O Estranho é o quinto livro de ficção da escritora carioca Carmem Moreno. A epígrafe de Clarice Lispector que abre o volume sugere a filiação da contista a uma linhagem literária que possui na autora de A Legião Estrangeira e em textos como Estranhos Estrangeiros, de Caio Fernando Abreu, dentre outros, seus precursores. A leitura dos oito contos (três deles premiados) confirma essa sugestão filial.
Carmem cria inusitados finais para estranhos personagens. Eles transitam principalmente por hospitais (“Depois da Queda”), abrigos psiquiátricos (“O Reencontro”) e sessões de análise (“O Corno”). Nesses cenários, um narrador contata o reino mineral (“O que eu chamava de carne e osso virou carne, osso e ferro.”), e subverte mitos como a queda e a espera. Este último mito, romanticamente lido como feminino, é relido por um homem que procura nos cenários provisórios e soturnos que o circundam, o melhor ângulo de digerir a paisagem; mesmo que seja esta paisagem o submundo hospitalar. “Depois da queda” é um texto pedagógico: leciona a regar, em meio ao cotidiano áspero e automatizado, pequenas promessas. Promessas que viram rezas que viram metas que viram sílabas que viram textos como “Dora”.
“Dora” é um conto detentor de dois prêmios. Nele, a miudeza das sílabas no papel picado anuncia, na sua fragmentação amassada, com quantos paus se faz uma relação afetiva cotidiana. A estratégia da carta, a cortante presença da ausência e a seqüência de mulheres que engendram o texto – Rose, Dora, Júlia, Cândida.... – estruturam, nas cinco cenas da narrativa, um pequeno tratado sobre a traição. Possuída por um dos mais moventes pecados capitais – a raiva – e com um olhar habituado a batizar entranhas, a narradora freqüenta mini temporadas infernais numa travessia que vai da claridade ao breu. São falas miúdas. Frases que fariam arrepiar os filhos de René Descartes, para quem corpo e alma são lidos como coisas distintas. Diz a narrativa: “...uma lembrança congela meu estômago” ou “Não penso, não intuo. Sou bruta.”. Essa sintaxe seca e cortante dá o tom; embora eu sinta, neste conto onde a raiva é o principal combustível, saudades de uma escrita ainda mais alegórica e antropofágica, como no Pau... e nos biscoitos bruscos de Oswald de Andrade ou nas luvas de Ana C em seu belíssimo A teus pés.
Em “O Reencontro” Julia inscreve a dança da loucura. Pela ótica do afeto e da amizade, ela narra como Mira vai perdendo o riso e o ritmo diários, restando precária a própria respiração (aliás, o ar, seus fluxos, seus ritmos – ou sua falta – é um dos “elementos-personagens” marcantes em O estranho). Essa narrativa denota a opressão lingüística que jaz latente nas relações, sejam elas entre irmãos, amigos ou amantes. Relações regidas por uma lógica silenciosa, geralmente afetiva e perversa, que engendra e ornamenta uma linguagem na qual a sedução e seus desvios anunciam o que de fascista e autoritário compõe o discurso patrocinador de quedas.
Um dos mais belos finais do livro encontra-se em “O Estranho”. Neste texto, João é um motorista em quem a vida passou a perna. Isso se dá numa velocidade na qual a crueldade faz dançar os que tentam abreviar os roteiros cotidianos que a vida propõe, traça. A autora demonstra mestria ao virilizar as vozes de um dos personagens desse conto e da narrativa seguinte: “A Dor”. Aos trinta e oito anos um homem petrifica-se. Desejante de um “grande fato”, ele tem pressa. Seus ritmos não escondem a sombra que habita sua face. O discurso de morte, desculpas, perdão e dor ganha musicalidade na medida em que sua confissão fere a mulher, despertando-lhe um intenso prazer.
São assim os personagens de Carmem Moreno: seres movidos pelo desejo de captar o instante, acionar a senha que o devir anuncia।De ouvido atento ao sussurro que clariceanamente emana dos fatos; de olho no futuro armado logo ali, ao redor (“O espelho da outra”). Embora, como nos contos de Caio, trata-se às vezes de uma narrativa do olhar invisível: um olho que vê, mas nem sempre se deixa ver.
Carmem cria inusitados finais para estranhos personagens. Eles transitam principalmente por hospitais (“Depois da Queda”), abrigos psiquiátricos (“O Reencontro”) e sessões de análise (“O Corno”). Nesses cenários, um narrador contata o reino mineral (“O que eu chamava de carne e osso virou carne, osso e ferro.”), e subverte mitos como a queda e a espera. Este último mito, romanticamente lido como feminino, é relido por um homem que procura nos cenários provisórios e soturnos que o circundam, o melhor ângulo de digerir a paisagem; mesmo que seja esta paisagem o submundo hospitalar. “Depois da queda” é um texto pedagógico: leciona a regar, em meio ao cotidiano áspero e automatizado, pequenas promessas. Promessas que viram rezas que viram metas que viram sílabas que viram textos como “Dora”.
“Dora” é um conto detentor de dois prêmios. Nele, a miudeza das sílabas no papel picado anuncia, na sua fragmentação amassada, com quantos paus se faz uma relação afetiva cotidiana. A estratégia da carta, a cortante presença da ausência e a seqüência de mulheres que engendram o texto – Rose, Dora, Júlia, Cândida.... – estruturam, nas cinco cenas da narrativa, um pequeno tratado sobre a traição. Possuída por um dos mais moventes pecados capitais – a raiva – e com um olhar habituado a batizar entranhas, a narradora freqüenta mini temporadas infernais numa travessia que vai da claridade ao breu. São falas miúdas. Frases que fariam arrepiar os filhos de René Descartes, para quem corpo e alma são lidos como coisas distintas. Diz a narrativa: “...uma lembrança congela meu estômago” ou “Não penso, não intuo. Sou bruta.”. Essa sintaxe seca e cortante dá o tom; embora eu sinta, neste conto onde a raiva é o principal combustível, saudades de uma escrita ainda mais alegórica e antropofágica, como no Pau... e nos biscoitos bruscos de Oswald de Andrade ou nas luvas de Ana C em seu belíssimo A teus pés.
Em “O Reencontro” Julia inscreve a dança da loucura. Pela ótica do afeto e da amizade, ela narra como Mira vai perdendo o riso e o ritmo diários, restando precária a própria respiração (aliás, o ar, seus fluxos, seus ritmos – ou sua falta – é um dos “elementos-personagens” marcantes em O estranho). Essa narrativa denota a opressão lingüística que jaz latente nas relações, sejam elas entre irmãos, amigos ou amantes. Relações regidas por uma lógica silenciosa, geralmente afetiva e perversa, que engendra e ornamenta uma linguagem na qual a sedução e seus desvios anunciam o que de fascista e autoritário compõe o discurso patrocinador de quedas.
Um dos mais belos finais do livro encontra-se em “O Estranho”. Neste texto, João é um motorista em quem a vida passou a perna. Isso se dá numa velocidade na qual a crueldade faz dançar os que tentam abreviar os roteiros cotidianos que a vida propõe, traça. A autora demonstra mestria ao virilizar as vozes de um dos personagens desse conto e da narrativa seguinte: “A Dor”. Aos trinta e oito anos um homem petrifica-se. Desejante de um “grande fato”, ele tem pressa. Seus ritmos não escondem a sombra que habita sua face. O discurso de morte, desculpas, perdão e dor ganha musicalidade na medida em que sua confissão fere a mulher, despertando-lhe um intenso prazer.
São assim os personagens de Carmem Moreno: seres movidos pelo desejo de captar o instante, acionar a senha que o devir anuncia।De ouvido atento ao sussurro que clariceanamente emana dos fatos; de olho no futuro armado logo ali, ao redor (“O espelho da outra”). Embora, como nos contos de Caio, trata-se às vezes de uma narrativa do olhar invisível: um olho que vê, mas nem sempre se deixa ver.