segunda-feira, 6 de julho de 2009

Aroma dá Letra











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Prefácio do livro Folhas de Alecrim, Romilson Belo, Natal: A. S. Livros, 2004



I


Alguns narram sucumbidos pelo cheiro do sovaco divino. Para outros, de Deus não restou sequer as pegadas: vingam esses nas peles que apelam para os verbos enferrujados da separação, ou transformam- se nos típicos interlocutores de textos como “Billy”. Outros fisgam, com afeto, o fonema que o corpo colhe na movência nossa de cada dia. É assim a maioria dos narradores de Folhas de Alecrim e o seu olfato aceso para histórias breves. Por isso eles devoram os lugares e os seres que os atravessam. Saboreiam do corpo suas margens – o sovaco, o ouvido, o pé.... Utilizam-se de sangue, suor e açúcar na culinária dos desejos. Dependendo das narinas, são também terapêuticos – esses narradores com cheirinho de erva que tintura a letra e ajuda o sangue a circular.


I I

O cheiro de alecrim que emana dessas folhas é inscrito pelas narinas de quem provou os condimentos da terra; contatou as suas raízes. Daí a pulsação de nervos e nervuras neste caldeirão de palavras e folhas. Sabe quem escreve ou cozinha, não ser amena a luta com as palavras nem tarefa fácil o preparo das folhas. Ao contrário do alecrim dourado da canção pastoril [1], estas Folhas de Alecrim não nasceram no campo sem ser semeadas: elas foram cultivadas durante mais de uma década em gavetas e arquivos de falas desbastadas e formas inacabadas. Pequenas mudas. Pequenas epifanias. Delas brotam frutos, estas Folhas.... Seu autor sabe que do “esplendor da queda” [2], da fragilidade fonética e da escuridão dos animais, podem vingar “orquídeas, crisântemos, amarílis” (“Homens em preto urubu”).


I I I

Pensando na ação de estetizar como uma tradução afetiva de cheiros, imagens e sons (de folhas, corpos, animais...), leio Folhas de Alecrim como um texto que estetiza, dentre outros flashes, o apito do trem na infância escura, os seres que viajam no trem e as águas claras do rio das Quintas. Desta Folhas..., colhemos as figurações do silêncio que se arma na maturidade dos músculos e na concretude dos lajedos; vislumbramos a piaçava da velhice que limpa o chão espantando a morte. Porque estimula a memória, o aroma dessas Folhas... desejantes é também terapêutico. Romilson aprendeu com Ana C: “é na sintaxe que pinta o desejo” – esse combustível feroz. Nessa relação sintática e desejante, entre palavras e corpos, os cheiros acionam - “com o apóio de Deus” - o pulso do senhor leitor.


I V

Nestas Folhas..., o narrador vê a si por meio do olhar alheio: “Permito que pranchas de surfistas desavisados deslizem no meu peito, dilacerando meu olhar”. Dilacerado pela visibilidade do outro, aprendiz do olhar eqüino e distanciado da visão olímpica, o narrador sabe haver – bem ali na frente – uma “cancela” abrindo para um lábio que beija a libido no sonho do rato. Nessa travessia psíquica e literária, as pulsões de Freud e os arquétipos de Jung passeiam de mãos dadas. Eros e Thanatos seguem pelas “fendas e colunas de ferro” e aspiram Folhas... Delas emanam fonemas afetivos como estes: “Cada planta, uma ferida sarada, uma febre abafada, um estalecido reprimido”. Parodiando o próprio Belo: cada folha, um aroma resgatado, uma fala dita, uma história liberada.


[1] Lembrada pela cantora Jussara Silveira, a quem agradeço.
[2] MACEDO, Iracema. “Dandara” in Lance de Dardos. Rio de Janeiro: Edições Estúdio 53, 2000.