitei se devia abrir
estas memórias pelo princípio.
Esta história começa numa noite
de março tão escura...

O céu tão azul lá fora,
e aquele mal-estar aqui dentro.
Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto;
Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai...
O mal foi ter eu medido o meu
avanço sobre o cabresto.

João está na minha frente. Pálido.
Pergunta se não quero fazer
café. Nonada. Tiros que o senhor
ouviu ergo sum, aliás, Ego
sum Renatus Cartesius,

cá perdido.
Verdes mares bravios de minha
terra natal. Trilha sonora
ao fundo:a entrada do sertão.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Letras da memória lusa



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Texto escrito com base na arguição da dissertação de mestrado "Fazes-me falta, de Inês Pedrosa: uma alegoria contemporânea da saudade”, de Ângela Rodrigues, defendida na UFMG, em 2007, sob orientação da Professora Dra. Constancia Duarte.


Perda e Morte como personagens


Com trânsito intenso pela literatura e pelo jornalismo, a escritora portuguesa Inês Pedrosa produz uma escrita bastante sintonizada com o contexto e os procedimentos estéticos contemporâneos. Prova dessa sintonia está no romance Fazes-me falta (2002). Nele a autora aciona, sem hierarquias, um permanente intertexto entre o cânone literário (Tolstoi, Proust, Virgilio Ferreira...) e os produtos midiáticos (Woody Allen, Stones, Chico Buarque...).

A produção bibliográfica da autora lusa ostenta o seu trânsito por várias formas estéticas: a crônica, a entrevista, o conto, o romance e até uma fotobiografia de José Cardoso Pires. A crônica, por exemplo, é lida pela autora como um “exercício de intervenção social, como forma de poder cívico”. Segundo ela, “dentro de todo cronista há um optimista furioso – a própria zanga serve de testemunha a esse contrato de encantamento com o mundo” (p. 35).

Assinalo o trânsito por essa diversidade de formas e esse olhar consciente de Inês, a fim de contrapor essa visibilidade contemporânea à visão dessas mesmas formas, tendo como parâmetro o olhar de uma autora moderna como, por exemplo, Clarice Lispector. Ao contrário de Inês, Clarice transforma em drama a produção da sua escrita que descobre o mundo (referência à escrita da “ponta dos dedos” nas crônicas de A Descoberta do Mundo). Mas, há entre Clarice e a protagonista de Fazes-me falta mais sintonia do que supõe nossa infinita fome de vida. Em sua última entrevista, a autora que elegeu a morte como personagem predileto do seu último livro – A Hora da Estrela - diz para o repórter da TV: “Agora eu morri. Vamos ver se eu renasço. Por enquanto eu estou morta. Estou falando do meu túmulo”

Do "túmulo" fala uma das vozes do romance. Em seu texto, Ângela cita uma entrevista de Inês na qual a autora ressalta a perda e a morte como “personagens” a partir dos quais a escritura do seu romance é produzida. Ouçamos o dueto de Ângela e Inês: “Fazes-me falta (2002), segundo a escritora, foi escrito a partir da experiência da perda: escrevi-o ao som da música dos meus mortos, ensaiando uma aproximação mais radical à ciência da poesia, a poesia da política e a dança da filosofia.”

Ratificando essa noção de ruptura de gêneros, a relação com a poesia é sugerida, no romance, através de um certo tom roseano que, de quando em vez, é audível na escrita de Inês. Isso pode ser aferido na seleção do recorte vocabular e na invenção de palavras que revitalizam e entusiasmam o idioma, como “noante” (cf. p. 44: “Entrevistada...”). Essa relação tonal com o texto roseano é também sugerida no apreço pelo pormenor, pelas coisas miúdas: “Lixar o tempo é questão de acerto nos pormenores” – “o meu olhar sem órbitas move-se por ampliações máximas de pormenores mínimos” (p. 16).

É importante ressaltar que os dois primeiros capítulos do romance são abertos com poemas de Pedro Tamen e Luis Filipe Castro Mendes. Isso assinala a relação que se tece, no romance, entre o rigor da construção poética e a escritura desta narrativa (lembrar que Inês organizou uma antologia de poemas portugueses tendo o amor como tema – “como se faz que perdure?”; e Angela conclui a sua dissertação lendo no amor sua “inclinação” “atemporal, transcendendo as diferenças que não encontram respostas e geram buscas constantes”).

No texto de Ângela, a noção de rigor está presente principalmente na Parte I – “Inês Pedrosa e a Literatura Portuguesa Contemporânea”. Aqui são delimitadas as quatro fases do romance português, tendo por base a leitura feita por Miguel Real. Inês Pedrosa é inserida na Geração de 90 que se caracteriza, dentre outros, pela valorização das instituições e do mercado, e ganha filiação na corrente do Realismo Urbano Total.

É a partir do final do século XX que Portugal começa a repensar o seu projeto identitário. Justamente por isso, eu implico um pouco com essa noção de totalidade (própria das grandes narrativas da modernidade) sugerida por Miguel Real. Num tempo no qual a noção de fragmentação predomina nos espaços das artes e culturas, principalmente na prosa romanesca, como esta própria dissertação e o seu objeto de estudo propõem, a cognominação de Realismo Urbano Total não me parece em sintonia com o recorte vocabular da crítica contemporânea.



Memória e Linguagem



Desde Homero, o culto à memória é uma forma de acesso direto ao conhecimento, à noção da verdade. Seguindo essa trilha memorialística da busca da verdade, Ângela constrói de forma criativa as suas “figurações da memória”. Na parte III, intitulada “O Percurso da Memória”, a autora demonstra uma voz própria ao afirmar:

“Assim sendo, a narrativa de Fazes-me falta, como um jogo de espelhos, através de sua inversão, reporta-se ao sentido encontrado nos textos construídos pela memória de cada narrador, refletindo em suas diferenças e oposições espaciais a imagem de um relacionamento que se erigiu pela falta e que a morte “descobre” para depois redimensionar”

Duas vozes perpassam a narrativa dialógica de Inês. A voz feminina inicia e propõe os roteiros temáticos à voz masculina, mais velha. Em sintonia com os procedimentos estéticos sugeridos por Fazes-me falta, Ângela trabalha com as questões do tempo, da memória e da saudade. Seu texto possibilita um diálogo entre a narrativa individual e a memória coletiva da história portuguesa. Este é um dos melhores roteiros da sua pesquisa, quando a autora ensaia acerca de como as figurações do real se condensam na memória para depois se transformar em texto escrito.

Relevante seria, caso haja uma extensão desta pesquisa, que esse diálogo entre as figurações do real, do tempo e da memória levasse em conta a dimensão do imaginário luso. Seria da maior importância uma espécie de leitura do “inconsciente cultural” (Eduardo Lourenço) dos portugueses, do seu passado artístico. A produção de uma leitura atentando para as idades do ouro das letras portuguesas, seus mitos e os pressupostos ideológicos que as patrocinaram, ajudaria a entender algumas das imagens e dos sons que são produzidos no imaginário bélico deste início de milênio onde a morte encena um dos principais personagens (Pensar nas imagens e nos sons que formatam o discurso narrativo de Inês e sua geração).

Ou seja: já que Inês é situada dentro do panorama da historiografia literária portuguesa, seria importante reler o imaginário (seus vocábulos, mitos, signos mais recorrentes) que ela herda dessa historiografia literária e da qual se apropria para a construção do seu texto, assim como faz grande parte dos escritores da chamada pós-modernidade. (cf. A Nau de Ícaro, onde Eduardo Lourenço lê a saudade como “melancolia solar”).

A leitura dessa dissertação sugere como a narrativa da morte, num contraponto com a narração da vida, estetiza a possibilidade de tudo verbalizar. Há nos discursos dos dois narradores uma transformação tonal durante a narrativa. Os tons são múltiplos e oscilam do áspero ao religioso. Oscilam também do tom afetivo ao automatismo herdado dos hábitos patrocinados pelos universos da política e da mídia (pensar na crítica ao automatismo gerado pelos sistemas sociais, e como a linguagem, os discursos dos personagens sinalizam suas mutações existenciais e suas opções políticas: “A política decompôs-te o tom de voz...”).

Algumas falas dos narradores de Fazes-me Falta anunciam essas relações entre identidade e linguagem, como atestam as seguintes vozes:

- “A tua voz mudou, a tua alegria arrefeceu...” (p. 80)

- “A tua voz descentrou-se... A voz comercial com que defendias agora as Grandes Causas do Universo era-me insuportável...” ( p. 75)

- “...deitastes sempre muito tarde, por causa do travo das palavras cansadas...” p. 111:

No universo da estética e principalmente das letras, a sonoridade dos vocábulos e a leitura do significante denotam um valor de expressividade. Na teoria de Bakhtin, por exemplo, a pessoa que fala no romance é identificada principalmente pela imagem de sua linguagem. Em Borges, o caráter não é mediado apenas pelos atos do sujeito, mas pode ser expresso pelo acento fônico, pelo tom da palavra, a entonação próprios do falante... Em torno dessas questões linguísticas, é importante lembrar as lições de Jakobson e o valor expressivo dos fonemas, as funções da linguagem; as aulas de Barthes e o significante como categoria suntuosa relacionada ao prazer do texto.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Segunda Carta do Fim










Praia de Pitangui, Outubro de 1995

My dear

Aqui de dentro desta noite, sem imagens nem barulhos, concluo as tarefas domésticas. Continuo exímio na postura da mesa na hora da novela. Não perco hábitos e roteiros do seu tempo: a mesa farta de nordestino, palito após as refeições, Tambora por perto. Depois, começa a parte das leituras, escritas, livros na estante.

Uma batalha atroz me espera logo ali pós-garras gastronômicas que hoje receitam sangue na farofa. Espada com cebola e céu azul no jantar. Ás vezes, o rango é servido na cama, acredita? Agora, Bem, é tudo ou nada: um rio deságua no primeiro mês do ano ou ao norte dos dias que não são para principiantes. Aridez sem qualquer noção de acolhimento. Minto: acolhimento sempre adiado. Aquela imagem das duas luas gêmeas em carne-nuvem agita a minha aparente calmaria pós-sessão de análise. Acolhem. Elas põem umidade na tela do meu pc só de pensar. Tento disfarçar.

Penso sempre naquela foto do espelho que você postou. O espelho me arma. Arma para luta. Fez-se verbo. Com outros, aciono minha porção Ramos, digo, Graciliano, e esbanjo contenção viril. Falo pouco. Aprendi lendo Camus e o mito de Sísifo, suas pedras em silêncio. Reconheço que quando era contigo, era outra a parada. Mas eu sinto alguma mudança e, quem sabe, amenizo no plano onírico.

Retirada a mesa, piso no real onde você já não reina com um vigor que me enche de alegria e admiração os olhos. Reouvi, nesta reta final, as gravações do anel que ganhei de ti. Está escrito com a tua letra: “No próximo café te passo a cópia”. Promessas... Jamais passou. Como negou o sorriso, cortou o tesão, vai o início: “Quando com minhas mãos de labareda...” Lembrei o rinoceronte. Dele continuo curtindo a pele espessa, pregueada, o focinho. Largo e arredondado – a forma em estado de movência – prefiro o hipopótamo na voz de uma amiga que canta à capela. Ela serve uma dobradinha que só vendo nas escolhas o tempero.

Como Ramos e Clarice, reconheço que você sempre soube o que fazer com temperos e animais. Nisso está a sua maestria. Por isso essa força sua (pronome e verbo, please). Mesa farta que nunca seca: a questão da consciência social, a temática da memória, a escrita do exílio ou as leituras do desejo e do poder. Lembro que na seqüência tomava uma dose para perder o medo de perder o foco. Perdeu? Perdeu porra nenhuma!

Enquanto punha a mesa, concluía as tarefas domésticas, fiquei excitado lembrando daquele “poder de rasgo”. Aqui de dentro deste abismo, encaro frango na sopa de legumes. Lavo a louça. Enxugo. Passo que é uma beleza. Confesso que as leituras do César Aira e teu post de ontem detonaram a gripe. Mas a tua ausência, creia, já não faz a noite me acertar.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

O sussurro dos fatos








O Estranho é o quinto livro de ficção da escritora carioca Carmem Moreno. A epígrafe de Clarice Lispector que abre o volume sugere a filiação da contista a uma linhagem literária que possui na autora de A Legião Estrangeira e em textos como Estranhos Estrangeiros, de Caio Fernando Abreu, dentre outros, seus precursores. A leitura dos oito contos (três deles premiados) confirma essa sugestão filial.

Carmem cria inusitados finais para estranhos personagens. Eles transitam principalmente por hospitais (“Depois da Queda”), abrigos psiquiátricos (“O Reencontro”) e sessões de análise (“O Corno”). Nesses cenários, um narrador contata o reino mineral (“O que eu chamava de carne e osso virou carne, osso e ferro.”), e subverte mitos como a queda e a espera. Este último mito, romanticamente lido como feminino, é relido por um homem que procura nos cenários provisórios e soturnos que o circundam, o melhor ângulo de digerir a paisagem; mesmo que seja esta paisagem o submundo hospitalar. “Depois da queda” é um texto pedagógico: leciona a regar, em meio ao cotidiano áspero e automatizado, pequenas promessas. Promessas que viram rezas que viram metas que viram sílabas que viram textos como “Dora”.

“Dora” é um conto detentor de dois prêmios. Nele, a miudeza das sílabas no papel picado anuncia, na sua fragmentação amassada, com quantos paus se faz uma relação afetiva cotidiana. A estratégia da carta, a cortante presença da ausência e a seqüência de mulheres que engendram o texto – Rose, Dora, Júlia, Cândida.... – estruturam, nas cinco cenas da narrativa, um pequeno tratado sobre a traição. Possuída por um dos mais moventes pecados capitais – a raiva – e com um olhar habituado a batizar entranhas, a narradora freqüenta mini temporadas infernais numa travessia que vai da claridade ao breu. São falas miúdas. Frases que fariam arrepiar os filhos de René Descartes, para quem corpo e alma são lidos como coisas distintas. Diz a narrativa: “...uma lembrança congela meu estômago” ou “Não penso, não intuo. Sou bruta.”. Essa sintaxe seca e cortante dá o tom; embora eu sinta, neste conto onde a raiva é o principal combustível, saudades de uma escrita ainda mais alegórica e antropofágica, como no Pau... e nos biscoitos bruscos de Oswald de Andrade ou nas luvas de Ana C em seu belíssimo A teus pés.

Em “O Reencontro” Julia inscreve a dança da loucura. Pela ótica do afeto e da amizade, ela narra como Mira vai perdendo o riso e o ritmo diários, restando precária a própria respiração (aliás, o ar, seus fluxos, seus ritmos – ou sua falta – é um dos “elementos-personagens” marcantes em O estranho). Essa narrativa denota a opressão lingüística que jaz latente nas relações, sejam elas entre irmãos, amigos ou amantes. Relações regidas por uma lógica silenciosa, geralmente afetiva e perversa, que engendra e ornamenta uma linguagem na qual a sedução e seus desvios anunciam o que de fascista e autoritário compõe o discurso patrocinador de quedas.

Um dos mais belos finais do livro encontra-se em “O Estranho”. Neste texto, João é um motorista em quem a vida passou a perna. Isso se dá numa velocidade na qual a crueldade faz dançar os que tentam abreviar os roteiros cotidianos que a vida propõe, traça. A autora demonstra mestria ao virilizar as vozes de um dos personagens desse conto e da narrativa seguinte: “A Dor”. Aos trinta e oito anos um homem petrifica-se. Desejante de um “grande fato”, ele tem pressa. Seus ritmos não escondem a sombra que habita sua face. O discurso de morte, desculpas, perdão e dor ganha musicalidade na medida em que sua confissão fere a mulher, despertando-lhe um intenso prazer.

São assim os personagens de Carmem Moreno: seres movidos pelo desejo de captar o instante, acionar a senha que o devir anuncia।De ouvido atento ao sussurro que clariceanamente emana dos fatos; de olho no futuro armado logo ali, ao redor (“O espelho da outra”). Embora, como nos contos de Caio, trata-se às vezes de uma narrativa do olhar invisível: um olho que vê, mas nem sempre se deixa ver.

sábado, 10 de outubro de 2009

Possuído pelo vocábulo



João Gilberto Noll é um autor contemporâneo cuja visibilidade engendra uma narrativa calcada, dentre outros, nas noções de velocidade e corte herdadas da modernidade. Nesta obra construída a partir de recursos literários e cinematográficos, os ritmos velozes, os discursos imagéticos, as identidades mutantes e as linguagens fragmentadas geram uma proliferação de signos e re-leituras, onde nenhuma percepção aurática, heróica ou politicamente correta engendra a produção do sentido. Romances como Bandoleiros (1985), A céu aberto (1996) e Lorde (2004), por exemplo, atestam a recorrência a esses procedimentos estéticos e culturais.

Em sintonia com tais procedimentos narrativos, Noll lançou, em 2003, dois volumes díspares e ao mesmo tempo complementares de sua bibliografia (15 títulos) sedimentada nas formas literárias do conto e do romance. Os dois livros são Mínimos, múltiplos, Comuns (“Instantes ficcionais”, Ed. Francis) e Berkeley em Bellagio (romance, Ed. Objetiva). Embora considere as tramas dos idiomas e dos corpos, de Berkeley em Bellagio, temas acerca dos quais vale a pena refletir e escrever, esta leitura elege os contos do alentado volume de Mínimos, múltiplos, Comuns como objeto de reflexão.
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Micro-narrativas com vigor poético
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Mínimos, múltiplos, Comuns é uma cosmogonia construída com a sintaxe curta e a rapidez deste milênio. Uma cosmogonia contemporânea. Escritas para o jornal Folha de São Paulo, estas micro-narrativas apresentam altíssima taxa de literariedade e vigor poético. Segundo o autor, estes textos “pressupõem uma cronologia da criação”, a partir da criação de cinco grandes “conjuntos”: Gênese, Os Elementos, As Criaturas, O Mundo e O Retorno. Esses “conjuntos” se desdobram em signos que se multiplicam em outros signos, tecendo uma sintaxe sinestésica onde quem lambe olores pode engolir um rio que ri, e uma outra linguagem brota desautomatizando os discursos cotidianos. Nesses “conjuntos” o mundo passa a existir e a locomover-se via linguagem.

A cosmogonia de Noll encerra uma narrativa hipotética da criação de um universo que, embora seja às vezes trágico ou melancólico, surpreende pelas possibilidades sugeridas pelo espanto, o humor e o caos de onde a linguagem nasce. O mergulho neste caos tem a ver com o desejo do outro, o leitor. Esse desejo anuncia-se no elegante projeto gráfico do volume de 478 páginas, passa pela beleza poética dos títulos, pelo diálogo com as imagens e tons das cores e culmina no rigor da forma e da construção textual.

O livro possui o desvio, a deriva de uma lógica labiríntica. Suas páginas engendram algumas sombras, dão pistas de alguns punhais. A forma de leitura é também labiríntica. Por isso é possível que o leitor volte ao índice, re-confira títulos e sub-títulos e, de quando em vez, pare para re-iniciar a releitura do mesmo texto num ritmo que traduz o espanto produtor dessa viagem onde alegria, espanto e desejo são combustíveis perenes. Nestes roteiros de letras, é imperativo atentar para os efeitos gerados pela pontuação, e para a polissemia de signos urbanos e naturais que engendra essas micro-narrativas.

Nesta cosmogonia, a geometria dos corpos urra um discurso atemporal. Um narrador urbano, por exemplo, atravessa o tempo e encontra uma romântica taverna de outro século; um outro olhar - que narra de modo atemporal - apronta um gesto romântico em pleno metrô moderno, metropolitano. Seres e cenários cotidianos anunciam o desejo gerador de um grande sertão urbano que se perfaz em texto, asfalto, indagações.

Bêbados de palavras, esses narradores ruminam desejos, enseadas, velórios. Um caseiro aterra a identidade da patroa. Recorrentes porteiros cotidianos convivem com mitos clássicos que nem Narciso, espelhado aqui na superfície de uma portaria por onde transitam os que aprenderam a “respirar na contravida”. Outro narrador acende o paladar fantasiando a filha de frutas. Um outro é o mais entusiasta dos plantéis; e tem aquele de olhar saturado que não suporta a ausência de um certo rigor cartesiano: “O que te assustava era o meu entusiasmo intransitivo atropelando qualquer ponderação”, diz ele.
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Ouvidos treinados em diferentes timbres
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“Línguas” é um texto que remete a um dos núcleos temáticos recorrentes nos dois volumes publicados, em 2003, por Noll. Tanto em Mínimos, múltiplos, Comuns como em Berkeley em Bellagio proliferam temas concernentes à leitura, à fala, à língua e à sílaba; questões voltadas para o nascimento da palavra, sua foz, a produção do discurso. A escritura dessas questões possibilita um denso exercício metalingüístico, como sugere a seguinte fala: “Que eram tantas as palavras, de tão diferentes fontes e sabores, que concentravam em si tamanha quantidade de matizes e sentidos...”. Esse vigor diferencial e saboroso pode ser aferido e ratificado na potência dos títulos, na seleção dos vocábulos, no recorte imagético, no zelo pelo idioma, seus tons.

Essa tonalidade é audível, por exemplo, na indagação do que acontece quando Eros freqüenta o espelho de Narciso. É também audível no nascimento do verbo, no discurso dos seios que contabilizam os prazos da sexualidade gerando outras formas de vida, e na metonímia de um desejo que, tecido nas malhas da solidão, abastece a portaria, o prédio, a rua, a cidade e o céu final da tarde. Essa tonalidade ajuda a deslocar a tensão e a aspereza produzidas pela falta de ritmo cotidiana, e deixa o leitor atento à co-existência dos tempos, à recepção dos ventos e aos reflexos dos autos, suas lâminas.

Nestes “Instantes ficcionais” cintilam pequenas epifanias caio-clariceanas. Como Clarice Lispector, o autor parece atentar, na maioria das vezes, mais para o sussurro discursivo dos fatos do que para os próprios fatos; e os signos desses fatos tanto podem remeter a um touro, um cheio de memória antiga ou a uma borboleta que teima em sair do ouvido de quem narra. Aliás, seus narradores possuem ouvidos bem treinados. Treinados nos timbres das águas, nos ritmos sanguíneos e cortantes do trem do metrô; ouvidos e olhos treinados na colheita do riso tradutor de uma alegria branca de broto.

A narrativa de Noll sugere, principalmente no conjunto “Os Elementos”, uma porção poética que remete às noções de ruptura de gêneros e formas patrocinadas pela modernidade, e que possui no prosa de Guimarães Rosa um dos seus marcos. Embora não produza os exercícios de linguagens empreendidos pelo autor mineiro, o trabalho com a sintaxe e o recorte vocabular de Mínimos, múltiplos, Comuns possibilita a audição de ecos da linguagem de personagens roseanos em textos como, por exemplo, “Caroço do ermo”, “Natureza”, “Leve seio”, dentre outros.
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Assim como João Guimarães Rosa, João Gilberto Noll é, neste livro, um autor possuído pelo vocábulo. Ser possuído pelo vocábulo, num tempo dominado pelo signo imagético e suas conexões de superfícies e repetição, potencializa o texto. Além disso, qualifica o leitor “para o convívio sensato das formas” (“Gigante”), e o convoca para uma aventura que não acaba nunca: a leitura da sua infinda dimensão humana e diferencial em meio a tantas máquinas e sistemas que se repetem.

sábado, 1 de agosto de 2009

A Letra Segundo C.L.



















Ressonâncias da Literatura Romanesca no livro A Mulher que Matou os Peixes



Texto apresentado no 5 Encontro de Literatura Infantil e Juvenil, Rio de Janeiro, UFRJ, 2008, e publicado no cd 5 Encontro de Literatura Infantil e Juvenil, 2008. v.1.


Eu gosto tanto de crianças,
eu gostaria tanto de publicar um filho chamado João
!

(Clarice Lispector, Um Sopro de Vida, 1978)


Escrita do perdão e do desejo

Este estudo tem como objetivo acionar uma leitura do texto A Mulher que Matou os Peixes, de Clarice Lispector, publicado em 1968, com capa e ilustrações de Carlos Scliar. Essa leitura é realizada através de um procedimento intertextual que leva em conta esse livro destinado ao público infanto-juvenil, mais dois outros cultuados volumes da autora: o romance A Paixão Segundo GH (1964), primeiro romance de Clarice na primeira pessoa, e a novela A Hora da Estrela (1977), o último livro publicado pela autora.

Essa novela ostenta, nas suas primeiras frases, uma tonalidade clara e afirmativa, lembrando a forma e a sintaxe de muitas histórias infantis. Após uma Dedicatória do Autor (Na verdade Clarice Lispector) e dos 13 títulos que encabeçam a história de Macabéa, o narrador afirma: “Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida”. Assim começa esse último texto da autora, no qual a morte é “personagem”, e que foi publicado no mesmo ano em que ela morre no Rio de Janeiro.

Tema recorrente na obra de Clarice, a morte é uma “personagem” de destaque nestas três narrativas. No livro destinado aos leitores infanto-juvenis, a morte vem impressa na afirmação do próprio título: A Mulher que Matou os Peixes. No romance A Paixão Segundo GH, a personagem G.H. – uma escultora de “classe alta” que vive numa cobertura do Leme no Rio de Janeiro – esmaga uma barata na porta de um guarda-roupa; vive uma via crucis da paixão onde o “crime” contra a “vida pessoal” é cometido em prol da própria vida. E na novela A Hora da Estrela, Rodrigo S. M. narra no final:

Então – ali deitada – teve uma úmida felicidade suprema, pois ela nascera para o abraço da morte. A morte que é nesta história o meu personagem predileto. (Lispector: 1977, p. 103)

Mas não será apenas a morte o personagem desta leitura. Para ouvirmos o que ressoa da literatura romanesca de Clarice Lispector, no seu livro A Mulher que Matou os Peixes, elegemos alguns dentre os múltiplos núcleos temáticos que engendram suas narrativas, como: a escrita do desejo e do perdão; o apreço pelo outro, o leitor, e sua configuração subjetiva; a sincronia que a autora cria entre os animais, os vegetais, os objetos cotidianos e sua escrita. Além desses núcleos temáticos, atentaremos para os intertextos criados por Clarice a partir dos seus próprios textos, e que também estruturam esta leitura.

Nas crônicas antes publicadas em jornal que compõem o livro A Descoberta do mundo, encontramos trechos de contos, embriões romanescos, textos que serão depois retomados por Clarice. Exemplar desse procedimento textual é o que acontece com o conto “Macacos”, do livro A Legião Estrangeira. Esse texto narra a história de Lisette, uma macaquinha que “tinha saia, brincos, colar e pulseiras de baianas. E um ar de imigrante que ainda desembarca com o traje típico de sua terra”. Muito bem acolhida e amada pela narradora, esta mesma Lisete (agora sem um t), reaparece em A Mulher que Matou os Peixes, ganhando a mesma descrição e a mesma pergunta feita pelo filho no conto de A Legião Estrangeira: “Você acha que ela morreu de brincos e colar?”

Clarice dizia haver três coisas para as quais ela nasceu e pelas quais ela “daria a vida”: amar os outros, escrever e criar filhos. Dizia também que esta ação de amar os outros é tão vasta que inclui perdão até para si. Sua literatura é permeada por essa escrita do perdão, onde o desejo é combustível para a ação narrativa. Nessa escrita, inusitadas conexões são criadas entre Deus e as baratas, os milagres e os crimes, a fome e a mesa “para homens de boa vontade”, a condição dos santos, dos criminosos e as epifanias.

As epifanias surgem em meio a um cotidiano áspero, repetitivo, e remetem à idéia de iluminação oriunda do universo religioso. Ostentando um tom que oscila entre o confessional que deseja a coisa dita e o religioso que contém a coisa (mesmo que essa coisa seja uma barata ou um rato), essa escrita do perdão é audível nos gêneros pelos quais Clarice transitou e no grande arquivo de formas que ela construiu: romances, contos, novelas, crônicas, cartas e textos da Literatura infanto-juvenil.

Essa escrita do perdão pode ser mensurada na recorrência a títulos e frases que remetem ao substantivo perdão e ao verbo perdoar. Além disso, essa escrita apresenta um recorte vocabular que remete ao universo religioso, e que inclui palavras como milagre, culpa, medo e salvação. Nem a própria Bíblia fica de fora. No seu “processo de reconquista do humano através do inumano” (Nunes: 1976), a narradora G.H. cita a Bíblia, e indaga por que este livro se preocupou tanto com os imundos:
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...Eu me sentia imunda como a Bíblia fala dos imundos. Por que foi que a Bíblia se ocupou tanto dos imundos, e fez uma lista dos animais imundos e proibidos?...o imundo é a raiz... (Lispector: 1977).

O recorte vocabular que remete ao universo religioso e à porção romântica de Clarice Lispector, em plena modernidade, é também audível em crônicas densas como “Perdoando deus” ou “Cem anos de perdão”, do livro póstumo A Descoberta do Mundo. Esse mesmo recorte ressurge num tom mais leve, de timbres bíblicos, no conto “A repartição dos pães”. Neste conto do livro A Legião Estrangeira, ouvimos:

Lá fora Deus nas acácias. ...Nunca Deus foi tão tomado pelo que Ele é. A comida dizia rude, feliz, austera: come, come e reparte...Nós somos fortes e nós comemos. Pão é amor entre estranhos. (Lispector: 1977, p. 29)

O recorte vocabular dessa escrita do perdão invade o espaço romanesco da autora. “Perdão é um atributo da matéria viva” – essa é uma assertiva da narradora de A Paixão Segundo G.H. Ao invés de matar os peixes, ela esmaga uma barata que leciona fecundação e nojo. Mas não é apenas na literatura romanesca da autora que o perdão vira “personagem”. Concluída a leitura de A Mulher que Matou os Peixes, o leitor descobre que a narradora precisa do perdão de quem ouve ou lê. No fragmento 146, ela dissera: “Então me dêem perdão”. E o último fragmento – 148 – é composto de uma única pergunta que ratifica essa necessidade de perdão da parte de quem narra: “Vocês me perdoam”?

Com essa pergunta a autora encerra sua narrativa de poucos fatos e repleta das muitas repercussões desses fatos na vida de quem narra e de quem lê. O texto de Clarice traduz um forte apreço pelo outro, pelo ritmo alheio, pelo leitor e sua respiração. Ela sabe do poder de, ao escrever, interferir nessa respiração, com um simples modo de pontuar, como diz o narrador de A Hora da Estrela. As vozes que narram nesses textos atestam o desejo de amar o outro, de compreender a diferença que marca a subjetividade alheia, despertando na autora a necessidade de uma certa “compreensão sagrada” (Caio F.) – e ás vezes sangrada - das pessoas, dos bichos e das coisas ao seu redor.

Nesta literatura é audível um incessante diálogo da autora com os animais, com os objetos e as máquinas cotidianos. Nesse sentido sua arte dialoga com as produções contemporâneas que se interessam mais pelo que está em volta, no entorno; e não por verdades abissais, distantes do cotidiano; embora as reflexões possibilitadas pelos textos de Clarice estejam longe de se restringirem ao registro ou a documentação desse cotidiano.

Esse diálogo com o entorno não exclui as estações que passam e alteram as formas de sentir, nem a cidade onde o corpo transita lendo, cheio de fé, a paisagem que diz, promete, muda. A natureza, as plantas, os vegetais são um capítulo à parte no universo clariceano. No conto “A repartição dos pães”, as frutas e os vegetais apresentam humores e ciclos, e como os humanos também se protegem na sua subjetividade úmida, inexplicável, como faz os pepinos: “pepinos se fechavam duros sobre a própria carne aquosa”. Ouçamos, do livro A Mulher que Matou os Peixes, o discurso que elege o universo vegetal como tema e parceria dessa narrativa:

Planta, se a gente pegar com jeito, as folhas delas parecem cantar. E falam com a gente. O quê? Depende de a gente estar triste ou alegre, com fome de beleza e de conversa. (Lispector: 1974, p. 51/52)

Deve ter sido por motivo dessa “fome de beleza e de conversa” que o filho Paulo perguntou, quando Clarice morava em Washington, por que ela não escrevia um livro para crianças. A autora ficou emocionada, lembrou dos coelhos de sua infância e publicou, em 1967, O Mistério do Coelhinho Pensante. Depois, vieram os textos A Mulher que Matou os Peixes (1968) e A Vida Íntima de Laura (1974), formando a trilogia de textos publicados em vida para o público infantil e juvenil.

Essa trilogia de textos produz um inusitado intertexto. Habituada a expor a sua porção metalingüística nos textos romanescos (principalmente em seus dois últimos textos de ficção, A Hora da Estrela e Um Sopro de Vida), Clarice constrói em A mulher que matou os peixes dois fragmentos – 33 e 34 – a fim de exercitar uma espécie de metalinguagem para leitores mais jovens. Referindo-se ao coelho e ao livro que o elege como personagem, ela diz:

Coelho tem uma história muito secreta, quer dizer, com muitos segredos. Eu até já contei a história de um coelho num livro para gente pequena e para gente grande. Meu livro sobre coelhos se chama assim: “O mistério do coelho pensante. (Lispector, 1974, 19)

Seriam a porção materna e a sintonia com os animais responsáveis pela geração desses tons reflexivos e repletos de afetos pelo humano? Coelho que pensa, peixe que morre sem voz, galinha que possui vida íntima... A literatura de Clarice é assim: seja no texto romanesco, seja na literatura infantil e juvenil, existe uma esfera do inumano que é toda permeada de bichos, estrelas, vegetais, objetos, máquinas (máquina de escrever, guindaste) e coisas. “Eu juro que a coisa tem aura”, diz Ângela em Um Sopro de Vida (Lispector, 1999, p. 103). “Ela humaniza as coisas”, diz o autor acerca de Ângela que deseja escrever um “romance das coisas”.

Haja bichos! A Mulher que Matou os Peixes serve de pré-texto para Clarice falar de barata logo no primeiro fragmento: “Até deixo de matar uma barata ou outra”. Mas não pára por aí: no fragmento 23, elas estão de volta, as baratas, quando a narradora diz haver pago a um homem para “matar baratas”. Impossível não lembrar da famosa barata com quem G.H. interage, enxergando o vazio interior e o deserto no qual transita ao olhar o animal, aprendendo a “amar mais o ritual de vida que a si próprio”.

Mas nem só de peixe e barata faz-se a narrativa de A Mulher que Matou os Peixes. Este livro serve de pré-texto para Clarice falar também de ratos e lagartixas e coelhos e patos e cachorros e macacos... É vasta a fauna criada pela autora neste texto onde quem narra assume seu crime na primeira linha do primeiro fragmento: “Essa mulher que matou os peixes infelizmente sou eu”.

No estudo que empreende em torno do universo imaginário de Clarice Lispector, Benedito Nunes diz que “os bichos constituem”, na obra da autora, “uma simbologia do ser“ (Nunes: 1976, p. 125). Essa constituição simbólica nos remete ao conto “Uma história de tanto amor”, onde a narradora disserta acerca do destino da galinha. Narrando que ser comida é o destino de quem nasce galinha, ela atenta para o poder do olfato e lembra que ninguém brinca com o cheiro de uma galinha viva, abaixo das asas...

Para a narradora, os homens e as galinhas não podem ser curados de serem homens e galinhas. Sua lição nos ensina que quando a gente come bichos, fica parecido com eles – os bichos comidos. Mas o apogeu da voz que narra acontece quando ela ressalta o prazer de ter uma galinha muito querida incorporada em si. “Só continuavam a viver os pintos que tinham alma mais forte”, leciona a mulher que matou os peixes, depois de assumir que já comprara “muitos pintos e a maioria morreu”.


A leitura que retira do universo interior


Segundo Walter Benjamin, a história do livro infantil demonstra, desde os seus primórdios, a predominância e a importância das cores no universo dessa literatura. No entanto, na reflexão que empreende entre as imagens coloridas e as xilogravuras em preto e branco de vários autores europeus, o pensador alemão assim escreve, levando em conta a percepção infantil:

A imagem colorida faz com que a fantasia infantil mergulhe sonhando em si mesma. A xilogravura em branco e preto, reprodução sóbria e prosaica, tira a criança de seu próprio interior. (Benjamin: 2002, 64/65).

Para Benjamin, o valor original da xilogravura em branco e preto é “equivalente ao das gravuras coloridas e desempenha função complementar”. Com base nesta leitura, nos aproximamos dos desenhos de Carlos Scliar que ilustram o livro de Clarice para leitores infantis e juvenis, já que o livro não contém nenhuma imagem colorida.

Composto de 148 fragmentos irregulares, que tanto podem ter uma como 17 linhas (como atesta o fragmento 110), A Mulher que Matou os Peixes é um livro que propõe, em certos aspectos, uma leitura semiótica; isso, se pensarmos nessa ciência dos signos como aquela que investiga todas as linguagens possíveis, e não apenas a linguagem verbal, o objeto de análise da lingüística.

Essa proposição semiótica é ratificada pela supremacia imagética dos desenhos de Carlos Scliar que dialogam, durante toda a narrativa, com a escrita da autora. Esse diálogo é produtivo e acompanha as sugestões da escrita verbal, a ponto de algumas páginas serem tomadas apenas por imagens, e não haver nelas nenhuma palavra. Isso acontece, por exemplo, nas páginas 12, 15, 26, 54, 56 e 57, dentre outras.

No livro A Mulher que Matou os Peixes, todos os animais são desenhados com a mesma cor preta, num tom levemente acinzentado. Em sintonia com a leitura perceptiva e pedagógica, proposta por Benjamin, através das cores preto e branco da xilogravura de diferentes séculos, podemos inferir que a escrita produzida por Clarice, juntamente com as imagens sombrias de Scliar, no branco da página, possibilitam ao leitor uma retirada do seu universo interior.

Ao ser retirado desse universo interior, o leitor desperta e retorna para o mundo que o cerca na sua materialidade colorida e concreta. Esse retorno possibilita a experiência de outras formas, a audição de novos ritmos, a percepção de outros sons. Para o registro dessa experiência, Clarice cria uma ilha como signo no final da sua narrativa. A forma da ilha remete geralmente ao espaço da utopia, ao universo rico de possibilidades narrativas e existenciais. “Essa ilha é um pouco encantada”, diz a narradora. Ela sabe do potencial sensorial e afetivo que esse encantamento aciona no imaginário do leitor.

Na materialidade do texto, esse leitor depara, além da ilha, com as imagens da fauna da qual Clarice lança mão para a sua escritura, como vimos na parte I deste estudo. Sabemos da predileção da autora por ratos, baratas e peixes. Mas existem muitos outros animais que ela transforma em personagens do livro A Mulher que Matou os Peixes. Dentre as imagens dessa fauna, destacamos, nas páginas 50 e 51, os peixes habitantes da ilha, cujo silêncio “é atravessado pelos sons característicos dos habitantes animais e vegetais” (Lispector: 1974).

Nas páginas 54 e 55 os desenhos de Scliar dialogam com os “cardumes de peixes pequenos e grandes”. E as imagens que “inundam” as duas páginas seguintes, são sugeridas pelo texto da autora que assim narra: “no mar da ilha também tem cardumes de botos ou delfins: parecem com uma baleia pequena”. Por que será que um livro que fala de peixes no seu título dedica tantos páginas para outros animais, e como é que botos ou delfim remetem à baleia?

São muitas as perguntas sugeridas pelo texto de Clarice e múltiplas as possibilidades de respostas. A leitura das imagens de Scliar auxilia nas perguntas de quem lê, ao vermos em meio aos peixes, traços que dão idéia de movimento, imagens de tonalidades díspares, desenhos irregulares e que sugerem as formas distorcidas da “baleia pequena” em seu movimento. Ou seja: as imagens do desenhista ampliam as possibilidades de experiências vivificadas pelo leitor, auxiliando com mais vigor na construção das formas do seu imaginário.

Os últimos desenhos de Scliar possuem como tema este universo de peixes e águas em movimento. É dele, após o pedido de perdão da narradora, a bela imagem final do casal de peixes que se movimenta na mesma direção. As formas se arredondam, na página 59, e a autora continua explorando a ilha, embora prometa voltar para os bichos. E aí surge um dos temas mais caros na escrita de Clarice, seja no seu texto romanesco ou neste livro destinado aos leitores infantil e juvenis: o medo. Parra registrar essa relação entre bichos e medo, ouçamos o que diz a narradora:

Eu fico muito ofendida quando um bicho tem medo de mim, pois sou corajosa e protejo os animais. Quem de vocês tiver medo, eu cuido e consolo. Porque sei o que é o medo que as crianças têm porque já fui criança. Até hoje ainda tenho medo de certas coisas. (Lispector: 1974, p. 60)

Este medo parece estar relacionado com as experiências, às vezes radicais, vivificadas pelos personagens de Clarice; experiências essas que levam em conta os diálogos dos seus corpos com os espaços pelos quais transitam, como acontece com o espaço que tece e mata Macabéa nA Hora da Estrela. No trânsito por estas três narrativas, as experiências do medo e da morte na vida de quem narra se fez presente, possibilitando outras formas de relações entre corpos e espaços.

Nas conexões tecidas entre os três textos, atentamos para as variadas formas e os múltiplos tons construídos pela autora. De ouvido na tonalidade romanesca – que oscila entre o confessional e o desejante –, e atentos aos tons que a autora utiliza para pedir perdão em seu texto destinado ao público infantil e juvenil, percebemos como os tons da fala interferem no peso que é dado aos fatos. Com base nessa audição, sugerimos ser possível ao leitor ouvir ressonâncias dos aspectos textuais da romancista nos seus escritos de Literatura Infanto-Juvenil. Ou aquela imagem dos dois peixes no final, após o pedido de perdão, seria obra do acaso?


BIBLIOGRAFIA

BENJAMIN, Walter. “Livros infantis velhos e esquecidos” In: Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Duas cidades, 2002.

BIBLIOTECA Brasileira de Literatura Infantil e Juvenil. V. 14. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 2006.

CAMPEDELLI, Samira Y. & ABDALA Jr., Benjamin. Clarice Lispector. São Paulo: Abril Educação, 1981. (Literatura Comparada).

GOTLIB, Nádia Battella. “No território da paixão: a vida em mim” In: LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo GH. 18. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.

LISPECTOR, Clarice. A Mulher que Matou os Peixes. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.

______. A Paixão Segundo GH. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.

______. A Hora da Estrela. 22. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.

______. A repartição dos pães / Macacos. In: A Legião Estrangeira. São Paulo: Ática, 1977. (Nosso Tempo).

______. Um Sopro de Vida. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
.
______. A Descoberta do Mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

NUNES, Benedito. “O mundo imaginário de Clarice Lispector” In: O dorso do tigre. São Paulo: Perspectiva, 1976. p. 93. (Col. Debates 17)

terça-feira, 7 de julho de 2009

Corpus singular, Livro plural









Leitura de O Labirinto Finissecular e as Idéias do Esteta



Publicado no Forum Virtual O que é Literatura e Teatro da UFRJ, em 2004,
e na Revista Alea: estudos neolatinos, v. 7, n 1 - Rio de Janeiro, Jan-jun, 2005.

I

Porque recolhe e inscreve as idéias e as estéticas cujos roteiros engendram as últimas décadas dos séculos XIX e XX, O Labirinto Finissecular e as Idéias do Esteta (UFRJ / 7 Letras, 2004) é um livro que tem muito a ver com este início de milênio. Digo isso porque seus núcleos temáticos se bifurcam, se refletem, dentre outros, nas formas e nos temas nossos de cada dia, sejam eles: a vertigem finissecular e o colapso das idéias, o Decadentismo e os limites da Modernidade, a influência do mercado nas produções culturais, nossa subjetividade maquínica, a releitura e os deslocamentos dos valores.

O Labirinto... compõe-se de 16 ensaios críticos produzidos pelo grupo "Estéticas de fim-de-século", da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil/CNPq). Formado por professores de várias Universidades Brasileiras, escritores, tradutores e poetas, o grupo é liderado por Luiz Edmundo B. Coutinho – professor de Teoria Literária e Literatura Comparada da UFRJ. Ele apresenta o livro que organiza em parceira com Irineu Corrêa, pesquisador do referido grupo, e autor de longo ensaio que conecta os discursos da arte e da ciência. Nessa conexão, o autor assinala as “apropriações poéticas” feitas pela psicanálise, destacando a crise do texto científico.

Incrustado no pórtico dO Labirinto..., o ensaio de Latuf Isaías informa e seduz. Isso se dá principalmente por dois motivos: pelo repertório do autor e pela singularidade de sua escrita que, a exemplo dos bons decadentistas, estetiza a própria informação – o ensaio “Walter Horatio Pater & A Febre do Esteticismo”. Essa estetização textual aciona uma linguagem de tonalidade clara, levemente coloquial, e gramaticalmente refinada (o verbo que abre este terceiro parágrafo é o mesmo utilizado pelo autor para iniciar seu texto). Incrustar, escrutinar e inscrever são alguns dos verbos que acionam a forma pateriana desse ensaio de cunho assumidamente nietzscheano.

Acerca desse cunho filosófico, torna-se imperativo que façamos uma leitura sincrônica deste ensaio sobre Pater com um outro dO Labirinto...: “Qualquer dia, um centauro”. Nesse texto “em torno de um livro impossível de F. Nietzsche”, o poeta e professor Alberto Pucheu lê, num Nietzsche finissecular, o nascimento de outras formas de pensar que investigam, dentre outras, as historiografias literária e filosófica produzidas pela cultura ocidental. Nesta leitura que rompe com a noção de gêneros, o filósofo faz convergir de modo potencializado, as formas e forças das artes e da filosofia, sendo ressaltado a importância dos gregos e de sua porção dionisíaca para a compreensão da modernidade. A potencialização dessas formas e forças remete à estetização existencial sugerida pelo ensaio sobre Pater.

Na leitura que Latuf empreende da obra do escritor inglês, a estética é lida como “ciência autônoma da sensibilidade” num texto no qual a biografia e a bibliografia do referido autor dialogam, sugerindo ser Pater um dos Padroeiros do Decadentismo (Isso não é pouco se pensarmos no elenco de autores que sedimentam a referida estética, cujo "altar" abriga alguns "santos" do porte de Poe, Baudelaire e Wilde). A estetização febril anunciada no título do texto aponta para a importância do ensaio e da poesia na construção desta escrita: “no coração do crítico Pater adormecia um poeta que eclodia quando... (o autor) interrogava os outros artistas”. Dessa leitura do texto peteriano resulta ainda a lição esteticista de repúdio a toda moral.

II

No ensaio “As ‘Roupagens’ Estéticas Dos Ensaios Prazianos”, a ensaísta Flora de Paoli lê um narrador-ensaísta a partir do texto do escritor italiano Mario Praz. Essa leitura tem na forma do ensaio o “instrumento ideal para dar vazão ao imaginário decadentista”, além de ressaltar, dentre outros, a sintonia entre o eu que ensaia e o seu objeto, a confissão sugerida em toda crítica, as relações entre a cidade e a escrita. Nessa leitura labiríntica, o excesso surge como um dos “personagens” principais dos cenários decadentistas, e o mais interessante: o discurso ensaístico se constrói não apenas a serviço da descrição, mas principalmente com o objetivo de articular procedimentos textuais.

Produtor antigo des textos e leituras em torno dos espaços labirínticos, cabe ao poeta e professor Fernando Fiorese ensaiar em O Labirinto... sua cota de subjetividade maquínica. No seu texto, a máquina ganha uma dimensão livresca, cuja ação prolonga e adapta “o corpo para acolher o mundo”. Nessa acolhida, o poeta, o ensaísta e sua porção imaginária possuem relevantes papéis, na medida em que o caráter automático e repetitivo da máquina sugere a necessidade do sujeito contemporâneo aumentar sua cota de invenção. Para isso, o autor opera, dentre outras, a seguinte proposição: “desvelar a dimensão imaginária e a margem de indeterminação que toda máquina dissimula”. Nessa relação entre máquinas e páginas, Fiorese conecta kant, Benjamin, Barthes e Mallarmé, concluindo o ensaio com um belo poema do seu livro Corpo Portátil, cujo primeiro verso diz: “Livro só existe no plural”.

Grávido de senhas para o leitor que se atreve a eleger o não dito como objeto do pensar é o texto conciso de Stella Ferreira. Ao ler “a vertigem labiríntica como ritual de iniciação”, a autora nos induz a refletir acerca dos grandes estetas como criadores que, a exemplo de Oscar Wilde, alimentam o imaginário do seu tempo. Outra importante contribuição desse ensaio é o fato dele possibilitar a tessitura de relações entre a máscara e o significante. Ou seja: o texto de Stella faz pensar que a máscara – e não o que ela oculta – está para a construção identitária do sujeito assim como o significante – e não apenas o tema – está para a produção da linguagem literária, para a construção do texto estético.

Didático e dialógico, corpus de ponta, é o texto de Luciana Salles. Centrada na tradição oral, ela consegue seu intento de sincronizar Oscar Wilde, João do Rio, Horacio Quiroga e a “literatura infantil para adultos”, ressaltando as peculiaridades inerentes a cada autor. Apesar da forma metalingüística desse estudo que começa com o clássico “Era uma vez...”, é recomendável, numa próxima edição, que a autora reveja um ou dois jargões do texto, e solucione os problemas de ordem técnica da bibliografia.

III

O Labirinto Finissecular... reflete, em suas múltiplas máscaras e rubricas, e na polifonia de suas referências artísticas e culturais, uma marca singular em relação ao seu corpus. É a singularidade desse corpus, os roteiros de cada ensaio, e as miríades de conexões por eles viabilizadas que pluralizam a leitura deste labirinto de letras. A grande maioria dos ensaios recorta um universo teórico e estético relativo a autores decadentistas e finisseculares. Nesse recorte singular, alguns estetas são visivelmente mais ensaiados. É o caso de Oscar Wilde, Walter Benjamin e Roland Barthes. Eles compõem o trio de autores mais relidos nO Labirinto...

A vida à margem de Oscar Wilde e sua escrita decadentista erigem grande parte desta forma labiríntica. O esteta inglês surge como “ator” do teatro esteticista no ensaio do professor Latuf Isaías; depois o escritor aparece como componente da bibliografia de Mônica Fagundes e como tema central do ensaio de Stella Ferreira: “Oscar Wilde: o Esteta e os Mascaramentos do Corpo”. O autor de O príncipe feliz e outros contos é ainda um dos objetos da leitura de Luciana Salles, e surge como precursor da modernidade na escrita de Samuel Abrantes que analisa, a partir do “sistema” barthesiano, arte e moda no final do século XIX, demonstrando como esta última patrocina mutações corporais.

Além de “atuar” na longa epígrafe do ensaio de Rogério Lima que tematiza o “baixo valor do diálogo” no cenário pós 11 de setembro, Walter Benjamin serve de base para a leitura do tempo sincrônico empreendida por Mônica Fagundes, ao traçar “Uma breve história do labirinto”, e que ostenta a mais labiríntica epígrafe deste volume: Perder-se também é caminho (Clarice Lispector). Também as relações entre a leitura e a infância são tecidas por Luciana Salles a partir da tessitura de idéias benjaminianas. Para ler a narrativa italiana de “Luigi Malerba e as circulações da Escrita Decadentista”, Sonia Reis também recorre às Obras Completas do pensador alemão, assim como Fernando Fiorese que lê no autor de Rua de mão única a profecia da experiência do objeto livro para além do suporte material.

Nesta escrita labiríntica, Roland Barthes “encena” o texto final. Referendado em outros ensaios do volume, principalmente no texto certeiro de Samuel Abrantes, o esteta francês surge como personagem principal de “Formas e Truques de um Écrivain-Dandy”, escrito por Luiz Edmundo. A partir da leitura dos 16 fragmentos de “Soirées de Paris” (Incidentes), o ensaísta traça intertextos com a bibliografia do escritor francês, atentando para a audição dos ecos de Gide, Proust, Sade e Pascal, dentre outros, na escrita barthesiana. Com base nisso, Luiz Edmundo inscreve um Écrivain-Dandy que rompe com a noção de gêneros (artísticos e sexuais), num texto onde as simulações romanescas dão o tom. Ouçamos o ensaísta: “Se, para coroar o esteticismo fin-de-siècle, o dandy decadentista procurou realizar a beleza por meio de sua obra, coube ao écrivain-dandy tramar no ato de escrever sua possibilidade de existir”. Essa “trama” é visível no corpus que compõe O Labirinto Finissecular...

Pater, Praz, Mallarmé, Visconti, Freud, Nietzsche, Sciascia, Malerba, Wilde, João do Rio, Quiroga, Bataille, Benjamin, Barthes... As idéias desses estetas, dandys e decadentistas se voltam, geralmente, para uma estetização existencial onde o texto da vida tem muito a ver com o texto da página. Na leitura dos móveis e objetos que os circundam, na inscrição de cidades e páginas que os acolhem, nos modos de ler as modas, na forma de estetizar os alimentos e corpos consumidos e mascarados... Tudo nesse corpus parece estetizado sob as bênçãos atordoantes e generosas de Eros e as espetadas imperdoáveis de Thanatos. Se possível, com a boa cota de ócio que requer toda criação. Para que haja sempre O Labirinto... e a letra não se apague.

terça-feira, 30 de junho de 2009

A chama do ensaio e a simetria da representação






Sobre Duplo Cego


Uma versão desta resenha foi publicada na Tribuna do Norte, Natal, 03/02/1998


“aspira... à arte: misto de estilhaço frio e efervescência”

Armando F. Filho


De belos título e projeto gráfico, Duplo Cego (Ed. Nova Fronteira, 1997) é o 16º livro de poemas do carioca Armando Freitas Filho. Detentor de um Prêmio Jabuti, traduzido para vários idiomas e países, referendado por críticos como Silviano Santiago e Flora Sussekind e curador da obra da poeta Ana Cristina Cesar, Armando atravessou as 4 últimas décadas sem engajar-se em “legendas indeléveis”. Essa liberdade estética e política é responsável pela projeção de uma poética que, sintonizada com as nuanças artísticas e os procedimentos culturais e contemporâneos, destaca-se por um primoroso trabalho com a sintaxe textual em contraposição ao “esteticismo da palavra”.

Duplo Cego traduz, através dessa exatidão sintática (e "com o rigor de tigres"), dois núcleos temáticos acionadas pelo poeta: o exercício do ensaio e as formas da representação. Por isso, os 43 textos do livro dividem-se em duas partes - “Do ensaio” e “Da representação”. Num tempo no qual os efeitos e os procedimentos da representação são questionados e re-dimensionados, e do ensaio cobra-se a imersão de uma força imaginária, através do diálogo entre informações teóricas e formais com experiências subjetivas e reflexões pessoais, nada mais pertinente que estetizar essa problemática crítica num contexto poético. O próprio autor escruta as questões em exercício. Segundo Armando, “...o ensaio, hoje, anda incorporando mais livremente a especulação, a incerteza, a contingência de quem o faz, sem os rigores metodológicos e os fatalismos teóricos de antes” (4ª capa de “Escritos da Inglaterra”, Ana C., Ed. Brasiliense, 1988).

Crença na crítica e na criação balizam este Duplo Cego. Na primeira parte do livro, “Do ensaio”, Armando medra a inscrição de sua poética, através do introdutório “Sobre Pedra”. Nesse poema resplende uma escrita “sem horizonte à mão”, que desdenha “legendas” e demonstra saber de cor a “cara fechada” “da cantaria”. Em seguida, o belíssimo “Escritório” traz os livros como tema. Inscreve os “livros lidos, relidos” e os “cerrados, cegos de mim que vão fundo/ mesmo ficando parados - à espera/ e que apenas as traças atravessam”. Nada romântico, “Limite” sugere um sujeito que ensaia sua experiência estética calcada no rigor poético e na consciência analítica do seu fazer literário: “...não posso escrever/ na linha da arrebentação”.

“Do ensaio” prossegue estetizando a "crítica" poética proposta por Armando. Através de títulos, epígrafes e referências in-diretas, o poeta mantém cerrado intertexto com autores e artistas de diferentes contextos. Ao nomeá-los, ele recorta, de certa forma, um "cânone" particular composto por estilos e estéticas díspares onde se inscrevem Clarice Lispector, Duchamp, J. D. Salinger, Drummond, Murilo Mendes, Ângela Melim, Ana C. e João Cabral. Esses nomes surgem em textos como “Rubin”, “Cesar”, “Lispector” e “Para João, com amor e sordidez”, onde figurações de afeto e chumbo dimensionam o espaço imaginário.


Reciclando o recorte poético
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Na segunda parte - “Da representação” - são poetizados temas e leituras concernentes ao cotidiano, aos afetos e avios. Aqui a existência é re-lida sob o signo da memória, do testemunho, do desejo. Poemas como “Casa fechada”, “Dor” e “Sem nome” ratificam essa escrita na qual o interlocutor é, muitas vezes, personagem e ponto de partida para o desdobramento do tema. São textos sintonizados com os efeitos da simulação, os sentimentos da falta, as formas inacabadas.

Essa sintonia entre efeitos, sentimentos e formas caracteriza um espaço-tempo no qual vivemos “sem o segredo de ferrugem/ das fechaduras/ nem o drama de chaves perdidas/ e dos indistintos dias desertos de escrita/ que passaram sem saber”. Mas sabe-se, no poema “Zerando” (4ª capa), do poeta “tão fixo e travado/ como no começo de tudo”, abrindo “veias” e “gavetas”. Como leitores deste autor que vem publicando a 37 anos, desejamos que suas veias e gavetas continuem abertas e que, página a página, corpo a corpo, revelem-nos a poesia contemporânea de cada dia. Essa abertura ajuda-nos a imaginar respostas e perguntas para o in-questionável questionário “do destino - quem? Qual?” (“Em tempo real”).

Reciclando o recorte vocabular da poesia como faz, por exemplo, Augusto dos Anjos no seu belo livro Eu (1902) ao utilizar-se de vocábulos da esfera biomédica, Armando introduz no cenário estético e cultural deste final do século o seu Duplo cego (1997). Transportado do contexto da medicina para o universo artístico, Duplo Cego deixa de ser o teste médico no qual nem o pesquisador sabe quem está recebendo o produto ou o placebo, nem o paciente sabe quem está administrando. Essa relação médico-produto-paciente sugere, de certa forma, a relação autor-obra-leitor e, ao transformar-se em título deste volume, o teste aciona uma das mais caras atribuições do bom poeta em todas as épocas: a necessidade de reciclar o idioma, de dar novo entusiasmo à linguagem. No belo teste de formas e linguagens propostas por Armando, o leitor percebe que em terra de cego quem lê o duplo vê.