Texto publicado em O Jornal de Hoje, Natal-RN, 1998
Sob o signo de câncer (água dá luz), nasceu a dupla de prosadores mais representativos de nossa historiografia literária: o carioca Machado de Assis (21/07/1839) e o mineiro Guimarães Rosa (27/06/1908).
Sincronia astrológica e literária, o autor mineiro nasceu no mesmo ano no qual o romancista carioca morreu, aos 69 anos. Fundador da ABL – Academia Brasileira de Letras, Machado construiu uma obra que transcende os limites dos gêneros literários e os demarcados estilos de época. Arquitetou personagens com a sutileza e a ironia de quem não se contenta com a descrição do real. Fez das discórdias históricas e diferenças culturais as matérias de suas narrativas, transformando “a linguagem da realidade em realidade da linguagem” (João Alexandre Barbosa). De posse do nosso instinto de nacionalidade, ele sabia que o Brasil precisava construir uma identidade lingüística e cultural.
Rosa não deixou por menos: radicalizou na ruptura dos gêneros e na revitalização do idioma. Elaborou um prosa experimental que, ultrapassando o referente do sertão, alcança alto teor poético e amplia as dimensões estética e existencial do sertanejo. Calcado nas tradições literária, mítica e filosófica, o seu texto transcende o espaço da denotação e produz uma poética do imaginário sertanejo, tendo principalmente a oralidade por base, atentando para os diferentes tons e timbres da fala do sertão. De posse dos roteiros sertanejos traçados por Euclides da Cunha, ele recria o homem e o seu espaço geográfico, a partir da imagem da linguagem falada por esse homem. E não a partir da imagem física de quem fala.
Alguns procedimentos literários são comuns aos textos produzidos por ambos os autores. A produção literária e cultural de Machado de Assis antecipa, principalmente a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas (18881), alguns dos procedimentos que irão nortear as principais poéticas da modernidade. Em ambos os autores, portanto, a modernidade e suas idéias de deslocamento e ruptura são signos da maior relevância. Tanto em Machado como em Rosa, a fragmentação e corte caracterizam um texto que, em sintonia com os procedimentos de outras artes (o cinema, por exemplo) rompe com a linearidade da narrativa. Essa ruptura sugere ao leitor outras possibilidades de leituras a partir das novas dimensões de tempos e espaços sugeridas por esses cortes e fragmentos.
A evocação de leituras, o uso de citações, trechos de canções, a reciclagem dos provérbios e ditos populares atestam os intertextos produzidos por Rosa e Machado. Mas são a consciência da importância do leitor e o processo da metalinguagem dois procedimentos que muito aproximam esses autores. O dialogismo estabelecido na ação da leitura (e a preocupação com quem lê), mais a tentativa de explicar a construção do texto dentro da própria narrativa são procedimentos estéticos visíveis tanto em obras como Memórias Póstumas... (1881) e Quincas Borba (1891), assim como em livros como Grande Sertão: Veredas (1956) e Tutaméia (1967).
Drummond lê Machado e Rosa
De volta ao plano astrológico, outra sintonia temporal remete à dupla de escritores: somente na maturidade ambos publicam os seus primeiros livros. Essa lição da maturação textual é bastante útil em nosso tempo, quando grande parte dos jovens autores demonstra excesso de pressa e falta de ritmo na publicação dos seus primeiros textos. Machado, que publicara vários contos, poemas e textos teatrais durante a década de 60 do século XIX, publicou em 1871 o seu romance de estréia – Ressureição –quando contava 33 anos de idade.
Rosa não se lançou mais jovem: os contos de Sagarana só vieram a público em 1946, quando o autor somava 38 anos। Grande Sertão..., o seu primeiro e único romance, só seria lançado dez anos depois. Além de outros textos, Machado legou-nos 9 romances; Rosa, 5 livros de contos e o referido romance. Leitor de ambos, o poeta Carlos Drummond escreveu sobre eles. Do “bruxo” do Cosme Velho que cedia às inquietações e leituras do seu tempo, disse o poeta: “Outros leram da vida um capítulo, tu lestes o livro inteiro”. Acerca do Rosa conterrâneo, diz o mineiro de Rosa do Povo: “Ficamos sem saber o que era João e se ele existiu de se pegar”.