quarta-feira, 15 de julho de 2009

Os abismos da pele e as superfícies da alma

Uma versão deste texto foi publicada nO Jornal de Hoje, Natal, 05 de Fevereiro de 1999





os poetas Celso da Silveira e Eli Celso


INCIDÊNCIA
Para Eli Celso

Um sol de sal
tão vertical
sobre meus dias.
...

Myriam Coeli



Nenhum poeta potiguar publicou tanto em 1998 quanto Eli Celso. Primeiro ele lançou Ensaios Minimalescos, pela Boágua Editora, batizando de João Antonio Cajado Botelho seu irônico e bem humorado "quase heterônimo". A "ironia amarga" deste João, segundo o próprio Eli, estaria inscrita no último guru de uma linha cuja sucessão inclui autores como Hume e Cioran, dentre outros.

Em seguida, Eli Celso lançou Não & círculo - texto incluído no volume Ceia das Cinzas, um livro publicado com os poetas Iracema Macedo e André Vesne. E, por fim, veio a público Reminiscências do Tártaro, texto escrito na década de 80, incluído num livro em parceria com Celso Boaventura Jr e suas Lamentações.

A esses três títulos lançados em 1998, some-se o texto “Labiríntica ou cidade delenda!” - belíssimo escrito em prosa dedicado a seu pai, o escritor Celso da Silveira (vide vídeo), e publicado em Range Rede (Revista de Literatura, Rio de Janeiro, nº 3, 1998). Nesta revista, o poeta potiguar integra um elenco de peso, onde destacam-se autores como Benedito Nunes, Merquior e Dario Restrepo, neste número especialmente dedicado a Jorge Luís Borges.

Além dos três títulos acima mencionados - Ensaios Minimalescos, Não & Círculo e Reminiscências do Tártaro -, a bibliografia de Eli Celso ostenta outra tríade de publicações: Elogio das Figuras Borradas (1991), Vale Feliz (1991) e Rua do Coração Perdido (1995). Este último livro, incluído na coletânea Gravuras foi, juntamente com Vale Feliz, lançado com a participação de Iracema Macedo e André Vesne (o poeta Celso Boaventura também participa da coletânea Vale Feliz). Para 1999, Eli planeja iniciar a escritura de sua tese de doutorado em Literatura Comparada (UFRJ), além da publicação de Driftings, Rotations e Translations - livro com poemas em inglês, a ser lançado pela editora Boágua.


No horizonte da poesia



Natal
Sem aura nem ideologia, a poética de Eli Celso não distingue temas nobres ou menores. Diz o poeta: Estou sempre me colocando fora das distinções maniqueístas de sagrado x profano. As coisas são o que são, dê-se o nome que se quiser a elas. E como o algo que são, não deveriam ser discernidas. Esse trânsito indiscernível pelo universo da palavra permite uma pluralidade de leituras. Dos aspectos da virtualidade às minúncias concernentes ao universo das pulgas; do martírio colorido de Frida Khalo aos mares de Jasão; das reminiscências da bisavó Dondon às prostitutas de Maxaranguape; tudo pode ser estetizado no poema deste exímio leitor de Murilo Mendes e Myriam Coeli - mãe do poeta, e autora dos seguintes livros de poesia publicados na década de 1980, em Natal: Vivência Sobre Vivência, Cantiga de Amigo e Inventário.

Herdeiro dessa "vivência" poética, cuja "incidência" solar verticaliza o sal, a cal, o vento, o sangue, a sombra, Eli produz uma "letra" cuja estetização parece ser mediada por uma linguagem que sonoriza os abismos da pele e as superfícies da alma. A produção dessa linguagem alegórica diz muito das formas do deserto e das paisagens eletrônicas habitadas por imagens velozes. De olho nessas figurações mutantes, o poeta anuncia que algo se prepara na Rua do Coração Perdido:

E queria dizer que algo se prepara,
que a metamorfose
ruge e fia,
que a metamorfose
lã e zela.
Faz cera e cala.
Asa.
Zera.


O poema de Eli é construído sem catecismo teórico nem bula vanguardista. Nele, podemos ler uma intensa intimidade do poeta com o signo verbal e suas nuanças. Sua poética ostenta um visível apreço pelo trabalho com a sintaxe, além da presença dos procedimentos da re-leitura da tradição literária, da reminiscência e da ficcionalização da memória.


Esta poética sugere um leitor que, a exemplo de Borges, recria a existência, confundindo os limites entre a memória emocional de quem lê e as figurações do memorial produzido pelo contexto sócio-cultural. O poeta transforma em arte esse manancial - as memórias, as leituras e as cidades. Para isso, ele cataloga potências e patologias que confundem a memória, e reconhece uma imagética de cidades recentes que sucumbem às cidades da memória. Essa estetização memorialística inscreve-se em textos como “Primeira visão”, de Reminiscências do Tártaro:


...na jornada
Das minhas dúvidas, que cruzam
Por pontes
Repletas de memórias



Izmir


Também o eu poético de “O globo líquido”, do livro Não & círculo (1998), aviva o fio memorial. Esse fio parece perpassar toda a poética de Eli Celso, erguendo-se do pó memorialístico à forma estética, através da poesia: a memória se arranja/ em alvéolos de barro. Outra característica marcante desta poética é a pluralidade de eus estetizados. Eus que atuam, de formas múltiplas e alternadas, pelos abismos da pele e nas superfícies da alma. São eus que celebram a alegria da carne letrada e a melancolia dos sorrisos no motim de homens de gesso.

Nos livros do poeta percebe-se estes eus que, descentralizados, evidenciam o outro na busca de inscrição da diferença. Esses eus profundos e de superfícies parecem abrir mão da internalizada postura dos românticos e dos que, intitulando-se “modernos”, sequer enxergam aquele outro interno, seu duplo, que o habita. A poética de Eli celebra a mutação da alteridade, poetizando seus motivos mais inusitados. Exemplo disso são o eu poético de “Sombras, ó Tu...” com sua audível tonalidade religiosa, o "narrador" rebelde e bem humorado de “O Clitóris da História”, o eu lírico e amoroso de “Uma estrada de coisas mortas”, e a dicção filosófica da voz narrante de “Perpendicular”, como podemos ler nessses textos que compõem o volume Não & círculo.

Estetizando vários eus (diferentemente daquele autor cujo texto repete ad infinutum uma mesma voz), Eli fabrica um polifônico horizonte ficcional onde o fingimento literário é urdido de forma a recriar várias personas. O leitor ama essa polifonia que possibilita, a cada poema, uma outra voz. Ela torna-se viável porque o poeta, sedimentado num catatau de leituras, lança mão da própria literatura como instrumento de criação. Mestre em Tecnologia Educacional, com Licenciaturas em Matemática e Física, e com trânsito pela Medicina, o poeta domina um bom arquivo de formas, e ordena um utópico espaço existencial em meio ao caos que nos circunda.


O poema a seguir, do livro Reminiscências do Tártaro, deixa entrever alguns ângulos polifôncios deste horizonte poético. Nele, a matéria memorialística, a forma mítica e a luz apolínea dialogam inscrevendo o contexto estético e existencial de quem escreve e lê neste final de milênio.

Após peregrinar
Pela matéria inerme,
Nasci do útero de Leto.
E no Tártaro fiquei
Porque não sei.
Empurrei pedras, fiz ofício
De vazio, cuspi meus dedos
Desabados em conflitos
De meus fantasmas.
Todos os dias o sol me engolia.
Todos os dias se arredondavam mais as rochas.
Todos os dias eu repetia
O que nunca fazia igual.
Me fazia desigual, todos os dias.



Em Informação da Literatura Potiguar, o ensaísta e professor Tarcísio Gurgel refere-se ao poeta Eli Celso da seguinte maneira: "Bastante culto, utiliza-se anarquicamente de sua formação filosófica para chegar ao osso da indagação poética. Além disto, usa com habilidade a ironia para demonstrar como encara as alternativas de jogar o jogo da vida numa sociedade nada lírica."