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e pode às vezes
(o poema)
com sua energia
iluminar a avenida
ou quem sabe
uma vida
Esses versos de Ferreira Gullar fazem parte do poema “Inseto”. Esse poema está no livro “Em alguma parte alguma” que o poeta acaba de lançar. O livro faz parte de uma extensa bibliografia composta de diferentes formas como poesia, música, literatura infanto-juvenil, teatro, crônica, tradução, ficção...
Dentre os livros de poesia de Ferreira Gullar, três títulos podem ser lidos como textos representativos da poesia moderna produzida no Brasil: “A luta corporal”, “Dentro da noite veloz” e “Poema Sujo”. Muitos temas e formas desses volumes publicados na décadas de 60 e 70 estão no livro “Em alguma parte alguma”. Aqui temos novamente as frutas podres na quitanda ou amadurecendo sobre a mesa, vemos os velhos personagens do Maranhão, lemos nomes de ruas do Rio, relemos bichos (haja gato, aranha, rato...) e, dentre outros, um infindo exercício metalingüístico através do qual a trindade corpo-poema-cidade ganha vida e dialoga sem subordinação lingüística ou estética.
Esse diálogo entre o corpo, o poema e a cidade vivifica o ser e estar no espaço cotidiano. A vida vira um problema de linguagens e espantos. O escuro ganha necessidade de forma, como na abertura do poema “Bananas podres 4”: “É a escuridão que engendra o mel/ ou o futuro clarão no paladar”.
É do sol cotidiano que Gullar desentranha grande parte da sua poesia. O poeta sente na boca “o alarido do sol”. O cotidiano é sugado pela boca, pelo olho. Paladar e visibilidade engendram esse cotidiano do poeta moderno romanticamente atravessado por relâmpagos e clarões. Muitos relâmpagos. Pequenas epifanias. Não as epifanias à lá Clarice e Caio onde a luz atravessa, geralmente de forma atordoada e sã, o corpo de quem vê e frui. Em Gullar a luminosidade faz sua travessia nas próprias coisas, no cotidiano mais chão, de onde brota uma poesia feita de pequenos esplendores, assim:
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mas o perfume daquelas frutas
que feito um relâmpago
desceu na minha carne
... volta a esplender
A juventude não é tudo
No próximo dia 10 Gullar completa 80 anos. Merece todas as comemorações, prêmios e reflexões. Na leitura madura (“A maturidade é tudo”) de Alfredo Bosi que abre o livro, o crítico indaga se materialismo e metafísica “podem conviver em amorosa tensão”. Concluída a leitura de “Em alguma parte alguma”, o leitor sabe que pode conviver sim. Pode casar luz e osso. Pode sugerir relações estéticas, filiações literárias que não acabam nunca.
Mas nesta poética onde Bosi ouve Drummond, meu ouvido escuta Cabral (embora uma tonalidade concretista ecoe de quando em vez dos muitos versos entrecortados, de algumas palavras fragmentadas ou de algumas estrofes alinhadas como nos tempos que o mundo era concreto). Dessa fonte ecoam, desde há muito, “Barulhos”, “Muitas Vozes”...