...identifico um ‘ethos’ substancialmente diverso
daquele dos anos 1970-80, como em Ana Cristina Cesar,
cujo jogo de subjetividades ostensivas, atuadas, desmontadas,
encenadas, prismáticas, colocou a poesia feita
por mulheres na vanguarda da sua geração.
Heloísa Buarque de Hollanda, Corola (Prefácio)
Primeiras Impressões
Tinha eu por volta dos 20 anos quando cursava Letras na UFRN e li Impressões de Viagem, de Heloísa Buarque de Hollanda. Lembro da sensação de vitalidade que senti frente a um texto que falava de temas contemporâneos e dificilmente abordados pela crítica acadêmica daquela época, como: CPC, vanguarda, desbunde, tropicalismo e, dentre outros, a poesia como instrumento ideológico. Desde então as Impressões... de Heloísa marcaram minha trajetória de Letras. Sempre que pensava o novo, o contemporâneo, tinha naquele texto uma referência imediata. Era início dos anos 80, e até hoje penso nesse livro repleto de poesia como um objeto de intensa vitalidade.
No início dos anos 80 li Poesia Jovem anos 70 – texto onde Heloísa revista esse gênero no qual as relações entre som e sentido são potencializadas. Só depois é que conheci sua antologia 26 Poetas Hoje (1976) e um ensaio em parceria com Armando Freitas Filho e Marcos Augusto Gonçalves: Anos 70 – Literatura (1979). Tendo por base essa produção inicial, os textos publicados nas mídias impressa e eletrônica, passando depois por sua incursão pelos Estudos Culturais, até a antologia Esses Poetas (1998) e o ensaio “Duas Poéticas, Dois Momentos” [1], podemos considerar o roteiro traçado por HBH como uma das referências básicas para a leitura da poesia escrita no Brasil no final do século XX.
Também nos primeiros anos da década de 80 conheci o livro A teus pés de Ana Cristina Cesar. Lembro claramente de uma noite em claro – num quarto de hotel do Recife – onde devorei aquele volume vermelho que me devorava. O texto eletrizante da poeta carioca deixou-me para sempre ligado em suas “Sete Chaves”. Ela falava de coisas cruéis e abissais com um misto de doçura, ironia e sofisticação que até então o leitor que eu era desconhecia. Eu não imaginava que Ana também seria uma marca decisiva na minha trajetória de Letras...
A partir de então acompanhei o que ia sendo lançado por essas duas damas das Letras cariocas. Na década de noventa pude reuni-las num mesmo texto, ao escrever Luvas na Marginália – dissertação de mestrado tendo a poesia de Ana C. como objeto de reflexão, e onde eu me utilizava da Introdução da Antologia 26 Poetas Hoje para refletir acerca do contexto no qual Ana foi lançada. Neste início de milênio, quando comecei a selecionar o corpus para a minha tese de doutorado, não incluí de imediato a autora do olhar estetizante entre os seis poetas. Somente no meio do percurso me dei conta de que ainda não havia esgotado o desejo em relação à sua escrita. Hei-la de volta, pois. E este retorno se dá através da professora e escritora com a qual Ana manteve um dos intertextos mais produtivos de sua vida e de sua produção literária: a própria Heloísa.
Na orelha da Correspondência Incompleta de Ana C., organizada por Heloísa e Armando Freitas Filho, a poeta que considerava como provisório ser da condição dos avessos [2], diz: cartas e biografias são mais arrepiantes que a literatura. Com base nessa assertiva relembrada por Heloísa durante nossa entrevista, utilizei – no capítulo referente a Ana –, trechos das Cartas de Caio Fernando Abreu, nas quais o autor de Os dragões não conhecem o paraíso fala sobre a poeta. Caio, como diz Heloísa nesta entrevista, é o masculino de Ana. Mais, ainda: ele é a primeira contracapa de A teus pés. Sobre esse e outros temas Heloísa lança, a seguir, o seu olhar, a sua voz.
A vida, sem intermediário
Nonato Gurgel: Na introdução da Antologia 26 Poetas Hoje (1976) você diz de uma poesia que restabelecendo o elo entre poesia e vida, restabelece o nexo entre poesia e público. Como era essa relação entre poesia e vida? Como situar a poeta Ana C. naquele contexto?
Heloísa Buarque de Holanda: Entre poesia e vida, o que os poetas daquele período queriam era tirar o intermediário. Queriam viver poeticamente. Tinham um compromisso enorme entre as ações de viver e escrever. Você lembra daquele poema do Cacaso: Poesia/ Eu não te escrevo/ Eu te/ Vivo/ E viva nós? Era verdade. Aqueles poetas não se permitiam uma porção de coisas... Para esse grupo da poesia marginal entrar, por exemplo, na TV Globo, demorou muito. Porque havia uma coisa de não se comprometer com o mercado, de não se comprometer com a lógica do trabalho. Poesia e vida eram a mesma coisa: era preciso viver poeticamente. Então eles tinham roupas esquisitas, as performances; artimanhas – como eles chamavam. Os poetas faziam os próprios livros; faziam com amigos... Os livros da Ana, cada um fazia uma capa... A produção editorial era uma produção afetiva. Então, você não tinha uma separação entre a produção, a divulgação e a própria vida. Quando paravam de escrever poesia, eles não deixavam de ser poeta: eles iam ler os poemas na porta do cinema...
Cacaso, como professor, era um intermediário interessante porque ele tentava não se institucionalizar. Mas, por exemplo, o Schwarz, o Chico Alvim, que era diplomata, eles não se misturavam muito com essas coisas... A Ana se misturava. Ela era uma coisa assim... Um objeto estranho. Ela estava lá, mas não era igual a turma; porque essa coisa de vida e arte na Ana não era a mesma coisa. Arte, para ela era uma coisa muito séria, muito trabalhada, muito profissional: o texto dela não era escrito ao acaso em hipótese alguma. Era escrito, reescrito e somente depois era mostrado, discutido, com muitas referências culturais. Ela tinha uma relação com a poesia menos canônica... Ela não saía por aí rabiscando bilhetinhos. Havia um cuidado muito especial com o texto e com a parte gráfica. Ela sabia direitinho o que queria; não publicava tudo, era bem diferente da atitude da maioria... Então, é interessante porque até aí ela era um pouco deslocada, quer dizer: era a turma dela, mas ela não era reconhecida nem reconhecia aquela turma. Você falou daquele olhar em eclipse da Ana... Era um olhar até comportamental. Ela estava mas não estava...
NG: Era um olhar performático?
HBH: Não, eu acho que era desconfortável.
NG: Desconfortável significa participar de reuniões políticas, reuniões de jornais? Isso era meio difícil para ela?
HBH: Sim. Principalmente as reuniões poéticas nas casas dos poetas, nas fazendas, onde todos discutiam seus trabalhos. Isso para ela era muito difícil. Porque o texto dela consistia num trabalho de ourivesaria, muito encenado, construído.
NG: Tem uma moça – a Regina Cunha Lima – que escreveu uma dissertação sobre o desejo no texto da Ana, e ela diz que a poeta não tinha interlocução. Você acha que Ana tinha interlocutor?
HBH: Tinha. Ela alugava todo mundo. Ela foi minha orientanda no mestrado: era um inferno! Não escrevia uma vírgula sem consultar... E tinha as outras professoras, a Clara Alvim, todas viraram amigas delas. Havia muitos interlocutores. Os outros poetas, também, discutiam com ela o tempo todo. O Chico Alvim... Aqueles trabalhos dela eram todos muito interlocutados. Agora, o que eu acho que acontecia era que esses interlocutores falavam e ela não ouvia... (risos). A moça tem uma certa razão, na medida em que Ana não aceitava... Ela ouvia mais ou menos... Mas não era uma coisa séria o aluguel que ela fazia da gente. Tinha uma coisa de sedução, de encenação. Ela encenava muito essa necessidade de ler, corrigir, de discutir o texto. Ela encenava. Era engraçado porque era diferente de precisar, de estar realmente interessada na resposta... Ela meio que manipulava um pouco isso, mas o que tinha de interlocutor disponível para ela, não era brincadeira. Talvez fosse a que mais tivesse. Desde o começo. Porque ela sempre fez uma personagem muito intrigante. Então todo mundo prestava muita atenção na Ana. Mas ela vampirizava tanto, que as pessoas acabavam saindo da vida dela.
NG: Numa outra fala, para o Wilson Coutinho, você diz o seguinte sobre a Ana: Ela foi a lady de uma geração, aquela que se convencionou chamar de filhos da PUC, porque muitos entraram na cultura ao abrigo dos pilotis da universidade. Lady ela era, magrinha, olhos claros, jeito de inglesinha às volta com chá e relva de jardim, uma espécie de aristocrata convivendo com poetas ditos marginais, artistas de charme vagabundo como Chacal e Charles.
Você mantém, hoje, essa imagem da poeta?
HBH: Mantenho. É um pouco o que eu estava querendo te dizer. Agora, o que eu acho interessante é essa necessidade dela de ficar neste lugar, e não ir para outro, entendeu? Porque ela tinha uma diferença. Era uma inglesinha, aristocrática, diferente. Mas ela tinha um hábito, ela se pertencia àquilo, a ponto de não sair dali. Ela tinha uma convivência profunda com aquelas pessoas: viajava, namorava àquelas pessoas; era tudo muito ligado àquele grupo. Ao mesmo tempo ela, lá, marcava a sua diferença.
NG: Tem um depoimento seu muito bonito, para a Ana Claudia Coutinho, no qual você diz que a Ana não fazia acordos, mas pactos. A partir disso eu escrevi que no texto da poeta não existe meio termo: ou o leitor faz o pacto (segredo, irracional) que, segundo você, Ana cobra na leitura, na autoria e na tradução, ou o leitor vai para outra margem à procura de um texto que sugira um acordo – algo mais simbólico e prazeroso, no sentido barthesiano.
HBH: É verdade. Você tem que responder a esse pacto. Ele consiste em manter uma certa distância, um certo respeito por uma coisa não dita...
NG: Só de não-ditos ou de delicadezas se faz minha conversa, ela escreve.
HBH: É, o pacto era esse. O respeito em torno disso: você topa isso ou não. A compreensão como exercício da leitura.
NG: Isso não era verbalizado, claro...
HBH: Não. Isso é uma idéia de leitura. E na própria relação dela. Porque tinha sempre alguma coisa não dita...
NG: Acho que em algum lugar você diz também que o pacto mata...
HBH: Matou. Na tese você vai escrever sobre a visibilidade?
NG: Sim. Estou tentando montar umas estratégias do olhar na poética da Ana. A primeira estratégia seria inscrita através da imagem de um olhar rápido, tipo cometa, mas, às vezes, um olhar em eclipse. Uma segunda estratégia seria desenvolvida através de um olhar que é uma extensão maquínica; e uma outra constrói um olhar que parece abandonar a dúvida do cogito cartesiano em prol de uma visão imaginária, meio lacaniana, na qual o sujeito além de olhar é olhado. O que você acha disso?
HBH: Eu concordo plenamente. Esse olhar maquínico, vejo um pouco menos. Tem algo disso, mas ela pula para a terceira estratégia imediatamente. Mesmo que ela tenha essa coisa de... , me parece que ela se situa mais no terceiro olhar. Um olhar especular e bem mais presente nela. Que é o olhar que a matou. ...Porque ela via através do olhar do outro o tempo todo. Aí ela encenava o desejo do outro, ela negociava com isso. ...Omitia-se e encenava de novo e encenava... Por esse motivo ela não pára. É inesgotável. Por isso você queria largá-la e ela retornou à cena, porque ela continua encenando. É essa coisa especular: você não a pega porque ela é um reflexo dela. A coisa dela é muito em cima dessa estratégia, eu acho. Esse estar no mundo dela que não era apenas na literatura; era com as pessoas também. ...O não-dito está aí dentro, que é especular... A materialidade da Ana era uma coisa um pouco complicada de você pegar... E eu não consigo ver muita diferença entre esse olhar especular e o olhar em eclipse, porque eu acho que um olhar deságua no outro. ...Você tem sempre uma ambigüidade aí, nesse reflexo... Porque o espelho é prismático... Ana, me parece, encenava a subjetividade o tempo todo... Era uma forma prismática...
E isso para o tema da visibilidade que você escolheu é maravilhoso, porque realmente é uma forma de ver... Uma forma meio perversa, mas é uma forma... de muita visibilidade onde é tudo imagem; uma produção imagética inesgotável: a imagem dela que é a imagem da imagem dela, e assim vai... até cair no abismo, realmente. Porque é abissal este lugar no qual ela se mete. Eu acho que é isso que traz esse fascínio da Ana... Mesmo a temática da mulher é maravilhosa com a Ana, porque é uma encenação. ... Uma coisa feminina... Se você pegar, por exemplo, naquele momento tinha muito essa coisa da mulher, da sensibilidade feminina, da escrita feminina... Ela até escreve sobre isso... Pois é. Mas aí ela pega isso e não se deixa manifestar... Ela trabalha esse tema de forma espiralada. Que é essa coisa que você falou do olhar...
NG: Você acha que nesse olhar eu poderia incluir o imaginário?
HBH: Pode. ...Só dá nisso. Mas vamos voltar ao olhar maquínico, que eu não entendi muito. Por que você falou isso? Por causa de um certo registro? Eu vejo isso nos cartões postais...
NG: É. Os escritos nos cartões, as fotografias no final de Luvas de Pelica, esse olhar que está sempre de passagem...
HBH: Meio que registrando. ...Com grandes intermediações...
NG: Sim. E perdendo um trem... depois na janela de algum automóvel... Um olhar de passagem... Mas, estou querendo contrapor a esse olhar à idéia rápida de um cometa, para não ficar apenas nessa imagem nublada do eclipse... Acho que fazendo esse contraponto do cometa com o eclipse fica bacana...
HBH: Fica. Eu acho que esse último – o olhar especular – ele não pára, ele é muito móvel, próximo dessa imagem do cometa... Porque ele se refaz a cada minuto, você não fixa... Mas o olhar intermediário... quando você fala maquínico, eu penso em carta.
NG: Também. É interessante essa idéia...
HBH: ...o outro suporta, o imaginado... como se fosse uma câmera... Eu penso em cartas, e carta para ela é um gênero importantíssimo. Ela tem uma frase colocada na orelha do livro Correspondência Incompleta (1999) que eu publiquei, na qual ela diz que cartas e biografias são mais arrepiantes que a literatura.
NG: E tem também os Escritos no Rio (1993) no qual ela fala que carta a gente escreve para mobilizar alguém...
HBH: ...E agora eu estou publicando as Cartas do Caio Fernando Abreu que o Italo Moriconi organizou. Caio é o masculino da Ana...
NG: Caio F. é também a primeira contracapa de A teus pés (1982).
HBH: Exatamente.
Notas
[1] HOLLANDA, Heloísa B. de. Revista Relâmpago. 2000. p. 43.
[2] CESAR, Ana C. Correspondência Incompleta. 1999. p. 88.