sábado, 7 de novembro de 2009

A exatidão na nuança



...esta ‘angústia da exatidão’ está
no processo da minha escrita; ...às vezes,
ela (a angústia ou a exatidão?) se aproxima do
pretendido, e em outras, se afasta.


Armando Freitas Filho




Uma overdose de poesia

Em Novembro de 1981, o ensaísta José Guilherme Merquior concedeu uma polêmica entrevista para Marcos de Sá Corrêa, da Revista Veja, na qual dizia que, no Brasil, fala-se, escreve-se e pensa-se mal. Indagado acerca de quem escreve bem no país, o combativo crítico literário referiu-se a três escritores: o memorialista Pedro Nava e os poetas Armando Freitas Filho e Mauro Gama. Desde então, minha curiosidade em torno da poética de Armando foi crescente.

Nosso primeiro encontro aconteceu em 1996. Eu havia vindo de Natal para o Rio de Janeiro, a fim de colher material – teses, vídeos, resenhas, entrevistas – para a dissertação de mestrado que escrevia, na época, acerca do narrador pós-moderno nas micro-narrativas poéticas e na poesia de Ana C. Como curador da obra da poeta carioca, Armando tornou-se imprescindível. Frente à minha curiosidade, ele muniu-me de informações e cedeu textos da maior importância para a pesquisa que eu desenvolvia naquela época, e que resultou na escritura de Luvas na Marginália.

Numa outra visita, ganhei do poeta um exemplar do seu livro Cabeça de Homem (1991) com uma dedicatória marcante: Para Nonato ter uma overdose de minha poesia. Subi a serra de Teresópolis a fim de ler o texto, e lá pela página 57 (o livro possui 113) eu estava tomado pelo efeito daquela poética. O resultado está hoje registrado nas muitas páginas rabiscadas durante a leitura do Cabeça..., e numa tentativa de simulacro criado a partir do poema “Overnight” [1] que não vale a pena ser aqui transcrita. Leiamos, ao invés da minha simulação, uma mostra da forte dose poética do referido texto de Armando:


Atravesso de branco a noite inteira:
do A de Armando ao Z de Ezequiel
...
vestindo linho, panamá e lua
impecável
batendo e esticando
nos permanentes espelhos
fileiras de luz e carreiras
até o infinito.

24.Out.88


Do poeta eu conhecera antes o livro 3 X 4 (1985). Depois, li De Cor (1988), Números Anônimos (1994), Dois dias de verão e Duplo cego (1987) que resenhei para um jornal natalense em 1998. Durante o curso do doutorado, aproximei-me dos outros textos do poeta, incluindo-se aí o seu último lançamento: Fio Terra (2000). Quando pensei no livro Seis Propostas Para o Próximo Milênio, de Italo Calvino, como forma para esta tese, o nome de Armando como poeta representante da proposta da exatidão foi um dos primeiros a ser definidos.

Se durante algum tempo eu questionara o autor a ser lido em consonância com cada uma das propostas de Calvino, no caso da exatidão eu nunca tive dúvidas: a letra de Armando continha o que autor ítalo-cubano delineava como uma de suas linhas proponentes para um texto que se quer exato: o esforço das palavras para dar conta, com a maior precisão possível, do aspecto sensível das coisas [2]. Meu insight acerca dessa precisão, no texto de Armando, veio principalmente através de Duplo Cego, embora o exercício de exatidão em sua poética seja algo bastante evidente na maioria dos textos que a compõem.


A seguir, trataremos do exercício da exatidão que o poeta vem tecendo em sua obra, ao longo dos últimos 40 anos de produção literária, além do seu intertexto com autores mais jovens. Embora o poeta considere equivocada a minha sugestão da superfície como espaço de possibilidades para a inscrição, na contemporaneidade, do que se quer exato, vale a pena conferir suas propostas, seus argumentos. Dentre outros, o que ele sugere de nuança como pressuposto a partir do qual a exatidão se inscreve.

Nonato GurgelÉ bastante evidente o exercício da precisão, da busca de exatidão na grande maioria dos seus textos. Dentre os 12 títulos que comporão suas Obras Completas a serem lançadas em 2003 – quando você intera 40 anos de produção poética –, qual deles você destacaria como mais representativo da proposta de exatidão inscrita por Italo Calvino em Seis Propostas Para o Próximo Milênio? Quais autores o influenciaram no exercício dessa exatidão?

Armando Freitas Filho – Para começar, em nome da exatidão, a publicação, do ano que vem, cujo título é: Máquina de escreverpoesia reunida e revista, compreende 1 livro inédito, Numeral, nominal e 12 editados, de Palavra (1963) a Fio terra (2000). Não posso chamar de completa esta reunião porque muitos poemas escritos no correr desses quarenta anos, por uma e outra razão, não entraram nas compilações citadas. Penso até, futuramente, fazer um livro, sempre em aberto, digamos assim, que recolherá esses poemas rejeitados, na primeira hora. Poderá até se chamar Poesia avulsa ou Geral, quem sabe?

Na verdade, não posso destacar, sempre em nome da exatidão, nenhum título meu que representasse melhor esta pretensa capacidade. Creio que a resposta melhor está neste trecho do depoimento, que aparece no folheto que acompanha meu CD (2001) feito pelo Instituto Moreira Salles: (...) há sempre alguma coisa que falta ou sobra. O interstício e o excesso são a diferença imprecisa entre intenção e expressão. Procuro não contemporizar com a carência e a abundância, mas jamais consigo preencher ou desbastar de maneira correta. O que quero dizer ao transcrever essas linhas é que esta (vamos chamar assim), “angústia da exatidão” está no processo da minha escrita; que, às vezes, ela (a angústia ou a exatidão?) se aproxima do pretendido, e em outras, se afasta. Não está num livro: está nos livros. Mas pensando melhor: acho que a palavra “jamais” que aparece acima é inexata. Em muitos poemas alcanço até mais do que supunha, isto é: a exatidão (ou a angústia) é mais “exata”, até mesmo do que o pensamento almejou. Portanto, o que aparece como uma “condenação” perpétua, daquele que escreve, ao insatisfatório, é falsa. Não sou, sempre, vitimizado, pelo meu poema, seguramente.

Enumerar nomes dos autores que me influenciaram: Drummond, Cabral, Bandeira, Gullar, etc., me parece insuficiente. Prefiro entender este pendor para a exatidão, que você vê em mim, como uma tendência natural da minha personalidade obsessiva. Antes da minha literatura ela estava em minha vida. Mas não custa dizer que, ao contrário do esperado num suposto amante da exatidão, prefiro autores que privilegiam o claro/escuro àqueles que optam por uma clareza indubitável. Exemplo: Carlos Drummond e João Cabral. Estou com o primeiro, sempre estive, e não só pela qualidade, mas pela razão que a sua variação de luz é uma lição mais produtiva e desafiadora, para poetas, se não for para todos os leitores, pois enseja releituras que nunca “batem”, da mesma forma. CDA, “vive” o poema que é um problema, com “cem soluções à vista” ou “sem soluções à vista”. Cabral, tematiza, quer “matar” a charada, grosso modo. Isto não quer dizer que prescindo de Cabral ou congêneres. Por favor, nada de Fla x Flus, preciso de todos. Apenas, enunciei uma afinidade. A conclusão, enfim, pode ser esta: vai ver que minha aludida “exatidão” vem mais da observação da nuança que é a forma provisória e possível do que se quer exato. Nem é preciso dizer que esta disposição, por si só, não me faz, sequer, ser um poeta razoável.


NGUma das peculiaridades marcantes de sua produção é o intertexto – o diálogo entre autores e textos – que você mantém ao longo de toda a sua vida, esta Longa Vida (1982) – com as gerações mais jovens. Penso que nenhum poeta brasileiro, de sua geração, teceu com tamanha ênfase esse diálogo. De que se alimenta esse intertexto? O que o mantém vivo após 40 anos de poesia?

AFF – Foi com Longa Vida, onde reuni poemas feitos entre os anos de 1979 e 1981, que procurei dialogar, não só na literatura, mas também na vida, com os poetas mais moços, que estavam chegando ao livro. A principal “agente” dessa aproximação foi a Ana. Antes os diálogos eram, predominantemente intertextuais, literários, com os poetas que me antecederam. Aprendi com Ana Cristina, na prática, sem nenhuma doutrinação, que era mais rico transar direto, com seu competidor e cúmplice, do que com os mestres já encastelados. Era não só mais rico, era à vera, era mais... perigoso. Afinal, quem não arrisca, não petisca, e se existe muita vampiragem na vida e na arte, nada melhor do que sangue jovem e fresco, ou mais exatamente: diferente.

Passados 20 anos, continuo curioso, faminto, procurando do bom e do melhor, certo que o alimento magnífico é este. Mesmo sabendo que é ele, no fim das contas, que vai me matar ou substituir, pois estamos falando, metaforicamente, de uma transfusão. De repente, ainda cavalgando a metáfora, ou sendo cavalgado por ela, já não há uma gota de sangue seu, e, à la Rimbaud (mas sem “vidência”, pão, pão, queijo, queijo), você é um outro, que chegou para ficar.

NG – Retornarei aqui a uma instigante pergunta feita por seu tradutor Adolfo Montejo Navas, na entrevista que você concedeu, em 2000, para a Revista Cult nº 40.

Ao traçar uma espécie de linha evolutiva (ou seria sincrônica?) da poesia feita no Brasil, Adolfo diz que havia, nos anos 50 um certo medo da subjetividade, nos 60, da tradição, nos 70, da forma, nos 80, do próprio tempo. Para a resposta ao “medo” que “estaria na moda agora”, você reconhece haver saído do “âmbito poético”, alegando ser impossível não sair da página e não cair na pauta violenta que a cidade impõe....
.
Gostaria de propor-lhe um retorno à página, no intuito de prolongar a questão. Na entrevista concedida para o nº 01 de .doc - Caos em revista, 1999, você cita, para o poeta André Luís, um verso de Números Anônimos (1994): falo com coração e técnica. Isso remete ao prefácio de Ana C. para Longa Vida (1982), no qual a poeta diz haver, em seu texto, uma tensão entre a mesa burocrática e o impulso incendiário...

Retomando à primeira parte desta pergunta: o “medo” que estaria na “moda”, neste início de milênio, não seria justamente o “medo” do poeta de falar com o “coração”, de vivificar seu “impulso incendiário”, sua “fissura”? Ou haveria um outro medo?

AFF – Posso falar por mim, usando palavras de Maria Rita Kehl, na sua resenha, ”O desejo aflito”, sobre Cabeça de homem (1991): A poesia de Armando incita uma velocidade por dentro e por fora do corpo, correndo atrás de quê? (...) Claro, essa velocidade conhece a força do que vem vindo atrás dela, implacável. Escrever, como em Montaigne, é escrever contra a morte – ou não é nada. Meu medo, portanto, é este, e está sempre na moda. Antes e depois deste poema de longa vida: Mesmo que a vida dure/apenas uma hora/eu como/um pedaço de Plus Vita;/mesmo que dure/menos/eu bebo/até a última gota/meu copo de Longa vida;/mesmo que o coração/possa morrer/em 2000 – CCPL/ cuidado coração parando lentamente/ou no próximo segundo/dentro do peito/longa/continua a ser –sempre -/a vida/sob telhados/e espaçonaves de Eternit. Se o medo de sempre, existencial, coincide com o medo da hora, circunstancial, como é o caso, tanto pior: não há ilusão possível. Menos valia terá o coração, o impulso, a fissura do poeta, ou de quem quer que seja. Todos estarão alvejados.

NGHá em Fio Terra (2000) alguns versos que parecem inscrever uma poética que abdica da noção de profundidade, do mergulho abissal, em prol de uma inscrição da pele, da superfície, sem ser superficial: "Se alimenta até da nudez/ de qualquer superfície" (p. 08). "Ser na superfície, ao nível/ do mar. Não vôo nem mergulho" (p. 10). Estaria a exatidão relacionada ao plano da pele, da superfície?

AFF – A meu ver, a leitura e a ilação, são equivocadas. Fio terra se inicia e se encerra no “subterrâneo”. Os momentos de “superfície”, são minoritários, funcionam como respiradouros, a custo conseguidos. O próprio título indica essa predominância. A ordem natural das coisas, enfim, não autoriza que se privilegie a exceção, em vez da regra. Feita esta correção quanto ao “clima” que predomina no texto, mesmo que fosse o contrário, como a sua pergunta induz, não compreendo porque a “superfície” poderia ser o suporte, ter um valor constitutivo, estrutural, formador da exatidão, que você me atribui.

NGVocê continua vivendo a síndrome do último dia, como declarou para Camila Claro, em 2001, na Revista Submarino? O que caracteriza a vivência dessa síndrome? Ela aciona sua produção literária?

AFF - A resposta imediatamente anterior, meio que responde esta pergunta. Só posso dizer que a síndrome do último dia é inerente à condição humana, e que não aciona minha produção literária, muito pelo contrário, a abrevia. Não poderia ser diferente, pois sabemos que cada dia é menos um dia, que não se pode adiar esta constatação (pelo menos, quando se chega a uma certa idade), que não há saída viva da vida, que indo ou vindo, a direção é única:/parafuso, para frente, para o fim.



NOTAS

[1] FREITAS FILHO, Armando. Cabeça de Homem. 1991. p. 57.
[2] CALVINO, Italo. Seis Propostas Para o Próximo Milênio. 2001. p. 88.

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