Esteticamente rentáveis, o ciúme e a traição são “personagens” de inúmeros tomos da literatura universal. Independente de classe ou contexto ideológico, esses sentimentos arranham feito farpa e produzem narrativas de finais infelizes que são uma beleza.
Primeiro romance do poeta, professor e ensaísta Marco Lucchesi, O Dom do Crime (Record, 2010) põe em cena um narrador que possui nas “estações do ciúme” e no crime as suas armas. Há no Posfácio a “história de uma traição”. O arsenal do autor é ampliado pela presença do escritor Machado de Assis e do Rio de Janeiro transformados em “personagens”. Esse é um dos procedimentos mais produtivos e contemporâneos de Marco como romancista. Ele trata da mesma forma os fatos e discursos do escritor Machado e Carolina, sua esposa, ou as falas fictícias de Bentinho e Capitu, os personagens de Dom Casmurro (“Brás Cubas fez discípulos”). A esse quarteto, Marco acrescenta um casal gerador do ciúme e do crime: José Mariano e Helena Augusta.
Para re-construir as linguagens desses seis personagens, Marco lê o espaço da Capital Federal e suas águas (“A História terá olhos marítimos”), e empreende um dialogismo oblíquo e nada dissimulado em torno da bio-biografia do Bruxo do Cosme Velho. Essas releituras potencializam a trama do texto, multiplicando-se num intertexto com vários personagens literários e inúmeras figuras históricas da arte e da cultura produzidas no Brasil no início do século XX.
Formas e Linguagens da Cultura Brasileira
Ler O Dom... de Marco é dialogar com o que a nossa historiografia inscreveu de mais produtivo. Ecos, falas e citações de poetas, narradores e personagens da nossa tradição literária e cultural sedimentam a polifonia do seu romance. Nele ouvimos Dom Pedro, Silvio Romero, Monte Alverne, José de Alencar, Visconde de Tauney, Laurindo Rabelo, Joaquim Manoel de Macedo, o Marques de Maricá, Aluísio de Azevedo, Francisco Otaviano e, dentre outros, a escritora potiguar Nisia Floresta.
No Brasil, este contexto do final do século XIX e início do século XX é bastante produtivo para quem cria. Principalmente para quem pesquisa e escreve. A jornalista Anna Lee lançou, em 2006, O Sorriso da Sociedade, narrando as intrigas e os crimes do universo estético da nossa belle époque tropical. A idéia da autora é maravilhosa; o seu repertório é bom. Mas faz falta no seu texto um melhor encadeamento dos fatos. Sabemos que, na narrativa, quem dá o tom é a voz que narra. Falta nO Sorriso... um trabalho de linguagem em torno do tom romanesco.
Relendo semelhante contexto histórico e estético, e dialogando com alguns personagens presentes no livro de Anna, Marco ostenta a sua reconhecida erudição e produz uma tonalidade contemporânea, ao encadear os fatos e as linguagens daquele contexto do 1900 às ações da sua narrativa. Através dessa tonalidade, o autor inscreve, por meio de uma depurada poética da leitura, as linguagens da tradição.
Como o Conselheiro Aires que transita pelos dois ultimos romances de Machado – Esaú e Jacó e Memorial de Aires –, o narrador de O Dom do Crime parece não ter muita vocação para o casamento, adorar visitas e viver “à sombra das estantes”. Cúmplice com o leitor, ele dá a senha do romance, referindo-se às “obras anfíbias... entre a ficção e a realidade”. Neste diálogo que tece entre narrativa e história, a voz romanesca de Marco Lucchesi inscreve-se ao reler o Arquivo de Formas da nossa Tradição literária. Tomara que ele já esteja pensando no seu próximo romance.