Rio de Janeiro, Fevereiro de 2000
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a câmara canta, chora
“Wim Wenders não aparece, mas sua câmara também chora em vários momentos”. Essa assertiva de Marcelo Janot (Revista Programa - Jornal do Brasil, 18/02/00) diz muito da emoção que toma conta do diretor, dos músicos e da platéia de Buena Vista Social Club. Frente às sonoras paisagens cubanas muitos choram. E embora o crítico assegure não haver “investigações políticas”, do prólogo - no qual Fidel vence Che Guevara, numa partida de golfe - à cena final da bandeira cubana no palco do Carnell Holl, a política insinua-se. Embora seja a música, claro, a grande personagem desta história.
O novo filme do diretor de Paris, Texas elege não apenas a música como personagem principal, mas a vida e parte do cotidiano cubanos. Ao transpor para a tela a história e a obra de artistas cubanos como Ibrahim Ferrer, Rubén Gonzales e Omara Portundo, dentre outros, Wim Wenders refaz a trilha sonora deste tempo globalizado. Para isso, o diretor alemão - de olho nas poéticas imagens cubanas -, lança mão do ouvido e da voz destes músicos que brilharam em meados do século XX, apresentando-se em Moscou, Bucareste e países da América Latina, e que estavam praticamente esquecidos (Ibrahim Ferrer, por exemplo, vivia como engraxate em Cuba, até que Ry Cooder - músico predileto das trilhas de Wim - o resgatou).
música sob estrelas
O documentário é de uma beleza comovente. Nas ruas de Havana ou New York, a vida e a música da Velha Guarda cubana celebram a existência e sua sonoridade, descartando perdas, rancores, mesquinharias. Tempo e espaço parecem parceiros de uma longa melodia que se vai tecendo ad infinitum... Nada soa piegas ou exótico. É incrível como um filme - repleto de pessoas antigas - contém tanto viço, ostenta tanta pulsão. Um senhor de 90 anos deseja fazer mais um filho. Outro senhor mostra - num banco de jardim - a fotografia desbotada de um saudoso cego com quem tocara num momento marcante de sua trajetória. Um outro homem diz do músico que tirava altas notas sob as estrelas. Uma mulher de vestes coloridas passeia cantando pelas ruas de Havana... Ninguém quer morrer. Todos parecem encarar a vida de frente. A vida no peito, à vista, sem crediário.
Na tela reluz também as vozes interiores de quem canta. A percussão sutil destes músicos ajuda a sonorizar a aridez de nossas entranhas. Saindo da esfera da sombra e de olho nas luminárias da forma, vê-se que nos sobrados de cores berrantes e nos requebros sonoros dessa gente, a vida pulsa sua amplidão através de coisas miúdas: a solidão amarela de um girassol sobre a mesa; o charuto da negra nativa “matando” o tempo; um móvel decadente arrastado pela vizinhança; o caminhar sensual do pai carregado pela mão do filho... Cuba é aqui.
Wim Wenders capta a música e a poesia que residem na banalidade e na própria carência cotidianas. Cenas da vida privada são ritmadas por melodias que parecem fazer parte do nosso imaginário musical. Seja nas enferrujadas marcas de automóveis que trafegam por Cuba ou no colorido de seus mares e jardins outonais, seja na fala concisa e consciente dos músicos, ou ainda no discurso coerente de seus corpos, a câmara reflete a vida desta Velha Guarda. Reflete e refrata em nós o que há de vivo, ritmado, edificante.
Enfim: um musical ativo que, ao celebrar as ações factuais, espanta a morte mesquinha de cada dia। Impossível não lembrar a lição psicanalítica de que a libido tem possibilidade de manifestar-se durante toda nossa existência. Pena que este universo globalizado teime em reduzir essa manifestação; pena que as imagens do capital e do poder nem sempre traduzam a música que há na sutileza das coisas. Bom seria se houvesse mais paisagens sonoras para alimentar a fome do nosso olho, o jejum do nosso desejo. Num tempo no qual a indústria cinematográfica banaliza tanto a morte e vende a adrenalina do medo e da guerra como receita existencial, nada melhor que o ritmo da Velha Guarda cubana para restaurar a trilha sonora da vida.