quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Ficção Contemporânea

Texto publicado no Diário de Natal, Natal-RN, 2004



















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domingo, 25 de outubro de 2009

Feito de Silêncio e Som





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Texto apresentado na Jornada de Ciência da Literatura da UFRJ, Rio de Janeiro, Out. de 1999



Um homem é um homem mais pelas coisas que cala do que pelas que diz.

Camus, O mito de Sísifo

...pronunciar o nome é sinal de saúde, sinal de que a gente aceitou ser do jeito que é, mortal, vulnerável... sinal de que estamos dispostos... a lutar por nossas vidas.

Susan Sontag, Assim vivemos agora



A leitura das primeiras páginas de O Estrangeiro (1942) - 1º romance de Albert Camus - remete-me a um inusitado objeto de comparação: o texto de Graciliano Ramos. Não que haja relações, por exemplo, entre procedimentos literários ou núcleos temáticos desenvolvidos pelos dois autores. Nisso não vejo pontos em comum, mas diferenças. Já se pensarmos em narradores atormentados e suas vidas “medíocres”, e no sentimento de revolta que pontua suas existências, podemos ver aí alguma semelhança entre Graciliano e Camus; embora esse não seja o tema dessa escritura. O elemento através do qual cheguei à comparação entre ambos os autores é a linguagem.

Elaborada a partir de um plano que parece não ultrapassar a referencialidade, a linguagem de Camus lembra um canto a palo seco, algo como a "retórica do seco" de Graciliano; embora eu considere a linguagem deste mais ornamentada, mais trabalhada literariamente. Principalmente os textos de São Bernardo (1934), Angústia (1936) e Vidas Secas (1938) me parecem mais próximos desse canto a palo seco, dessa "retórica", dessa secura negativa que também leio em romances como A Peste (1947) e A Queda (1956).

Nestes textos, o que me parece aproximar Graciliano e Camus são alguns procedimentos como:
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- a escolha do vocábulo certo - enxuto, sem muita adjetivação
- a sintaxe seca, elaborada em planos quase lineares
- o ritmo preciso das falas
- a exatidão formal dos diálogos
- e um lirismo que parece querer vir à tona, mas permanece latente na estrutura narrativa.
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Esses são alguns dos elementos que compõem suas linguagens de secura e solidão. Mesmo a anedota sobre Graciliano poderia referir-se a Camus, e o seu sentido continuaria perfeito. Conta-se que o autor alagoano dizia não utilizar-se de exclamações e alguns outros sinais gráficos de pontuação - em seus textos -, por não querer parecer bobo nem espantado.

Minha leitura de O estrangeiro - texto publicado durante a 2ª guerra - não dá conta de muitas exclamações ou sinais outros que demonstrem espanto ou admiração... A revolta e a indiferença sinalizadas no romance camesiano encaminham o leitor por um roteiro contido, uma fala objetiva, como as frases curtas anunciadas no primeiro parágrafo do texto (p. 09):

Hoje, mamãe morreu. Ou talvez, ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: “Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames”. Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem.

Esta concisão e esse sentido de objetividade textual são características marcantes de uma modernidade iniciada no final do século passado. Aponta, por exemplo, para a influência que o jornal exerceu sobre gêneros como o romance. A influência dessa escrita e a aproximação empreendida entre Camus e Graciliano - através da "retórica do seco" - foi-me esclarecida por Roland Barthes (contemporâneo de Camus) em O grua zero da escritura (1953).

No texto “A escritura e o silêncio”, Barthes trata das possibilidades de criação em relação à linguagem literária. Segundo ele, ao criar o seu texto, o autor tanto pode optar pela elaboração de um estilo que enriqueça a antiga linguagem (utilizada pela tradição) ou criar um escritura branca, livre de ordens lingüísticas. Essa escritura - batizada por Barthes de jornalística, apesar dele fazer ressalvas a essa cognominação - utiliza-se de uma espécie de língua básica, distanciada ...da linguagem literária propriamente dita. Sobre isso afirma o autor (p. 92):

Essa fala transparente, inaugurada por “O estrangeiro” de Camus, realiza um estilo da ausência que é quase uma ausência ideal de estilo; a escritura se reduz então a uma espécie de modo negativo no qual os caracteres sociais ou míticos de uma linguagem são abolidos em benefício de um estado neutro e inerte da forma...

Esse modo negativo ressaltado por Barthes é assumido pelo próprio Camus (1989: 12). Ao referir-se às formas de concepção de sua obra, o autor destaca 3 categorias nas quais situa seus textos. A última categoria teria o amor como tema, mas foi apenas entrevista; a 2ª centrou-se em formas positivas, e sobre a 1ª categoria Camus assim referiu-se:

No início eu queria exprimir a negação. Em três formas: romanesca - foi “O Estrangeiro”; dramática - “Calígula, o equívoco”; ideológica - “O Mito de Sísifo”...

Segundo Barthes, essa escritura neutra e negativa afirma a instrumentalidade - condição primeira da arte clássica. Apesar dessa condição "instrumental", é imperativo ressaltar que, nesse caso, o instrumento formal não serve a uma ideologia; confirma-se como um modo de existir de um silêncio. Perde voluntariamente qualquer recurso à elegância ou à ornamentação.

Essa perda de ornamento literário, numa escritura criada a partir de uma forma que considera as relações entre silêncio e linguagem, é notável já na primeira parte de O Estrangeiro. Duas imagens refletem isso. Durante o velório da mãe de Mercosult, os diálogos são secos, bruscos. Iniciam, por vezes, calcados na negação. Indagado pelo porteiro se deseja ver no caixão o corpo da sua mãe, o narrador responde um sonoro “não”. Ele não imagina o preço a ser pago por essa negativa.

Outra vez indagado, o narrador responde ao porteiro “não” saber o motivo pelo qual não deseja olhar pela última vez o rosto materno (p. 12). Mais adiante a voz que narra interrompe a fala do mesmo porteiro, bradando “Não, não...”... Mesmo que esta negação sirva para avalizar a continuidade de seu discurso. Este discurso será, logo adiante, novamente interrompido por outra negação, ao expressar o narrador sua falta de desejo: ele não estava com fome (p. 14).

Essa discurso da negação (que se vale dessa estratégia até para afirmar, como no diálogo com o porteiro) dá conta do silêncio que o sedimenta, e ratifica o discurso teórico de Roland Barthes acerca da linguagem inaugurada por Camus. É na alternância lenta do plano silencioso e dos diálogos curtos, pouca fala, que Camus constrói seu texto. As primeiras páginas dão conta desse silêncio, às vezes luzidio, por vezes pesado e meio obscuro. Ouçamos:

Respondi “sim” para não ter de falar mais (p.10).

-Imagino que deseje ver sua mãe?
Levantei-me sem nada dizer...
(p. 11)

...e deslizavam em silêncio, na luz que cegava. Sentaram-se sem que uma só cadeira rangesse
(p. 15).

Embora levando-se em conta o contexto inicial do romance - o narrador no velório materno -, esse discurso da negação e da revolta, pontuado por pouca expressão verbal e vários momentos de silêncio, prossegue por todo o texto.

Essa escritura que reflete o neutro, o negativo, o ausente e o silencioso, como características do seu estilo, nos faz pensar no ensaio “O narrador” (1936) de Walter Benjamin, e na constatação de que perdemos mais uma faculdade calcada na oralidade: a faculdade de intercambiar experiências. No referido ensaio, o autor alemão atenta para o baixo nível do texto do jornal e para o mutismo característico do homem do pós-guerra. Esse mutismo, esse silêncio moderno está associado à vivência radical experienciada pela desmoralização que é a guerra.. Diz Benjamin (1996: 198):

No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável.

Camus parece captar esse clima de combate que exclui a experiência repassada de pessoa a pessoa, e estetiza o campo de batalha no cenário da própria vida cotidiana e no texto escrito. Sua narrativa engendra a negatividade do silêncio como senha que instaura a modernidade e suas linguagens sem elegância ou ornamentação (Longe vai o tempo no qual um autor brasileiro dizia ser a literatura "o sorriso da sociedade").

Essa falta de ornamento, a ausência de uma linguagem carregada de signos (Paund) parece refletir a própria secura da existência e do discurso de Meursault - o narrador camesiano. Esse reflexo evidencia um universo marcado por contradições como o exercício da mudez e a necessidade da fala. Ilumina uma trajetória de indiferença e contenção que se concretiza na colérica explosão purificadora do final. Essa ambigüidade de uma existência - silenciosa e sonora - vivenciada entre o abismo da mudez e a superfície da fala é uma senha. Através dela torna-se possível ouvir, na linguagem de O Estrangeiro, como o confronto entre o silêncio e a palavra possibilita a tessitura do discurso de quem narra.

BIBLIOGRAFIA


01 - BARTHES, Roland. “A escritura e o silêncio” e “A escritura e a fala” in O grau zero da escritura. Trad. Anne Arnichand e Álvaro Lorencini. São Paulo: Ed. Cultrix, 1971.
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02 - BENJAMIN, Walter. “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov.” in Magia e Técnica, Arte e política (Obras Escolhidas). Trad. Sergio Paulo Rouanet. 5ª ed. São Paulo: Ed. Brasilie2nse, 1993.
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03 - CAMUS, Albert. O Estrangeiro. Trad. Valerie Rumjanek. 8ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Record.
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04 - ______ O Mito de Sísifo. Trad. e apresentação: Mauro Gama. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1989.
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05 - ______ “América do Sul. Julho a Agosto de 1949” in Diário de Viagem. A visita de Camus ao Brasil. Trad. Valerie Rumjanek Chaves. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Record.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

O Mito de Lilith em Quincas Borba






















Texto apresentado na IV Semana de Humanidades da UFRN em 1995



Lilith desconfiou das excelências de um paraíso que lhe proibia a maçã, em troca do pomar inteiro. Não quis também suportar o incômodo de conviver com um Adão submisso e atemorizado. Preferiu desbravar sozinha uma terra selvagem e abundante.

Nélida Piñon, O Pão de Cada Dia


I N T R O D U Ç Ã O


A leitura que ora empreendemos de Quincas Borba, de Machado de Assis, destaca, principalmente, a personagem Sofia e sua relação com Rubião - ente por ela enfeitiçado, enlouquecido. Procuramos mostrar, através de um estudo centrado no mito de Lilith, as nuanças do comportamento e do discurso elaborados por Sofia, o desenvolvimento de sua porção lilitheana e as conseqüências desta evolução junto às pessoas com as quais ela se envolve. Principalmente a relação com Rubião - objeto de sua manipulação e feitiçaria, cujo preço é a morte.
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Nosso estudo consta de um prólogo e três partes. Naquele, caracterizamos as dualidades do mito de Lilith e sua evolução, tendo como parâmetro os estudos da psicologia. A primeira parte ressalta a importância da linguagem elaborada por Machado de Assis e sua inserção no contexto da modernidade teórica do romance. A segunda parte comprova o sabor lilitheano do texto de Machado, e o desenvolvimento da narrativa a partir do discurso relacionado àquele mito. A última parte focaliza Sofia, seu discurso, seu comportamento, alguns mitemas lilitheanos. Comparar o objeto da paixão de Rubião com Lilith é o que objetivamos aqui.


Deus salva, Lilith seduz


I


Mito, lenda ou história, Lilith é signo ambíguo; leitura plural. Criada antes de Eva (criação eminentemente divina), ela consegue envolver-se com o sacro e o profano, o prazer e a morte. Seu império é ambulante: vai do Éden ao deserto, passando pelos quartos noturnos onde repousam almas solitárias. Domina ela o sexual e o psíquico. É bruxa, deusa, demônio. Se Eva alivia, Lilith seduz. Ou mata.
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Noturna e lunar, Lilith é uma representante completa do humano, no que tange às suas dualidades, tensões, auteridades. Lilith encerra parte da tragédia humana. No seu festim nem as criancinhas ficam de fora... O gosto de Lilith pelo sangue e pela sedução atesta a sua representação do humano: o homem pós-queda (Gênesis, Cap. 3) parece ser o animal que mais aprecia contatar o sangüíneo no ato de seduzir.
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Outros pontos unem ao Lilith ao humano. A própria natureza conspira a seu favor. Terras, mares, ventos, noites e luas são alguns do componentes naturais utilizados por Lilith para atingir o ser humano. Perene "bruta flor do querer", Lilith dilata narinas, seduz a todos com seus olores. Para a ficcionista e professora Nélida Piñon, "Lilith é capaz de seduzir o próximo com a vertigem que decerto existe no outro lado do espelho da maçã."
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Na tradição oral, os homens, após serem atacados por Lilith, morriam ou permaneciam melancólicos (Bárbara Black). As mulheres, também contatadas por Lilith, utilizam a descoberta da mesma para desenvolverem seus potenciais femininos.


II
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Segundo Sicuteri, Lilith ressurge, na cultura contemporânea (após as alusões às bruxas da Idade Média), na Psicanálise de Freud, na Psicologia de Jung, na Filologia, na Astrologia e na Arte (principalmente no Surrealismo e Dadaísmo).
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A Psicologia tem demonstrado a necessidade vital, por parte da mulher, de desenvolver a porção lilitheana. O contato com a porção-Lilith ou sombra lilith, possibilita às mulheres vivenciarem experiências de formas mais completas e profundas. Assim sendo, elas atentam para um melhor discernimento dos signos psíquicos e culturais. Atentam também para os processos da criação, para a capacidade de percepção do outro (e, portanto, delas mesmas); além de vivenciarem a plenitude de seus instintos de liberdade e da sexualidade. Lilith libera vibrações, sentimentos, sensualidade.
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Esta possibilidade de liberação psíquica e social proporcionada por Lilith é uma das causas da ascendência e propagação do seu mito. A lenda, a história de Lilith apresentam-se de formas cada vez mais convincentes, fortalecidas, aprofundadas. Antes, havia "...Deus e uma mulher oficialmente desfalcada de história" (Nélida Piñon referindo-se a Sara - esposa de Abraão). Hoje, a luta das mulheres em busca de seus direitos resgata parte desse desfalque histórico. Na tentativa de refazer a sua história, a mulher busca em Lilith as condições de liberação, através do desenvolvimento das qualidades que Barbara Black enxerga nO Livro de Lilith:

. a consciência lunar
(alusões aos ciclos crescentes e minguantes, vida, morte e renascimento)
. a consciência corporal
(instinto e sexo)
. o conhecimento profético interior e a experiência acima da lei e da lógica
. a criação

Tratando desta última qualidade lilitheana, Barbara acrescenta a importância do resgate desta força criadora, antes restrita ao Deus pai e criador. Diz a psicóloga de formação jungiana: "Ela é a parte do Eu feminino com a qual a mulher moderna precisa voltar a se relacionar, a fim de não ser mais uma proscrita espiritual."
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De demônio do deserto a signo projetado na Lua (mito grego), Lilith avança. Possibilita, ao evoluir, um vasto potencial de leituras que se vão propagando nos campos da religião, arte, psicologia e história, dentre outros. Os estudos elaborados nestes diversos universos de saberes e a própria história da liberação feminina evidenciam que este mito foi construido e atestado pela mentalidade patriarcal. Trata-se, portanto, de uma questão acima de tudo eminentemente cultural.


P A R T E I

QUINCAS BORBA: UM ROMANCE MODERNO


Considerado pela crítica como segundo texto da fase realista de Machado de Assis, Quincas Borba é o 6º dentre os 9 romances escritos pelo melhor romancista do Brasil. Romântico, realista ou moderno? A obra de Machado transcende a questão dos estilos na literatura, rompe com os padrões do romance, patrocina a ruptura de gêneros literários. O autor elabora sua linguagem a partir da leitura da memória literária universal, retrabalhando os arquétipos.
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No romance Quincas Borba é notória a fina carpintaria estilística do autor, na qual as elipses destacam-se nos traços do folhetinesco e do inacabado (característica da Sátira Menipéia). Na construção de seu texto, Machado demonstra alguns procedimentos que atestam a modernidade de sua literatura:
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a) A construção formal do texto a partir de capítulos que podem apresentar duas linhas ou duas páginas. São capítulos indeterminados, irregulares, com relação à extensão. Inacabados, abertos, repetitivos algumas vezes, os capítulos remetem uns aos outros.
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b) A ruptura da linearidade na narrativa, possibilitando novas dimensões temporais e outras possibilidades de leituras.
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c) O corte, o fragmento, enquanto procedimentos artísticos.
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d) A evocação de leituras, reminiscências de outros textos. O uso de citações, provérbios, ditos populares, além do procedimento paródico. Este repertório artístico introduz o intertexto na obra. Em Quincas Borba, a intertextualidade perpassa toda a narrativa, possibilitando ao leitor a audição de outras vozes. Referências à Bíblia, Goethe, Homero, Camões, Cervantes, Rabelais, Shakespeare e Dante, dentre outros, são constantes. Principalmente ao autor de Hamlet, cujos versos são repetidos e parodiados no decorrer da narrativa.
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e) A criação e permanência do diálogo mantido com o leitor. O narrador conduz o leitor com toques humorados que corroem, cobram reflexão, exigindo deste um repertório interdisciplinar (principalmente literário) que inclui a história e a política, dentre outras áreas. A importância da instauração do diálogo do narrador com o leitor é notória, ao percebermos, já no terceiro capítulo, o apelo do primeiro: "Vem comigo, leitor..." A dupla, após atravessar alguns dos 201 capítulos, aparece dialogando no último.
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f) O processo da metalinguagem, como demonstra o seguinte exemplo: "Ainda não disse, - porque os capítulos atropelam-se debaixo da pena, - mas aqui está um para dizer que, por aquele tempo, as relações de Rubião tinham crescido em número." Aqui, como em outros trechos, o narrador interrompe a história para elucidar seu processo criativo.
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No texto "A Modernidade do Romance", João Alexandre Barbosa situa Machado de Assis na tradição de Stern e Flaubert, caracterizando-o como moderno. Diz o ensaísta: "Na esteira do que mais essencialmente caracteriza a modernidade em literatura, Machado de Assis realiza a difícil operação de articular metalinguagem e história, conseguindo, por isso mesmo, transformar a linguagem da realidade em realidade da linguagem."


P A R T E I I
QUINCAS BORBA: LEITURA COM SABOR LILITHEANO


A primeira manifestação real de uma leitura com sabor lilitheano ocorre de forma sutil em Quincas Borba. Sutil é também a linguagem e o comportamento da maioria dos personagens de Machado. Esse primeiro manifesto de sutileza e sedução acontece quando Sofia envia para Rubião uma cesta de morangos. Acompanha a cesta um bilhete intimando-o a almoçar em sua casa. Comentando o episódio, diz o narrador: "Via-se a comoção no rosto e nos dedos do mineiro. O texto feminino foi relido, e o nome da remetente fez nosso professor beijar o papel." Este é apenas um primeiro gesto gerador de uma seqüência de sentimentos, além de sutis palavras e detalhes que vão surgindo na medida em que Lilith/Sofia e a narrativa avançam.
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Sofia usa, através de gestos e palavras escolhidas, seu arsenal de sedução, a serviço do Eu feminino. Deixa Rubião completamente enfeitiçado. O corpo da mulher, seus movimentos, olhos e cabelos negros, são signos que contribuem para o desenvolvimento da magia. Além disso, Sofia possui a arte maviosa e delicada de captar os outros (Cap. CLXXXIX).
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Rubião sente-se maluco, grosseiro, desafiado pelos olhos freqüentes, depois fixos, os modos, os requebros, a distinção de Sofia. Ela possui o dom de "...lhe dizer coisas melodiosamente afáveis." Quanto mais avançamos na leitura, mais clara é a percepção de que a esposa de Palha, além de seduzir, desarticula a linguagem de seu sócio. Por vezes, anula a sua capacidade de dialogar. Quando, por exemplo, Dona Tonica interroga Rubião, ele responde mecanicamente as mesmas palavras que a senhora utilizara na indagação. Motivo: concentrado estava Rubião na contemplação de sua musa, cuja capacidade de absorvê-lo é total.
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Constatamos que nas situações de tensão ou dúvida, Sofia tem sempre o domínio da palavra. Sua palavra atua feito arma: "Rubião tremia, não achava as palavras; ela achava todas as que queria..." Sem a propriedade do verbo, nosso herói torna-se presa de um sentimento dilacerante e burguês (no que este possui de posse, no dizer de Roland Barthes): o ciúme. A flecha preta alcança Rubião, demonstrando o grau da capacidade de sedução alcançado por Sofia. Ela, como Lilith, faz vibrar o sanguíneo, deixando as pessoas em situações de perda, como evidencia o narrador: "O ciúme trouxe ao nosso amigo uma dentada de sangue."
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No capítulo CLXI, o narrador relata um sonho no qual Sofia e Carlos Maria trocam um beijo úmido de sangue, cheirando a sangue. Ao acordar, ela mente para o marido dizendo que sonhara com o mesmo. Carlos Maria, ocupado pelo desatino de Rubião, torna-se objeto do desejo de Sofia e sua prima Maria Benedita. Esta, é induzida por Sofia a tentar Rubião, mas ele, guiado pelos estados de espírito da mulher, vivencia seu martírio. Não consegue ver na pureza de Maria (Eva) o que somente Sofia (Lilith) nele desperta.
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O sentimento de dúvida impossibilita as ações do seduzido. Sofia, utilizando-se da fragilidade de Rubião, faz com que aumente nele a dúvida em relação ao causador do ciúme; as possibilidades de envolvimento entre Carlos Maria e o objeto de sua paixão. "E o espírito de Rubião pairava sobre o abismo. Ele, atormentado, pensa em estrangular o infame..." Mas o mineiro não consegue estrangular sequer a dúvida que o persegue...

Da série de danos que Sofia provoca em Rubião, surge sua "consciência partida em duas, ambas desorientadas." No dizer do narrador, "Rubião era ainda dois". Seu ritmo levava-o em "marcha para a lua", encarnando a figura de Napoleão, frente às paredes, discursando como se fosse o imperador francês. Rubião, com a consciência partida e sem discurso, perde a noção da realidade e a capacidade de articular sua linguagem própria. Perde principalmente a possilidade de entrar em consonância com o outro.
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Como demonstram os estudo teóricos, o outro é portador do desejo que é verificável nas relações lingüísticas, sociais, sexuais. Por ser diferente, o outro atenta, contesta, pode romper. Mas é sempre ele que nos dá a nossa dimensão identitária. Na interação com o outro deparo com o eu. O outro "desintegra e atualiza a minha presença" (Caetano Veloso).
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Isolado em seu delírio, o mineiro não consegue interação com a alteridade. Por esse motivo, sua comunicação se dá com os astros, as estrelas, independente da condição humana; tendo a imaginação como suporte. A perda de contato com o real atesta a loucura de Rubião. Sua insanidade é provocada pelo desenvolvimento da porção lilitheana de Sofia atuando sobre ele. Ela leva-o ao isolamento, à loucura, à pobreza material. Leva-o, por fim, à morte e que esta tem de mais solitário, humano, lilitheano. Tudo porque Lilith, além de seduzir, mata.


P A R T E I I I
SOFIA: SANGUE, SALIVA E SEDUÇÃO


A
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A importância de Sofia, no elenco de personagens machadianos, é tamanha a ponto de no prólogo da terceira edição de Quincas Borba haver a sugestão para uma futura outra obra, baseada especificamente na personagem.
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Como se não bastasse, a paixão de Rubião consta do último capítulo, penúltima linha do texto: "O Cruzeiro que a linda Sofia não quis citar, como lhe pedia Rubião, está assaz alto para discernir os risos e as lágrimas dos homens." Os pedidos e súplicas de Rubião não são atendidos por Sofia, mas, depois de enfeitiçá-lo e enlouquecê-lo, ela o conduz ao isolamento, à morte.
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Comparada a outras personagens da literatura, como Rita Baiana, Medéia ou Carmem, cujas mortes são explícitas e reconhecidas, Sofia denota um comportamento de sutilezas e artimanhas psicológicas, cuja tragicidade implícita aponta um suave traço lilitheano. Ou seria este traço menos carregado, a suavidade lilitheana de Sofia, suas sutilezas, uma marca mais acentuada da perversão da personagem, na medida em que ela disfarça? Seria Sofia uma Lilith light ?
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Importante ressaltar que em Quincas Borba nossa heroína jamais é culpabilizada pelos seus feitos. Somente a ordem natural rebela-se contra Sofia. As rosas, num diálogo de jardim, "riram-se a pétalas despregadas", ao vê-la encostada na janela: "E tu, requestada de outros, que demônio te leva a dar ouvidos a esse intruso da vida? Humilha-te, ó soberba criatura, porque és tu mesma a causa do teu mal." Ao final do diálogo, as rosas, referindo-se a Rubião, concluem: "Tu és má, Sofia, és injusta..."
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Sofia, ao contrário da maioria das personagens literárias encarnadas no mito de Lilith, não recebe acusação de culpa por parte do narrador ou de quaisquer outros personagens. A única testemunha concreta da sua indestrutibilidade maléfica, da sua sedução, da causa da morte do mineiro, é o leitor. Este, como percebemos na primeira parte deste trabalho, possui relevante papel na construção da narrativa. Seria esta relevância tão acentuada, a ponto de somente ele, o leitor, ter a compreensão total da narrativa?

B

O capítulo XXXV do romance descreve e ressalta os atributos corporais de Sofia. Podemos relacionar tais atributos com o mito de Lilith. Numa reunião de senhoras, "... Sofia primava entre todas elas. Seus olhos parecem mais negros. A boca parece mais fresca. Ombros, mãos, braços, são melhores, e ela ainda os faz ótimos por meio de atitudes e gestos escolhidos."
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No final do mencionado capítulo, Machado canoniza Lilith: "Não a façamos mais santa do que é, nem menos. Para as despesas da vaidade, bastam-lhe os olhos, que eram ridentes, inquietos, convidativos, e só convidativos: podemos compará-los a lanterna de uma hospedaria em que não houvesse cômodos para hóspedes." Mediante tamanha beleza e poder de sedução (etimologicamente, seduzir significa desviar do caminho), Rubião pensa: "... Meu Deus! como é bonita! Sinto-me capaz de fazer um escândalo!"
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Como Lilith, a transgressora número 01, Sofia possui longos cabelos negros. O uso do corpo e do espelho é comum a ambas. O narcisismo de Sofia é exacerbado. Frente ao espelho (onde, segundo Barbara Black, as mulheres modernas encontram sua natureza-Lilith), Sofia "comprazia-se na contemplação de si mesma, das suas ricas formas..." Fazia ela 29 anos - idade na qual ocorre o retorno de Saturno, signo das trevas que povoam a existência humana, possibilitando mudanças radicais.
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Barbara Black, fazendo alusões à capacidade feminina de utilização do corpo, diz: "...uma mulher pode usar o rosto, o corpo, a maquilagem, os cabelos, as jóias, as roupas e o perfume a fim de acentuar sua eterna conexão feminina com os poderes sedutores de Lilith."
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O capítulo CXCII demonstra Sofia num salão de baile, utilizando-se de atributos exteriores a fim de alcançar os poderes aos quais refere-se Barbara. Ouçamos nosso narrador, referindo-se à Sofia: "Estava deslumbrante. Ostentava, sem orgulho, todos os seus braços e espáduas. Ricas jóias; o colar era ainda dos primeiros presentes de Rubião."
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C

A porção lilitheana da paixão de Rubião expõe-se, ao analisarmos as origens do mito tratadas por Barbara Black: "Para as mulheres, ela é a sombra escura do EU, casada com o Diabo. Mediante o conhecimento de Lilith e de seu esposo nos tornamos conscientes de nós mesmos."
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Desde o início de sua relação com Adão, "Lilith é apontada não como mulher, mas como demônio..." (Sicuteri, A Lua Negra). As relações demoníacas de Sofia são tenebrosas, como observamos no capítulo XL: "Disséreis que o Diabo andara a enganar a moça... E rindo, daquele riso oblíquo dos maus, propunha comprar-lhe não só a alma, mas a alma e o corpo..." O narrador diagnostica os sentimentos de Rubião, sem também deixar de lado as conotações destes com o demônio. Diz ele: "A corte é o Diabo: apanha-se uma paixão como se apanha uma constipação" (capítulo XLII)
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A beleza, "o rosto aceso de Sofia", seu poder de sedução, não escondiam do professor a maldade advinda da índole da mulher. "A senhora é má, tem gênio de cobra; que mal lhe fiz eu? Vá que não goste de mim; mas, podia desenganar-me logo..." Esta indagação e resposta de Rubião não possibilita qualquer gesto de Sofia a seu favor. Ela, às vezes, sentia repugnância do sócio de seu marido, chegando mesmo a ter por ele uma certa incompatibilidade de epiderme, como ressalta o narrador.
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Não apenas Rubião associa a cobra à Sofia. Dona Tonica, solteirona atormentada pela ausência do amor, chega a considerar hedionda a esposa do Palha. Via nela agora um monstro, metade gente, metade cobra... No capítulo XLIV, o rancor de Dona Tonica prossegue, pensando a filha do major em "estrangular Sofia, calcá-la aos pés, arrancar-lhe o coração aos pedaços."
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Associar a cobra ao comportamento feminino é característica do texto bíblico. No Gênesis III, 1 -2, a relação é explícita: "Foi o próprio Deus quem deu a Lilith esse destino ingrato e sua natureza é, portanto, astuta, como a serpente..." Também como Serpente Tortuosa, Lilith surge numa interpretação analítica do mito de seu casamento com Samael. Para Barbara Black, Ela é chamada de a Serpente Tortuosa, porque seduz os homens a seguir caminhos tortuosos. Em seguida, a autora associa Lilith com a questão do outro, ao classificá-la de Mulher Estrangeira, doçura do pecado e língua má.
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Além da cobra, outro animal é por Machado associado à Sofia. Trata-se do cavalo. Ouçamos como o narrador faz a relação entre o vertebrado e a mulher: 'Traz a idéia do ímpeto, do sangue, da disparada..."

D

Segundo Jung, "o iniciado encontra Lilith quando está a meio caminho da árvore da filosofia." Também aqui é viável uma relação entre Rubião e seu encontro com Sofia, quando ele contatava a filosofia de Brás Cubas - o Humanitismo. Jung assinala que para quem conhece o caminho da consciência, Lilith levará a transformações. Já para os inconscientes, como Rubião, que teve a consciência partida em duas, Lilith é perigo.
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Citando Jung, Barbara Black relata um caso analítico, como se fizesse referência a nossa personagem. Vejamos a coincidência: "Ele comenta que Sofia não pode ser associada a Eva, uma vez que Eva nada tem a ver com magia, mas ela (Sofia) pode, provavelmente, ser associada à primeira mulher de Adão, Lilith. "
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De Sofia, cuja porção Lilitheana desenvolve-se tendo Rubião como objeto, podemos dizer o que pensa Pavese, em seu raciocínio sobre as mulheres em O Ofício de Viver: "A mulher que não for tola, cedo ou tarde, encontra um farrapo humano e tenta salvá-lo. As vezes consegue. Mas a mulher que não for tola, cedo ou tarde, encontra um homem são e o reduz a um farrapo. E sempre consegue."
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Rubião, morto. Sofia – sangue, saliva e sedução - que o diga. "...a idéia de ter sido amada até a loucura, sagrava-lhe o homem." (Cap. CLVII).


B I B L I O G R A F I A


01. ASSIS, Machado de. Quincas Borba, Editora FTD, São Paulo.

02. BARBOSA, João Alexandre. “A Modernidade do Romance”, in A Leitura do Intervalo. São Paulo: Iluminuras, 1990.

03. DUARTE, Eduardo de Assis. "Muito Prazer Lilith". Inédito - Natal, 1994.

04. _____ "Representações do Feminino Demoníaco em O Cortiço, de Aluísio de Azevedo". Inédito - Natal, 1994.

05. _____ "Lilith na Literatura - Identidade e Transgressão". Inédito - Natal, 1994

06. KOLTUV, Barbara Black. O Livro de Lilith. São Paulo: Editora Cultrix, 1994.

07. KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. “Das Três Condições Necessárias para a Bruxaria”, in Malleus Maleficarum - O Martelo das Feiticeiras (Tradução de Paulo Fróes), Rio de Janeiro, Rosa dos tempos 1991.
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08. PAVESE, Cesare. O Ofício de Viver. Rio de Janeiro: Record

09. PIÑON, Nélida. O Pão de Cada Dia. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1994.

10. SICUTERI, Roberto. Lilith - A Lua Negra. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1990.

sábado, 17 de outubro de 2009

Poeminha Didático

Escrita em 1991, a primeira versão deste texto integrou a monografia "A Consciência Histórica do Poema". A referida monografia foi produzida no curso "A Modernidade da Poesia Brasileira", ministrado pelo crítico João Alexandre Barbosa numa Especialização em Literatura Brasileira na UFRN.


Quadrilha Moderna Para Dois Andrades


I

João lia Murilo
relido por Bandeira
que descobriu Cabral
que dedicou Pedra
do Sono a Carlos
.
Drummond louvou Bandeira
(“Desligamento do Poeta”)
que consagrou Cabral
(“Mafuá do Malungo”)
que na Quaderna releu Murilo

Mendes joãocabralizou-se
parceiro de Jorge de Lima
em Tempo e Eternidade
(pós Poemas com "Canção
do Exílio" e "Ângulos")

Carlos tinha uma pedra
Bandeira, um cacto
Murilo, a "Máquina de Sofrer"
Os Campos re-visaram
Sousândrade, Galáxias
.

II


O Eu escarrou
nas Belas Artes do país
bem antes das fezes
cabralinas de Gullar
sujar o poema
.
Cecília filmou em Ouro
a luz sem data
no país da arcádia
Jorge e Vinícius
inventaram Orfeu
.
Hilda tocou oboé
Teia teceu Orides
Adélia trouxe Bagagem
Baú...
e Arranjos... fizeram
Quintana e Manoel de Barros
.
Cabral criou o Museu
de Tudo e todos entraram
na história do poema:
de Gregório a Leminski
Alvim Waly Ana C

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Lima Barreto: roteiros de vida e obra


Para Marília Gonçalves Borges Silveira
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I – Primeiras Leituras, Engenharia e Imprensa


Os 41 anos da vida de Lima Barreto (1881 – 1922) foram marcados por, dentre outros, dois fortes signos: as mudanças espaciais e as páginas escritas. Elas parecem expressar os quatro sentimentos maternos anunciados, na infância, pelo olhar de D. Amália Augusta ao filho e futuro escritor: "...temor, pena, admiração e amor" [1]. Esses mesmos sentimentos, que nortearam a trajetória pessoal do próprio Lima, servirão futuramente de base para a criação de personagens como, por exemplo, Isaías Caminha.

Se a literatura de Lima Barreto consiste basicamente no registro de suas memórias, o que o torna um escritor "confessional" – como sugere o biógrafo Francisco de Assis Barbosa –, esses quatro verbos herdados da visibilidade materna – temer, penalizar-se, admirar e amar – podem ser lidos como signos dessa escrita que, por meio da memória, transforma a admirável experiência da vida em amoroso texto literário. Essa transformação é densa e abissal. Possui muito de um pai tipógrafo e tradutor que trabalhou, durante 12 anos, na Imprensa Nacional. Seu nome: João Henriques de Lima Barreto. Com ele, Lima assistiu, aos 7 anos, às solenidades festivas da abolição da escravatura, em 1888. Testemunharam juntos, pai e filho, o advento da proclamação da República, em 1898, embora fossem ambos assumidos admiradores da Monarquia.

Por essa época, Lima estudou no Liceu Popular de Niterói – um colégio para filhos de classes privilegiadas, onde havia até aulas de piano. Lá o futuro autor de Numa e Ninfa despertou o gosto pela leitura de autores como Julio Verne. Dos primeiros registros bibliográficos, ressalte-se ainda a herança paterna de livros como a Divina Comédia e da obra de Tácito. A esses autores juntar-se-ia, na freqüência futura do apostolado da igreja, o filósofo Descartes e o seu Discurso do Método. Esse texto transformou-se numa leitura de prazer para o adolescente mais preocupado com o eu que pensa a concretude da própria existência, em contraposição à transcendência apregoada pela mitologia religiosa. Lima Barreto era, na verdade, um homem assumidamente aristotélico e questionador que, apesar de habitar geralmente as margens, os extremos, possuía o “desejo de tudo metodizar” [2].

Desgostoso com o regime interno no qual estudava, ele tinha na casa paterna, da Ilha do Governador, um espaço "de sonho e curiosidade". Lá desfrutava as benesses naturais que a Ilha – na época isolada da cidade – oferecia. O garoto gostava principalmente de pombos e cajus. Adorava "um bambual cerrado e verde que suspirava quando de tarde a viração soprava do mar", como escreve depois o cronista de Feiras e Mafuás (1953). Admirava, no éden da Ilha, a variedade da fauna futuramente estetizada em Triste fim de Policarpo Quaresma (1915). Embora hoje essa fauna esteja em extinção, há na Praça Calcutá, na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, o busto do autor que inscreveu os homens, a fauna e a flora daquele lugar. Na Ilha trabalhou, após a queda da Monarquia, o pai de Lima Barreto, numa Colônia de Alienados; o que possibilitou, ao filho e estudante de 10 anos, o contato com a loucura no próprio paraíso que era a Ilha naquele início do século XX.

Da Ilha, o estudante foi para o colégio interno e as pensões estudantis. Com base nesses contextos espaciais, o estudante de Engenharia Civil colhia – na travessia pela Rua do Ouvidor, onde mulheres, vitrines e literatos ostentavam seus brilhos – os roteiros de suas narrativas futuras. Outro cenário escolhido pelo futuro escritor seria a Biblioteca Nacional, situada num antigo prédio da Rua do Passeio. Lá o estudante empreendia sessões de leituras. Por volta dos 16 anos, o apreço pela filosofia dominava o "cardápio" intelectual (Kant, Spencer, Comte, Le Bon...) dentre os demais saberes e artes. Anos mais tarde, o narrador de Recordações de Isaías Caminha (1909), assumirá sua predileção pelos autores literários mais "amados": Dostoiévski, de Crime e Castigo, Voltaire de os Contos, Tolstói de Guerra e Paz, Flaubert de Educação Sentimental e, dentre outros, Eça de Queiroz e Stendhal.

Do convívio com a leitura e com alguns colegas veio a primeira publicação jornalística de Lima em A Lanterna – periódico que abrangia, dentre outros campos do conhecimento, as ciências, as artes e os esportes, e que pertencia às escolas superiores do Rio de Janeiro. Nesse jornal, o escritor de "cor azeitonada" que sorri para as certezas das ciências, começa a exibir sua produtiva porção irônica e sarcástica: "O sarcasmo já brilha nas suas crônicas. É a reação contra o meio que começa a se processar de modo inevitável" [3].

Sarcástico, irônico, ferino. Esses adjetivos nortearão a carreira profissional e a vida de Lima Barreto; principalmente nas suas relações sociais e nos ambientes profissionais. Sua vida e obra estão repletas de imagens que refletem as margens nas quais o autor se situou durante quase toda sua vida. Por exemplo: numa cena onde os colegas estudantes pulam o muro de um teatro, a fim de assistir a uma ópera, Lima não consegue sintonia com o grupo. O preconceito racial rouba-lhe a "coragem de pular o muro" [4]. Por isso o adolescente não viu Aida. A negritude roubava-lhe sua força; acentuava seu azedume frente aos costumes e às regras de uma sociedade racista e socialmente injusta. Junte-se a essas injustiças sociais, as perdas econômicas, a loucura e os delírios paternos. Talvez por tudo isso, sejam visíveis as figurações da morte nos cadernos do adolescente, e a presença do mal e sua matéria bruta nas páginas depois publicadas.

O registro dessas páginas é da maior importância para a historiografia literária brasileira. Ao estetizar sua conturbada existência social e suas memórias familiares, Lima Barreto constrói uma conexão direta entre a vida naquele início da modernidade no Brasil e as dificuldades de inscrição social, para um jovem negro, numa sociedade cujas desigualdades oscilavam visivelmente entre o centro e a periferia, a maioria pobre e negra e uns poucos brancos e instruídos a gozarem privilégios infindos. Nesta cena adversa e preconceituosa, o rapaz de pouco mais de 20 anos consegue aprovação num concurso para a Secretaria de Guerra.


II – Belle Époque Carioca, Cena Pré-modernista e os primeiros livros de Lima Barreto


Ainda não houvera a primeira guerra mundial. Estamos no Rio de Janeiro de 1903. Pela Rua do Ouvidor transitam a maioria dos 730 habitantes da cidade. Eles vivem a esperança esplendorosa da Belle Époque na cena que anuncia a nossa modernidade. A Belle Époque traduz a nova sensibilidade urbana que surge no final do século XIX , em sintonia com os avanços científicos e tecnológicos. No Brasil, corresponde ao período que vai da proclamação da República, em 1889, até a Semana de Arte Moderna, em 1922. Corresponde também ao advento da cena pré-modernista onde, além do próprio Lima Barreto, destacam-se Euclides da Cunha e Graça Aranha.

O Pré-Modernismo está relacionado a uma confluência de estilos literários que se cruzam num mesmo contexto histórico, assinalando a presença de variadas tendências na Literatura Brasileira. Esse cruzamento de estéticas e suas múltiplas dicções possibilitam a origem de um fenômeno conhecido como sincretismo, através do qual se manifestam os autores mais representativos do Realismo, do Naturalismo e do Impressionismo, na prosa; e do Parnasianismo e do Simbolismo-Decadentismo, na poesia.

Neste contexto estético e social de grandes transformações, o progresso apresenta suas sedutoras armas: cafés, bondes elétricos, confeitarias, bares, iluminação pública. Modelos europeus, cervejas alemãs e conhaque francês. Nesta primeira década do século XX, o Rio ostentava os salões e as destacadas personagens de sua história política e cultural. Dentre essas, destaca-se Laurinda Santos Lobo – signo reluzente da época de ouro vivida pelo Rio de Janeiro no pórtico do novo século. Laurinda e seus salões constituem os cenários avessos ao universo de Lima Barreto. Situado sempre à margem, este seria o Rio no qual o autor negro jamais mergulharia [5]:

Na década de 1910, o salão de Madame Santos Lobo foi peça fundamental da política do ministro do exterior, Rio Branco, que tinha como estratégia mudar a cara do Brasil no estrangeiro, apresentando um país branco, desenvolvido, educado, quase francês. O salão Murtinho era seu cartão de visitas, recebendo celebridades estrangeiras de visita ao Rio, como Anatole France e Rubén Darío. Em 1919, Isadora Ducan apresentou sua dança nessa casa.

Claro que Lima Barreto não se identificava com esse país de identidade européia. Sua identificação era com outro país: um lugar onde a dança levava em conta o som dos atabaques e pandeiros... Junte-se a esse cenário de ritmos variados e estrangeiros a visão moderna do administrador Pereira Passos e a abertura da Avenida Central, hoje Av. Rio Branco. Nesta cena pré-modernista, os cafés e as livrarias são os espaços das relações intelectuais. Na imprensa, A Quinzena Alegre, O Diabo, a Revista da Época (da qual Lima foi secretário) e O Correio da Manhã, dentre outros, anunciam a ebulição sócio-política e cultural que toma conta da capital da República.

Como funcionário da Secretaria de Guerra, Lima Barreto cumpre uma rotina burocrática que inicialmente em nada o aflige. Depois, essa rotina muda. Em 1904, o autor começa a escrever a primeira versão de Clara dos Anjos. Por volta de 1905, ele escreve 22 reportagens sobre "as escavações dos subterrâneos do Morro do Castelo", para O Correio da Manhã [6]. O escritor começa, em meio a dificuldades materiais e existenciais, a decolar. Sua vida literária inicia por vários gêneros. Além da experiência jornalística, Lima escreveu teatro, ensaio, folhetins populares, romance sociológico, e chegou a rabiscar o projeto de uma História da Escravidão Negra no Brasil e sua influência na nossa nacionalidade. Ele pensava inscrever uma espécie de "negrismo" na branca historiografia literária brasileira.

Na primeira década do século XX, o cenário literário carioca ostenta figuras de peso nacional como Machado de Assis, Coelho Neto, José Veríssimo, Gonzaga Duque e, dentre outros, João do Rio – um dos personagens satirizados do Isaías Caminha. Neste contexto, Lima Barreto lança, na tentativa de inscrever "...a grandeza da literatura", a revista Floreal (1907) que durou 4 números. Nesta revista, o autor inicia a publicação do romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha, cuja 1ª edição – portuguesa – começa a circular no Rio de Janeiro em dezembro de 1909. Isaías Caminha é o alter ego de Lima Barreto. Servia, às vezes, como pseudônimo do escritor que assume o gosto pelo vigor dos ideais pregados por Rousseau, dentre outros autores.

A biblioteca particular do autor – LIMANA – reflete essa sua predileção pelos roteiros da história, pelo universo das idéias e reflexões. Na LIMANA convivem, além de Rousseau, filósofos como Descartes, Nietzsche e Spinoza, dentre outros, em meio a títulos como As Três Filosofias, de L. P. Barreto. Essa investigação no campo do saber é visível na escrita do próprio Lima. Sua obra literária consiste num tipo de texto que se fundamenta muito mais no plano das idéias e reflexões, em sintonia com as questões sociais de sua época, que no trabalho com a sintaxe e o significante lingüístico; embora, críticos como Sérgio Milliet, por exemplo, destaquem, nessa produção artística, exatamente o seu caráter “antiliterário” e sugira, no estilo barreteano, a busca pela exatidão na construção das frases [7].

Talvez motivado por essas questões relacionadas ao plano da escritura e até das convenções gramaticais, o livro do Isaías Caminha não tenha conseguido, de início, uma boa receptividade crítica. Assim como José Veríssimo, outros críticos da época acharam o romance excessivamente “personalista”. Veríssimo sugere, em carta para o próprio Lima, que falta em seu texto o trabalho de estetização com a linguagem.

Algumas dessas críticas incomodavam muito o autor. Por essa época, ele já tivera algumas licenças médicas para tratamento de saúde. As feridas, em Lima, custavam a cicatrizar. Sua hipersensibilidade debatia-se num cenário hostil ao autor. Sua sangria desatada, frente às questões familiares e aos problemas sócio-políticos do país, transformava-se cada vez mais em matéria bruta para a escrita. Ele assume ser o sombrio ambiente familiar, juntamente com a loucura paterna, a causa maior do seu mal.

A incapacidade de adaptar-se a um mundo socialmente perverso e politicamente injusto faz com que Lima Barreto resgate, na primeira década do século XX, algumas características existenciais aquele antigo mal-do-século que tanto afligiu os românticos brasileiros no século XIX. Só que esse resgate se dá meio que pelo avesso: a dor de Lima Barreto é bem mais física e materializada do que as dores existenciais e as mazelas amorosas estetizadas pelos jovens poetas do Romantismo.

Complementam essa espécie de resgate maldito a questão do preconceito racial, a falta de grana, a exclusão literária e a miséria afetiva (segundo os amigos, o autor não possuía os “requintes” da arte de amar, além de considerar a mulher como um possível “empecilho” para a sua produção literária). Ou seja: racismo, pobreza, margens culturais e carência afetiva – os ingredientes da tragédia estão expostos. Nesse cenário trágico, a literatura surge como a razão de viver; como projeto utópico: “Ah! A Literatura ou me mata ou me dá o que eu peço dela” [8].



III – Triste Fim de Policarpo Quaresma, O cemitério dos vivos e o “Declínio”



A literatura começa, enfim, a dar os frutos sonhados. Lima Barreto encontra-se em plena maturidade, embora essa madureza contenha os seus “pecados”. Dentre os “pecados” estéticos e intelectuais da maturidade, ressalte-se o fato dele menosprezar a obra de Machado de Assis; chegou a dizer que o escritor do Cosme Velho inventava “tipos sem nenhuma vida”. Vida haveria apenas na “objetividade” e na forma direta de sua própria literatura que dá visibilidade para as classes sociais menos favorecidas? Talvez.

De Janeiro a Março de 1911, ele escreve aquele que é considerado “o mais bem composto e equilibrado dos seus romances” [9]: Triste Fim de Policarpo Quaresma. O personagem principal é um major “nacionalista exaltado”. Ele é conhecedor da literatura e da história escritas no Brasil, como demonstra este fragmento da Primeira Parte do romance, onde o narrador descreve a biblioteca do major[10]:

Na ficção, havia unicamente autores nacionais ou tidos como tais: o Bento Teixeira, da Prosopopéia; o Gregório de Matos, o Basílio da Gama, o Santa Rita Durão, o José de Alencar (todo), o Macedo, o Gonçalves Dias (todo), além de muitos outros. Podia-se afiançar que nem um dos autores nacionais ou nacionalizados de oitenta pra lá faltava nas estantes do major. De História do Brasil, era farta a messe: os cronistas, Gabriel Soares, Gândavo; e Rocha Pita, Frei Vicente do Salvador, Armitage, Aires do Casal, Pereira da Silva, Handelmann (Geschichte von Brasilien), Melo Moraes, Capistrano de Abreu, Southey, Varnhagen, além de outros mais raros ou menos famosos...

Em Agosto de 1911, O Jornal do Commercio (edição da tarde) inicia a publicação, em folhetim, de Triste Fim de Policarpo Quaresma que apenas em 1916 aparecerá em volume. Ainda em 1911, o autor colabora no jornal Gazeta da Tarde e participa do movimento para a criação da Academia dos Novos, patrocinada pelo jornal A Imprensa. Encontra-se Lima, aos 30 anos, no auge de sua produção intelectual. Escreve, além do referido romance, textos importantes como “A nova Califórnia” e “O homem que sabia javanês”. Escreve também para jornais revolucionários como Lanterna, O Cosmopolita, O Parafuso, A patuléia e A Luta. Ao aposentar-se em 1919, o escritor intensifica suas colaborações na imprensa nacional. Mas, Lima Barreto sabia ser o Acaso um Deus que “não tem predileção”.

No início de 1919, Lima é candidato à Academia Brasileira de Letras; no final desse mesmo ano, sofre nova crise de loucura. É novamente internado no Hospício Nacional de Alienados, na Praia Vermelha, Rio de Janeiro. Como seu pai, o escritor delirava. Em seu delírio, ele dialogava com “inimigos invisíveis” e chegava a ver animais. Começa a fase que Francisco de Assis Barbosa cognomina de o “Declínio” do seu biografado.

Agora, não mais existem o literato e boêmio que perambulavam pelos bares, cafés e livrarias. O reumatismo começa a emitir sinais para o corpo cansado. Monteiro Lobato vem ao Rio de Janeiro, “especialmente para conhecê-lo” [11]; embora o autor de Urupês não tenha conseguido aproximar-se do homem de aspecto fisicamente decadente, e por muitos desprezado. Lima parecia uma “ruína humana” [12].

Essa decadência física e o desprezo público não impossibilitaram sua produção literária. Entre 1920 e 1922, Lima Barreto conclui nada menos que cinco volumes: Histórias e Sonhos, Marginalia, Feiras e Mafuás, Bagatela e Clara dos Anjos. Destes, viu publicado apenas Histórias e Sonhos. Em 1920, após deixar o hospício pela segunda vez, começa a escrever um importante romance que deixou inacabado: O cemitério dos vivos. Segundo a professora Marília Silveira[13],

O romance O cemitério dos vivos tem o diário como embrião. É no diário, fruto da experiência e da memória, que o romancista vai buscar o húmus alimentador da ficção. ... o romance possui uma linguagem coloquial, dando sempre a impressão de uma conversa com o leitor, o que ajuda a conferir o tom da confissão e do desabafo...

O cemitério dos vivos foi publicado na Revista Sousa Cruz (onde o autor publica a conferência “O Destino da Literatura”). O texto aponta para outros roteiros metafísicos e existenciais, e teria tudo para transformar-se no grande romance do autor. Trata-se de um denso registro, como atesta a voz de Vicente Mascarenhas – o narrador intimista que, em cinco capítulos, rememora a juventude, a vida conjugal e a experiência do hospício. Diz a voz que narra[14]:

Eu sofria honestamente por um sofrimento que ninguém podia adivinhar; eu tinha sido humilhado, e estava, a bem dizer, ainda sendo, eu andei sujo e imundo, mas eu sentia que interiormente eu resplandecia de bondade, de sonho de atingir a verdade, do amor pelos outros, de arrependimento dos meus erros e um desejo imenso de contribuir para que os outros fossem mais felizes... ...uma vontade de descobrir nos nossos defeitos o seu núcleo primitivo de amor e de bondade.

Há nesse texto, como lemos, uma visão mais compreensiva e afetiva dos homens e do mundo; embora no romance que é considerado como segundo volume de suas memórias estetizadas – Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá – Lima já ponha na boca de seu alter ego, o velho e irônico Gonzaga de Sá, o seguinte discurso: “...a maior força do mundo é a doçura; deixemo-nos de barulhos” [15]. Segundo Arnoni, “Gonzaga de Sá deplorava a comercialização da cultura, a linguagem descuidada dos jornais e os falsos intelectuais”. Com esse romance, o autor ganha, em 1921, uma menção honrosa da Academia Brasileira de Letras; o que possibilita uma outra edição do texto em circulação.

Em 1922, Lima Barreto entrega ao editor os originais de Feiras e Mafuás, e a revista O Mundo Literário publica o primeiro capítulo do romance inédito Clara dos Anjos – “O Carteiro”. Em primeiro de Novembro desse mesmo ano o escritor falece, vítima de gripe torácica e colapso cardíaco, no Rio de Janeiro, em sua casa à Rua Major Mascarenhas, nº 26. Tem por perto o pai louco e a irmã Evangelina que cuida de ambos.

Chovia muito no velório de Lima Barreto. À tarde, o enterro saiu em direção ao cemitério São João Batista – lugar escolhido pelo próprio escritor. Ao longo das ruas suburbanas, a multidão seguia silenciosamente o caixão. A cena descrita pelo biógrafo demonstra a grande afeição do povo pelo autor [16]:

Eram pretos em mangas de camisa, rapazes estudantes, um bando de crianças da vizinhança (muitos eram afilhados do escritor), comerciantes do bairro, carregadores em tamancos, empregados da estrada, botequineiros e até borrachos, com o rosto lavado em lágrimas, berrando, com o sentimentalismo assustado das crianças, o nome do companheiro... de tantas horas silenciosas, vividas à mesa de todas essas tabernas...

A chuva continuava a cair. O cortejo fúnebre seguia ajuntando pessoas de várias cores, credos e classes sociais, tantas vezes estetizadas nas páginas escritas pelo autor. Num rompante de lucidez, João Henriques indaga à filha o que aconteceu em casa. Pergunta se Afonso morreu. Evangelina tenta confortar o pai moribundo. Quarenta e oito horas depois do filho, morre o pai. É enterrado na mesma campa humilde onde repousa Lima Barreto – escritor cujo olhar inscreve as margens urbanas e sociais do Rio de Janeiro no início do século XX. Esse mesmo olhar vislumbra, ao seu modo, o verde da paisagem carioca que ele tanto amou e estetizou em formas múltiplas como o romance, o conto, a crônica, o ensaio, a reportagem, o diário e a epistolografia.



BIBLIOGRAFIA

BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Notas de revisão de Beatriz Resende. 8ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.

BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Ed. Abril, s/d.

FONTES, Lílian. Santa Teresa. O lugar do sonho. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. (Col. Cantos do Rio).

PRADO, Antonio Arnoni. Lima Barreto. São Paulo: Abril, 1980. (Literatura Comentada).

SILVEIRA, Marília Gonçalves Borges. Stultifera Polis: Uma leitura de Lima Barreto. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem. Natal, UFRN, 1998.

NOTAS


[1] BARBOSA. A vida de Lima Barreto. 2002. p. 49.
[2] BARBOSA. Op. Cit. 2002. p. 323.
[3] BARBOSA. Op. Cit. 2002. p. 108.
[4] BARBOSA. Op. Cit. 2002. p. 114.
[5] FONTES. Santa Teresa. O lugar do sonho. 2003.
[6] Essas reportagens foram organizadas, com Introdução e Notas de Beatriz Resende, em O Subterrâneo do Morro do Castelo. Um folhetim de Lima Barreto. Rio de Janeiro: Dantes, 1997.
[7] BARBOSA. Op. Cit. 2002. p. 335.
[8] BARBOSA. Op. Cit. 2002. p. 242.
[9] BARBOSA. Op. Cit. 2002. p. 219.
[10] Barreto. Triste Fim de Policarpo Quaresma. s/d
[11] O encontro “malogrado” no Rio de Janeiro seria concretizado depois em São Paulo.
[12] BARBOSA. Op. Cit. 2002. p. 340.
[13] SILVEIRA. Stultifera Polis. 1998. p. 65.
[14] BARBOSA. Op. Cit. 2002. p. 350.
[15] BARBOSA. Op. Cit. 2002. p. 326.
[16] BARBOSA. Op. Cit. 2002. p. 359.

sábado, 10 de outubro de 2009

Possuído pelo vocábulo



João Gilberto Noll é um autor contemporâneo cuja visibilidade engendra uma narrativa calcada, dentre outros, nas noções de velocidade e corte herdadas da modernidade. Nesta obra construída a partir de recursos literários e cinematográficos, os ritmos velozes, os discursos imagéticos, as identidades mutantes e as linguagens fragmentadas geram uma proliferação de signos e re-leituras, onde nenhuma percepção aurática, heróica ou politicamente correta engendra a produção do sentido. Romances como Bandoleiros (1985), A céu aberto (1996) e Lorde (2004), por exemplo, atestam a recorrência a esses procedimentos estéticos e culturais.

Em sintonia com tais procedimentos narrativos, Noll lançou, em 2003, dois volumes díspares e ao mesmo tempo complementares de sua bibliografia (15 títulos) sedimentada nas formas literárias do conto e do romance. Os dois livros são Mínimos, múltiplos, Comuns (“Instantes ficcionais”, Ed. Francis) e Berkeley em Bellagio (romance, Ed. Objetiva). Embora considere as tramas dos idiomas e dos corpos, de Berkeley em Bellagio, temas acerca dos quais vale a pena refletir e escrever, esta leitura elege os contos do alentado volume de Mínimos, múltiplos, Comuns como objeto de reflexão.
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Micro-narrativas com vigor poético
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Mínimos, múltiplos, Comuns é uma cosmogonia construída com a sintaxe curta e a rapidez deste milênio. Uma cosmogonia contemporânea. Escritas para o jornal Folha de São Paulo, estas micro-narrativas apresentam altíssima taxa de literariedade e vigor poético. Segundo o autor, estes textos “pressupõem uma cronologia da criação”, a partir da criação de cinco grandes “conjuntos”: Gênese, Os Elementos, As Criaturas, O Mundo e O Retorno. Esses “conjuntos” se desdobram em signos que se multiplicam em outros signos, tecendo uma sintaxe sinestésica onde quem lambe olores pode engolir um rio que ri, e uma outra linguagem brota desautomatizando os discursos cotidianos. Nesses “conjuntos” o mundo passa a existir e a locomover-se via linguagem.

A cosmogonia de Noll encerra uma narrativa hipotética da criação de um universo que, embora seja às vezes trágico ou melancólico, surpreende pelas possibilidades sugeridas pelo espanto, o humor e o caos de onde a linguagem nasce. O mergulho neste caos tem a ver com o desejo do outro, o leitor. Esse desejo anuncia-se no elegante projeto gráfico do volume de 478 páginas, passa pela beleza poética dos títulos, pelo diálogo com as imagens e tons das cores e culmina no rigor da forma e da construção textual.

O livro possui o desvio, a deriva de uma lógica labiríntica. Suas páginas engendram algumas sombras, dão pistas de alguns punhais. A forma de leitura é também labiríntica. Por isso é possível que o leitor volte ao índice, re-confira títulos e sub-títulos e, de quando em vez, pare para re-iniciar a releitura do mesmo texto num ritmo que traduz o espanto produtor dessa viagem onde alegria, espanto e desejo são combustíveis perenes. Nestes roteiros de letras, é imperativo atentar para os efeitos gerados pela pontuação, e para a polissemia de signos urbanos e naturais que engendra essas micro-narrativas.

Nesta cosmogonia, a geometria dos corpos urra um discurso atemporal. Um narrador urbano, por exemplo, atravessa o tempo e encontra uma romântica taverna de outro século; um outro olhar - que narra de modo atemporal - apronta um gesto romântico em pleno metrô moderno, metropolitano. Seres e cenários cotidianos anunciam o desejo gerador de um grande sertão urbano que se perfaz em texto, asfalto, indagações.

Bêbados de palavras, esses narradores ruminam desejos, enseadas, velórios. Um caseiro aterra a identidade da patroa. Recorrentes porteiros cotidianos convivem com mitos clássicos que nem Narciso, espelhado aqui na superfície de uma portaria por onde transitam os que aprenderam a “respirar na contravida”. Outro narrador acende o paladar fantasiando a filha de frutas. Um outro é o mais entusiasta dos plantéis; e tem aquele de olhar saturado que não suporta a ausência de um certo rigor cartesiano: “O que te assustava era o meu entusiasmo intransitivo atropelando qualquer ponderação”, diz ele.
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Ouvidos treinados em diferentes timbres
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“Línguas” é um texto que remete a um dos núcleos temáticos recorrentes nos dois volumes publicados, em 2003, por Noll. Tanto em Mínimos, múltiplos, Comuns como em Berkeley em Bellagio proliferam temas concernentes à leitura, à fala, à língua e à sílaba; questões voltadas para o nascimento da palavra, sua foz, a produção do discurso. A escritura dessas questões possibilita um denso exercício metalingüístico, como sugere a seguinte fala: “Que eram tantas as palavras, de tão diferentes fontes e sabores, que concentravam em si tamanha quantidade de matizes e sentidos...”. Esse vigor diferencial e saboroso pode ser aferido e ratificado na potência dos títulos, na seleção dos vocábulos, no recorte imagético, no zelo pelo idioma, seus tons.

Essa tonalidade é audível, por exemplo, na indagação do que acontece quando Eros freqüenta o espelho de Narciso. É também audível no nascimento do verbo, no discurso dos seios que contabilizam os prazos da sexualidade gerando outras formas de vida, e na metonímia de um desejo que, tecido nas malhas da solidão, abastece a portaria, o prédio, a rua, a cidade e o céu final da tarde. Essa tonalidade ajuda a deslocar a tensão e a aspereza produzidas pela falta de ritmo cotidiana, e deixa o leitor atento à co-existência dos tempos, à recepção dos ventos e aos reflexos dos autos, suas lâminas.

Nestes “Instantes ficcionais” cintilam pequenas epifanias caio-clariceanas. Como Clarice Lispector, o autor parece atentar, na maioria das vezes, mais para o sussurro discursivo dos fatos do que para os próprios fatos; e os signos desses fatos tanto podem remeter a um touro, um cheio de memória antiga ou a uma borboleta que teima em sair do ouvido de quem narra. Aliás, seus narradores possuem ouvidos bem treinados. Treinados nos timbres das águas, nos ritmos sanguíneos e cortantes do trem do metrô; ouvidos e olhos treinados na colheita do riso tradutor de uma alegria branca de broto.

A narrativa de Noll sugere, principalmente no conjunto “Os Elementos”, uma porção poética que remete às noções de ruptura de gêneros e formas patrocinadas pela modernidade, e que possui no prosa de Guimarães Rosa um dos seus marcos. Embora não produza os exercícios de linguagens empreendidos pelo autor mineiro, o trabalho com a sintaxe e o recorte vocabular de Mínimos, múltiplos, Comuns possibilita a audição de ecos da linguagem de personagens roseanos em textos como, por exemplo, “Caroço do ermo”, “Natureza”, “Leve seio”, dentre outros.
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Assim como João Guimarães Rosa, João Gilberto Noll é, neste livro, um autor possuído pelo vocábulo. Ser possuído pelo vocábulo, num tempo dominado pelo signo imagético e suas conexões de superfícies e repetição, potencializa o texto. Além disso, qualifica o leitor “para o convívio sensato das formas” (“Gigante”), e o convoca para uma aventura que não acaba nunca: a leitura da sua infinda dimensão humana e diferencial em meio a tantas máquinas e sistemas que se repetem.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Quando o corpo e a paisagem chovem

Sobre a poesia de Elizabeth Gontijo

Texto apresentado em 2008 no II Congresso de Letras da Universidade de São João Del Rey- MG


1. O ciclo poético “de”

A poeta mineira Elizabeth Gontijo é autora de 5 livros de poesia. Três deles foram lançados na última década do século XX: De cor (1991), De amoras e outras (1993) e De um segredo (1999). Os outros dois títulos produzidos neste milênio são: Setembros (2004) e A Palma e o Verso (2007).

Proponho aqui uma leitura desta poética levando em conta essa divisão secular. Ressalto, nos três primeiros livros, o recorte vocabular dos versos onde escuto ecos das letras mineiras. Principalmente ecos roseanos, sertanejos: travessia – veredas – aragem – avessos – neblina - pedra... Chama atenção nos títulos destes três livros do século XX o uso da preposição de – De cor, De amoras e outras, De um segredo.

Com base na repetição seqüencial da proposição “de” nesses três primeiros títulos, leio, nesta fase inicial da poesia de Elizabeth Gontijo, uma poética da filiação. Nesta primeira fase, o leitor está, portanto, diante do ciclo poético “de”. Recordemos um pouco de preposição, então. Como uma palavra que liga dois termos entre si, a preposição estabelece entre eles uma relação de dependência. A gramática ensina ainda que em essenciais e acidentais são classificadas as preposições, sendo o “de” uma preposição essencial.

Para a leitura dessa filiação literária com essa preposição essencial, é bom lembrar que, por haver a dependência entre os termos, De cor é diferente de “cor” sozinho; assim como De um segredo não é igual ao segredo, o substantivo em si. Neste sentido, não é apenas o segredo em si que está em jogo, mas a idéia de alguma coisa que se liga, que se filia a esse segredo.

Nessa direção, a leitura da filiação aponta para uma poesia que se constrói a partir da idéia de pertencer. O poema acontece numa relação de pertencimento. Ou seja: alguma coisa ou algum ser dialoga com outra; está em interação com outro ser. Algum signo atrela-se a outro. E esse entrelaçamento entre os signos gera a matéria e a forma do poema.
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2. Identidade e máscaras do feminino


Nesta poética da filiação, uma coisa vem sempre relacionada a uma outra, sugerindo uma filiação identitária. Em sintonia com essa filiação identitária, o primeiro poema do primeiro livro - De cor - chama-se “Identidade”. No seu diálogo com a tradição literária, o poema sugere a linhagem drummondiana do minério e do pó à qual Elizabeth se filia, como comprova a leitura de outros textos como “Minas” e suas pedras, “Minas” e suas luzes, por exemplo.

Essa filiação identitária, produzida no século XX, inscreve as máscaras de um feminino que ordena as miudezas e os gestos largos do cotidiano, apontando suas múltiplas direções. Múltiplas são, portanto, as máscaras desse feminino. Uma, na meia idade, se despe e penhora suas culpas. Outra máscara elucida um feminino que faz, farto da soberania da racionalidade, um pacto (“sombra”) e dialoga com as quaresmeiras sobre a paixão. No poema “Baile de Máscaras”, de Setembros, o tom muda radicalmente, dando maior consistência ao desejo que a máscara comporta.

Outra máscara do feminino exercita, de forma moderna, a visibilidade como “Ritual” e diz: “Com o olhar, ensaiamos um pacto”. Outras máscaras menos modernas preferem o tom confessional e elíptico dos diários, das cartas, dos bilhetes datados, e inscrevem a gradação crescente dos afetos dessa poesia guiada, lapidada pela magia do acaso. Haveria acaso? O poema “Átrios” do livro De amoras e outras (1993) já estetiza o futuro ao anunciar o livro “setembro” (2004) num verso isolado. O futuro é também estetizado, nesse mesmo livro de 1993, ao terminar com um texto intitulado “com o segredo”. Esse final anuncia, de certa forma, o volume seguinte que seria publicado em 1999 pela poeta: De um segredo.


Em De cor a poeta estetiza um discurso feminino que engendra um suave diálogo entre o sagrado e o erótico, a contemplação e o tato. Diz ela: “No escuro reza comigo,/ amansa meus cabelos, revoltos de outros carinhos.” Esse escuro fabrica a poesia do avesso, do invisível, embora seja esse um invisível que rutila na sombra, na penumbra, longe da cena do espetáculo e dos seus brilhos repetitivos. Esse invisível pode ser mensurado, por exemplo, onde a poeta “entre parentes” lê-se “entre parênteses” e palpitações. Esse invisível pode também ser lido na imagem da pedra. A produtiva lição que a pedra vem lecionando na poesia brasileira, desde o Arcadismo.


3. Corpo, paisagem e história


Na linhagem poética traçada principalmente pela poesia mineira, a pedra é um signo recorrente e que constrói roteiros. De Cláudio Manoel da Costa e suas penhas à conhecida pedra do meio do caminho do Drummond, há sempre uma lição da terra, suas pedras, para quem atravessa e descobre “a planície dos ombros” no poema “Amante”. Sugiro que nesta poética do ciclo “de”, os ombros sejam a capital do corpo da maioria dos eus estetizados pela poeta. “Estória Natural” e “Frágil”, dentre outros, são textos que justificam essa eleição metonímica dos ombros como capital (Drummondianamente falando, os ombros ainda suportam o mundo?).

Corpo, paisagem e história já renderam belos livros de poemas como O Romanceiro da Independência, de Cecília Meireles. Por algumas veredas da poesia de Elizabeth, ouve-se o fragmentado discurso da história e do cotidiano mais subjetivo passeando de mãos dadas. O sagrado fica de olho e, de quando em vez, ecos do seu discurso são também audíveis por entre veredas. Em alguns poemas, a história e a paisagem passeiam abraçadinhas. Esse passeio pela história, pela paisagem e pelo sagrado traduz um tipo de subjetividade que não exclui o signo erótico, a esfera dos afetos; e faz viajar o leitor por veredas que o sertão mineiro e sua poesia conduzem há tempos.

Ouçamos o poema “Entradas e Bandeiras” do livro De cor. Nele, Elizabeth empreende uma releitura da história mineira por “Veredas de mim”. Nessa releitura o seu recorte vocabular sugere os tons subjetivos e afetivos que permeiam o imaginário de nossa história política e social. Diz o poema:


Entradas e Bandeiras

Fulgurações de cidade antiga,
entre fantasmas da era do ouro.
Transeuntes de becos, musgos, ladeiras.
Luz intensa,
quase silêncio.
Como ávidos bandeirantes
repisamos graves,
pesadas botas.
Sem saber exato caminho
arriscamos escuros confins.


Relações entre o eu, a história e a paisagem intensificam a produção deste discurso poético. “In-confidência” é outro texto onde a história e a subjetividade dialogam. Esse eu que dialoga com a história e a paisagem não esquece a força de eros. Há ainda na poética de Elizabeth uma erótica da paisagem, como lemos em poemas como “Paisagem” (De amoras e outras) e “Horizonte” (De um segredo). Nos poemas “Espelho” e “Gestação” (De um segredo) a poeta trata de forma afetiva a paisagem e a história:



Espelho
...
Fruto maduro
quase gente,
a vaca sou eu,
com saudade da pré-história.
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Gestação
...
Entre pólen e favo
a abelha trama um enredo.
Entre a flor e o fruto
o homem urde a história


Após o ciclo “de”, Elizabeth parece inaugurar uma outra poética e lança, em 2004, aquele que considero o seu melhor texto: Setembros. O livro abre com versos falando em “paisagem da escrita” e termina com “...Recomeço...”. Os poemas são menos fragmentados e, embora ostentem o poder de síntese que a poeta detém, há em alguns deles uns tons narrativos (“Limbo”) que tornam mais leves e consistentes os seus versos. Noutros, a autora se permite um tom coloquial, mais em sintonia com a linguagem do seu tempo, como no poema “Assombro”; embora ainda perdurem, em alguns poemas, ecos de um recorte vocabular (pena – valsa) que mais remete ao universo poético do século XIX.

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Setembros apresenta madureza ao tematizar poemas relacionados às duas questões destacadas nesta leitura: a construção da identidade e a presença das máscaras do feminino, e as relações entre o corpo, a paisagem e a história. Acentuadas e amadurecidas em Setembros, essas questões possibilitam o “recomeço” de uma outra história poética. Nela encontramos substantivos e verbos que dizem das cores dos frutos, dos gestos dos corpos e do jeito de dizer que a poeta recorta aqui de forma menos velada. “Limbo” é um texto que estetiza esse jeito de dizer. É no limbo onde o corpo e a paisagem “chovem”, e dão conta desta história do feminino e suas máscaras.

sábado, 3 de outubro de 2009

A busca da forma no labirinto





Ouro Preto
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Entrevista publicada em A nave leva, Caicó, 1992


O escritor mineiro Victor Ruís nasceu em Ouro Preto - MG. Em Diamantina, ele leu a produção poética dos árcades e conheceu João Gilberto, quando o pai da Bossa Nova exilou-se para criar no violão a batida que mudaria o rumo da música brasileira. Apreciador do estilo barroco e do samba carioca de raiz, foi em Buenos Aires que esse autor assumidamente platônico apaixonou-se pelo tango e pela literatura de Jorge Luís Borges, Ernesto Sábato e Bioy Casares.
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De volta ao Brasil na década de 80, Victor lançou As Formas do Labirinto - único texto publicado pelo autor, apesar da confissão de uma gaveta repleta de poemas e ensaios inéditos. Nesta entrevista, gravada na parede do açude Itans, sertão de Caicó, Rio Grande do Norte, o autor exala sua paixão pela literatura. Cita vários autores e faz alusões a Camões, Pavese, Maiakóvski, Noel Rosa, Claudio Manoel da Costa, Jung... Fala da sua perene busca de simetrias. Diz do imaginário como espaço de produção do real.

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NG: Gostaria que você falasse de sua infância mineira que parece ter sido, como a do poeta itabirano, mais bonita que a de Robson Crusoé.

VR: Acho que foi mais bonita sim. Desde pequeno em Ouro, sempre tive predileção por vitrais, espelhos, superfícies luzidias; apesar de reconhecer, como Borges, que os espelhos possuem algo de monstruoso. Passei a infância dentro de oratórios. Caminhei procissões, rezei novenas. Imitei o sino (“Sobre o grande sino de bronze pousou a borboleta”) e gostava de perambular pelos cômodos vazios da casa do Thomás Antonio Gonzaga. Cheguei mesmo a ouvi-lo num desses nublados finais de tarde mineiros; embora eu tenha lido mais o suicida e seu imaginário da pedra... Que vai dar naquela pedra drummondiana...
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Hoje, ao invés de pedras e espelhos, prefiro telas: de cinema, vídeo, computador. Penso que eles suportam o mundo e as leis imaginárias que o regem. Sempre achei que o imaginário é o melhor espaço humano, embora reconheça que o topos reflexivo seja bastante interessante. Mas também acredito que seja possível promover o diálogo entre ambos, fazendo com que o que chamamos de realidade se torne bem mais interessante. Desde a infância acredito nisso; o que de certa forma me aproxima do Drummond e do Crusoé.


NG: De qual outro personagem você se sente próximo?

VR: Do Borges. Ele próprio foi sua melhor criação.

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NG: Associo sempre as suas formas labirínticas às Ficções borgeanas e aos escritos de Borges sobre livros, personagens e espaços inexistentes. Penso também nos deslocamentos imagéticos do sonho. O que são As formas do labirinto?

VR: Você está certo. As formas... são contos nos quais tento elaborar uma liturgia do sonho. Como passei a vida anotando sonhos, memórias e reflexões, não foi difícil construir esses contos. Tentei narrar o que acredito ser o labirinto - que é para mim o mais evidente signo da perdição, de se estar perdido, digo, procurando saídas. Dizem que essa idéia do labirinto nasce nos palácios e seus mil cômodos; dizem também que o labirinto nasce dos desejos nunca saciados nesses cômodos. O labirinto é um estranho espaço criado pelo homem porque ele não suporta habitar apenas este topos diário que o cotidiano lentamente tece.


NG: Parece que, em todas as épocas, o homem precisa de construir outros espaços... Por isso ele cria a Gruta de Monterinos. Escreve a Ilha dos Amores. Inventa o País das Maravilhas. Transita pelas Ruínas Circulares, faz a travessia do Grande Sertão e por aí vai. E você, vai por onde?

VR: Eu vou pelo roteiro da ruína, do fragmento. Elejo o labirinto, a sombra, o inverno como estação. Como diz você, a nave leva. Os lugares a gente carrega. Eles estão em nós com todas as armas e os afetos íntimos que comportamos. Meus vícios são poucos. Além de Borges e da música do João Gilberto, gosto muito de pensar nas possibilidades do diálogo como gênero literário; assim como o sonho, a enciclopédia, o arquivo. Vou pelo labirinto que é o espaço onde se busca a forma. Para quem tem colhão duro, claro. Não adianta apenas desejar - essa brutalidade humana que Freud inscreveu profundamente e por isso pagou um preço alto fazendo mais de trinta cirurgias bocais. Além do desejo, tem de ter disciplina, produzir linguagens. Eu vou por aí...


NG: É no mínimo inusitado esse exercício da disciplina feito por quem opta por um roteiro tão onírico e labiríntico... Entre esse exercício e esse roteiro, você prefere traçar um grande destino ou uma grande obra?

VR: Sou ambicioso. Antes de sair do planeta Minas, optava pela obra. Agora não sei. Como Macedônio - escritor que Borges amava - penso que o amor, por exemplo, pode ser mais prodigioso que a própria arte, embora a arte talvez seja a forma de amor mais intensa (meio sublimada, diriam os terapeutas modernos). Hoje, gosto dessa idéia nietzscheana de estetizar a vida; tentar fazer da existência uma obra de arte. Isso que é difícil, bacana. Mas simpatizo muito com os perdedores que tentam, os canalhas que não desistem, os decadentes que escreveram obras magníficas. É questão de roteiro, opção.
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NG: ... um grande destino ou uma grande obra?
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VR: Hoje prefiro a vida, o texto da vida. “O difícil é a vida e seu ofício”, como dizia o poeta russo que sequer suportou sua existência e deu o tiro. Hoje ninguém se mata. Escritor não morre mais nem precisa vestir blusa amarela, usar fita amarela, como naquela canção do sambista carioca que também morreu moço. Essa mania de morte está ficando cada vez mais distante do criador. O desafio é a vida, sim. Não é à toa que Joyce escreve oitocentas páginas para descrever um dia fragmentado, mas acaba naquela enxurrada de sins e sins e sins... Mas não li Ulisses. Dizem que não se chega nunca a conhecer seus personagens... Mas, também não sei se precisa conhecê-los... Você leu, o que acha?

NG: Li a metade. Acho que é uma obra principalmente para criadores. Mas quero falar disso que você falou da vida. É meio como penetrar o labirinto borgiano: o dever de todas as coisas é serem uma felicidade; se não o são, tornam-se inúteis. Ou não?

VR: Ou sim. Você vai no cerne: a penetração labiríntica. Inútil é descartar o outro. O eu é nosso grande pecado. Por isso que existe tanta morte em meio às pelejas da vida.


NG: Nestas pelejas você se utiliza da religião? Restou alguma senha do menino que imitava sino, dormia na torre da igreja, rezava novena e seguia procissão?

VR: Resta no olhar com o qual tento estetizar a vida e inscrever minha obra. Pela dor que prega o cristianismo, a voz do Cristo devia ser terrível. A gente sabe que Deus não é nada bonzinho. Basta olhar ao redor. A Hilda Hilst, que sabe tudo, diz que Ele não presta. E eu não sou Adão para querer salvar todo mundo numa arca.

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NG: Adão numa arca é o máximo... Olhando para sua produção, a gente vê que você publicou muito pouco. Um livro e alguns textos em revistas. Você pensa em lançar seus poemas? Gostaria que você falasse um pouco da poesia, esse gênero pelo qual começam todas as literaturas.

VR: Eu falei dessa minha atual predileção pela vida. Ando cada vez mais apaixonado por ela. Quanto a publicar, é complicado. Às vezes, você precisa escrever um poema ou um único verso apenas. O resto, como no dicotômico livro do Eclesiastes, são névoas de nada: tempo de escrever, tempo de publicar. Tenho muito respeito pela poesia. Nela, como no conto, nada é gratuito. Já do romance não podemos dizer o mesmo. Acho que por isso Borges nunca escreveu um. Como você disse, todas as literaturas começaram pela poesia. Mas acho que para escrever poemas precisa-se mais de ingenuidade que de inteligência... E o mundo não anda nada ingênuo, concorda?
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NG: Concordo em partes... Pelo modo de pensar a vida e a obra a partir dos sonhos, mitos, símbolos, formas imaginárias... dá para ver que a sua porção platônica é bastante vigorosa... E que no dia do dilúvio Aristóteles não vai na sua arca...
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VR: Com certeza! Mas existem arcas demais para Aristóteles...