terça-feira, 30 de junho de 2009

A chama do ensaio e a simetria da representação






Sobre Duplo Cego


Uma versão desta resenha foi publicada na Tribuna do Norte, Natal, 03/02/1998


“aspira... à arte: misto de estilhaço frio e efervescência”

Armando F. Filho


De belos título e projeto gráfico, Duplo Cego (Ed. Nova Fronteira, 1997) é o 16º livro de poemas do carioca Armando Freitas Filho. Detentor de um Prêmio Jabuti, traduzido para vários idiomas e países, referendado por críticos como Silviano Santiago e Flora Sussekind e curador da obra da poeta Ana Cristina Cesar, Armando atravessou as 4 últimas décadas sem engajar-se em “legendas indeléveis”. Essa liberdade estética e política é responsável pela projeção de uma poética que, sintonizada com as nuanças artísticas e os procedimentos culturais e contemporâneos, destaca-se por um primoroso trabalho com a sintaxe textual em contraposição ao “esteticismo da palavra”.

Duplo Cego traduz, através dessa exatidão sintática (e "com o rigor de tigres"), dois núcleos temáticos acionadas pelo poeta: o exercício do ensaio e as formas da representação. Por isso, os 43 textos do livro dividem-se em duas partes - “Do ensaio” e “Da representação”. Num tempo no qual os efeitos e os procedimentos da representação são questionados e re-dimensionados, e do ensaio cobra-se a imersão de uma força imaginária, através do diálogo entre informações teóricas e formais com experiências subjetivas e reflexões pessoais, nada mais pertinente que estetizar essa problemática crítica num contexto poético. O próprio autor escruta as questões em exercício. Segundo Armando, “...o ensaio, hoje, anda incorporando mais livremente a especulação, a incerteza, a contingência de quem o faz, sem os rigores metodológicos e os fatalismos teóricos de antes” (4ª capa de “Escritos da Inglaterra”, Ana C., Ed. Brasiliense, 1988).

Crença na crítica e na criação balizam este Duplo Cego. Na primeira parte do livro, “Do ensaio”, Armando medra a inscrição de sua poética, através do introdutório “Sobre Pedra”. Nesse poema resplende uma escrita “sem horizonte à mão”, que desdenha “legendas” e demonstra saber de cor a “cara fechada” “da cantaria”. Em seguida, o belíssimo “Escritório” traz os livros como tema. Inscreve os “livros lidos, relidos” e os “cerrados, cegos de mim que vão fundo/ mesmo ficando parados - à espera/ e que apenas as traças atravessam”. Nada romântico, “Limite” sugere um sujeito que ensaia sua experiência estética calcada no rigor poético e na consciência analítica do seu fazer literário: “...não posso escrever/ na linha da arrebentação”.

“Do ensaio” prossegue estetizando a "crítica" poética proposta por Armando. Através de títulos, epígrafes e referências in-diretas, o poeta mantém cerrado intertexto com autores e artistas de diferentes contextos. Ao nomeá-los, ele recorta, de certa forma, um "cânone" particular composto por estilos e estéticas díspares onde se inscrevem Clarice Lispector, Duchamp, J. D. Salinger, Drummond, Murilo Mendes, Ângela Melim, Ana C. e João Cabral. Esses nomes surgem em textos como “Rubin”, “Cesar”, “Lispector” e “Para João, com amor e sordidez”, onde figurações de afeto e chumbo dimensionam o espaço imaginário.


Reciclando o recorte poético
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Na segunda parte - “Da representação” - são poetizados temas e leituras concernentes ao cotidiano, aos afetos e avios. Aqui a existência é re-lida sob o signo da memória, do testemunho, do desejo. Poemas como “Casa fechada”, “Dor” e “Sem nome” ratificam essa escrita na qual o interlocutor é, muitas vezes, personagem e ponto de partida para o desdobramento do tema. São textos sintonizados com os efeitos da simulação, os sentimentos da falta, as formas inacabadas.

Essa sintonia entre efeitos, sentimentos e formas caracteriza um espaço-tempo no qual vivemos “sem o segredo de ferrugem/ das fechaduras/ nem o drama de chaves perdidas/ e dos indistintos dias desertos de escrita/ que passaram sem saber”. Mas sabe-se, no poema “Zerando” (4ª capa), do poeta “tão fixo e travado/ como no começo de tudo”, abrindo “veias” e “gavetas”. Como leitores deste autor que vem publicando a 37 anos, desejamos que suas veias e gavetas continuem abertas e que, página a página, corpo a corpo, revelem-nos a poesia contemporânea de cada dia. Essa abertura ajuda-nos a imaginar respostas e perguntas para o in-questionável questionário “do destino - quem? Qual?” (“Em tempo real”).

Reciclando o recorte vocabular da poesia como faz, por exemplo, Augusto dos Anjos no seu belo livro Eu (1902) ao utilizar-se de vocábulos da esfera biomédica, Armando introduz no cenário estético e cultural deste final do século o seu Duplo cego (1997). Transportado do contexto da medicina para o universo artístico, Duplo Cego deixa de ser o teste médico no qual nem o pesquisador sabe quem está recebendo o produto ou o placebo, nem o paciente sabe quem está administrando. Essa relação médico-produto-paciente sugere, de certa forma, a relação autor-obra-leitor e, ao transformar-se em título deste volume, o teste aciona uma das mais caras atribuições do bom poeta em todas as épocas: a necessidade de reciclar o idioma, de dar novo entusiasmo à linguagem. No belo teste de formas e linguagens propostas por Armando, o leitor percebe que em terra de cego quem lê o duplo vê.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Lirismo sem transcendência








Entrevista publicada em 2004 no Fórum Virtual O que é literatura – PACC/UFRJ - http://www.pacc.ufrj.br/literatura/arquivo/index.php
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O poeta, ensaísta e professor de Estudos da Tradução Paulo Henriques Britto (PUC – Rio) é reconhecido como exímio tradutor. Nas três últimas décadas, ele traduziu autores de diversos contextos e das mais diferentes estéticas, como: John Donne, Emily Dickinson, Wallace Stevens, Elizabeth Bishop, Susan Sontag, John Updike, Frank O'Hara, Philip Roth, Thomas Pynchon, Ian McEwan, Henry James, Jack Kerouac, Faulkner e Byron, dentre outros. Ao todo, são mais de 80 livros traduzidos.
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Nascido no Rio de Janeiro, em 1951, ele é autor de quatro livros de poesia: Liturgia da matéria (1982), Mínima lírica (1989), Trovar Claro (1997) e Macau (2003). Com esse último, lançado pela Companhia das Letras, o autor recebeu o prêmio Portugal Telecom de Literatura em 2004 e o Prêmio Alceu Amoroso Lima - Poesia 2004.
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A seguir, o poeta, contista e tradutor lança o seu olhar sobre a poesia contemporânea. Autor que considera a leitura de Dickinson, Drummond e Pessoa, dentre outros, como parte importante do seu "processo de formação intelectual, emocional e moral", Paulo Henriques destaca, dentre outros temas, os procedimentos estéticos de sua poética. Além disso, fala sobre Paraísos Artificiais, o seu primeiro livro de contos, lançado em 2004.
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NG Dentre os autores acima traduzidos, com quais deles é possível estabelecer relações estéticas com a poesia que você produz e por quê?
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PHB: Desses poetas, o que mais marcou meu trabalho foi provavelmente Stevens, porque o descobri por volta dos vinte e poucos anos, quando ainda estava desenvolvendo um estilo próprio. Dele o que mais guardei foi o apreço pelo apuro formal, mas além disso tenho em comum com Stevens uma visão do mundo que recusa qualquer transcendência. Traduzi Byron e Bishop quando já tinha definido minhas opções estéticas, mas sem dúvida os anos que passei trabalhando com as obras deles tiveram o efeito de reforçar minha predileção pela associação entre forma fixa e linguagem coloquial.
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NG Você vê utilidade no fazer poético, ou compartilha da leitura leminskiana da poesia como inutensílio?
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PHB: A meu ver, a arte não tem nenhum objetivo que não o de proporcionar prazer estético. Mas é claro que ela pode fazer muito mais do que isso, inclusive ajudar o fruidor a desenvolver uma visão menos estreita da existência e do mundo.
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NG Embora em contextos e formas diferentes, você utiliza, como Byron, "a língua coloquial de sua classe e de sua época". Na sua poesia, a linguagem cotidiana e seus ritmos dão o tom, como ouvimos explicitamente em textos como "De vulgari eloquentia", de Macau (ler abaixo). De onde advém essa altíssima taxa de oralidade que perpassa toda a sua poética?
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PHB: São várias fontes, mas as principais são os meus mestres modernistas - Pessoa, Bandeira, Mario, Drummond, Cabral, bem como os poetas modernos de língua inglesa; e a grande música popular dos anos 60- Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e tantos outros, além de grandes letristas do rock, como Bob Dylan e Jim Morrison.
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NG – Além do tom reflexivo, sua poética ostenta uma forma metalingüística que muito elucida seu processo de criação. Gostaria que você comentasse acerca desse e de outros procedimentos estéticos de sua poética.
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PHB: Creio que o gosto pela metalinguagem é comum à maioria dos poetas brasileiros (e não só os brasileiros) do século XX. É ao mesmo tempo sinal de consciência profissional - pois poesia é, acima de tudo, linguagem, e nada mais lógico do que ela voltar-se sobre a linguagem - e sintoma de crise - pois na medida em que a poesia se volta cada mais sobre si mesma, mais estreito se torna seu público. Embora pratique a poesia metalingüística, cultivo também a tradicional temática do lirismo, ainda que de modo contido e autoconsciente. Tento evitar os excessos do cerebralismo cool que caracteriza parte da produção contemporânea (que parodio em alguns poemas do meu último livro) e também os excessos de um neo-romantismo que começa a se afirmar nas últimas décadas.
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NG Quais poetas e prosadores você destaca na literatura brasileira contemporânea?
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PHB: Temos muitos nomes excelentes no Brasil hoje. Para só citar alguns, e me restringindo aos com menos de sessenta anos, entre os poetas eu destacaria Carlito Azevedo, Cláudia Roquette-Pinto, Nelson Ascher, Eucanaã Ferraz, Antonio Cicero, Alexei Bueno e Heitor Ferraz Mello. Na prosa, temos, entre muitos outros escritores de qualidade, Bernardo Carvalho, Milton Hatoum, Cristóvão Tezza, Antonio Carlos Vianna e André Sant’Anna.
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NG Gostaria que você falasse sobre Paraísos Artificiais – o seu primeiro livro de contos.
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PHB: Comecei a trabalhar num livro de contos em 1972, quando estudava cinema na Califórnia. Cheguei a aprontar cerca de trinta, mas já no Brasil comecei a retrabalhá-los, e no final só sobraram um ou dois do tempo dos originais, mais uns cinco que fiquei escrevendo e reescrevendo nos anos 70. Nos anos 90, publiquei alguns deles em revistas literárias e escrevi mais um, e a Companhia das Letras se interessou em lançá-los em livro. No final de 2003 aprontei rapidamente uma novela, "Os sonetos negros", e dei o livro por completo, mais de trinta anos depois de iniciá-lo. Como se pode imaginar, o livro não tem uma unidade de estilo ou de visão; os primeiros contos foram escritos por um rapaz de vinte e poucos anos, e a novela por um homem com mais de cinqüenta anos. Nos primeiros são visíveis as presenças de Beckett e Kafka, os escritores que eu mais lia na época; "Coisa de família", que levou cerca de dez anos para ficar pronto, é do tempo em que eu estava descobrindo Gombrowicz; e “Os sonetos negros” foi sugerido pela leitura e tradução dos contos de Henry James e também pelo romance Possessão de A. S. Byatt, que traduzi em 1992.

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DE VULGARI ELOQUENTIA

A realidade é coisa delicada,
de se pegar com as pontas dos dedos.
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Um gesto mais brutal, e pronto: o nada.
A qualquer hora pode advir o fim.
O mais terrível de todos os medos.
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Mas, felizmente, não é bem assim.
Há uma saída – falar, falar muito.
São as palavras que suportam o mundo,
não os ombros. Sem o "porquê", o "sim",
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todos os ombros afundavam juntos.
Basta uma boca aberta (ou um rabisco
num papel) para salvar o universo.
Portanto, meus amigos, eu insisto:
falem sem parar. Mesmo sem assunto.


domingo, 28 de junho de 2009

Nada de mergulho: sobre Macau




Uma versão desta resenha foi publicada em 2004 no Fórum Virtual O que é literatura – PACC/UFRJ
http://www.pacc.ufrj.br/literatura/arquivo/index.php


A escuridão começa pelas bordas
e vai seguindo até chegar ao centro,

lá onde uma semente aguarda a hora,
tranqüilamente, sem medo do escuro:
pois é da natureza das sementes

se afastar da luz, mergulhar no úmido,
sepultar-se por toda uma estação.
No entanto, neste caso a escuridão
é de outra espécie, mais seca e mais rasa,

uma que avança devagar e sempre,
alheia a qualquer propósito ou causa,
Até só restar pedra sobre pedra.

Mas a semente espera. Ela é insistente,
e acerta mesmo sem saber que erra.


I

Lançado em 2003 pela Cia das Letras, o livro Macau sugere, já na superfície luminosa de sua capa, e na portabilidade do seu projeto gráfico, o que aguarda o senhor leitor hipócrita e cúmplice do poeta e tradutor Paulo Henriques Brito:

Nada de mergulhos. É na superfície
que o real, minúsculo plâncton, se trai.


Esses dois versos - de um dos DEZ SONETÓIDES MANCOS, o VI mais exatamente - estetizam aquilo que a orelha de Macau entrega: o poeta alimenta-se da matéria nossa de cada dia. Sua escrita brota bem ali, do "cais raso da subjetividade". Também vem da orelha do livro a audição de uma outra senha desta poética que é um elogio à oralidade ao conectar "rigor formal e desordem cotidiana".

Essas conexões entre o "raso" - a superfície, a pele - e o que a estrutura corporal capta e fabrica, em termos de forma estética, é visível na grande maioria dos poemas. Isso pode ser aferido, por exemplo, no cabralino poema V da FISIOLOGIA DA COMPOSIÇÃO:


É preciso que haja uma estrutura,
uma coisa sólida, consistente,
artificial, capaz de ficar
sozinha em pé (não necessariamente
exatamente na vertical), dura

e ao mesmo tempo mais leve que o ar,
senão não sai do chão. E a graça toda
da coisa, é claro, é ela poder voar,
feito um balão de gás, e sem que exploda
...


O leitor não se engane: nesta poética onde a "coisa" voa, não há sentimento alado nem coração algum explode. Macau é território da contenção e da brevidade de quem traduziu, dentre outros poetas, Emily Dickinson, Wallace Stevens e Elizabeth Bishop. Espaço da semente contida que aguarda de forma irônica, humorada, na umidade abaixo da pedra. Da leitura de DE VULGARI ELOQUENTIA, por exemplo, emerge a imagem dos ombros drummondianos que foram estetizados como suportes existenciais do século XX, no tempo em que a vida era uma ordem. Na poética de Paulo Henriques Britto os suportes são outros. Em seu texto, nenhum "José" "está sem assunto". Isso acontece porque são as palavras - e não os ombros - que suportam o mundo; este mesmo mundo que o poeta outorga ao desejante leitor, num dos DEZ SONETÓIDES MANCOS, indagando se ele, o senhor leitor, vai "comer" "aqui e agora" ou prefere "pra viagem". O "sonetóide" sugere um possível diálogo com o poema "Cantiga de Enganar", do livro Claro Enigma, onde o poeta de Itabira treina leveza, aprende a rir e diz: "O mundo não vale o mundo, meu bem".

Humor e ironia dialogam nessa seqüência inicial de textos que inclui BAGATELA PARA A MÃO ESQUERDA e as TRÊS TERCIANAS (principalmente a primeira). A leitura desses poemas sugere ser essa metalinguagem mais produtiva e bem humorada, caso o leitor possua repertório para reler alguns dos procedimentos estéticos caros às poéticas da modernidade que atravessaram o século XX.


II


Em "Biodiversidade", primeiro texto deste volume, uma "fala esquisita" sugere uma voz "do outro lado da linha formigando de estática". Inscrita num invisível espaço úmido tal qual a semente em seu mergulho ao afastar-se da luz, essa voz possibilita ao leitor um intertexto com outras vozes díspares. Vozes que se inscrevem a partir de diferentes figurações espaciais. Essa inscrição não rasura a superfície ("só o raso é cool"), mas o mergulho expressivo, aqui neste "império" sonoro onde "a dor é kitsch" e o que se sente, atropelado. Nestes textos, o espaço faz aflorar gestos feito sementes que avançam em diferentes ritmos, alheias a quaisquer propósitos ou covas. Pactos, lábios e epifanias podem resgatar, entre o amor e o asco, a porção romântica que ronda o leitor de poesia contemporânea:

Porque nenhum descobridor na história

(e alguém tentou?) jamais se desprendeu
do cais úmido e ínfimo do eu.

Desse cais, o poeta traduz a afetiva lição do humor e da curva; remete ao mundo sua carta historiando múltiplos espaços e diferentes concepções temporárias. Diferentemente do poeta aristotélico, sua história não "narra" o futuro de pretérito, mas os vários tempos de que se fazem sua poesia. Principalmente o presente. E mesmo que o seu verbo encerre algumas seqüências de mini núcleos temáticos repletos de não e nada e nunca, ele se anuncia prenhe de sementes e suportes. Porque esse "descobridor" que não se desprende de seu "cais", navega as águas da alteridade "à mercê do latejar de um músculo". E esse latejar traduz uma certa oralidade cotidiana na qual o leitor deste início de milênio se reconhece muito bem. E vivo.


sábado, 27 de junho de 2009

Na esquina de todos os tons




Publicado no jornal O Poti, Natal, 29/10/2000



Neste final de século, a leitura do espaço e do sentido da visão ganharam dimensões inusitadas. A arte e a pele contemporâneas parecem muito mais atentas ao que visivelmente as circundam do que às abstrações temporárias e metafísicas. Por isso tem sido cada vez mais constante a leitura de uma noção do espaço sobreposta ao movimento do tempo. Parece claro: ser da ordem do visível é parâmetro para lermos o milênio que se anuncia.

De olho nesse tipo de visão centrada na pele e na dimensão espacial, João Bosco lança Na esquina (Sony Music) - seu 16º álbum. O projeto dá continuidade à parceria iniciada em As Mil e Uma Aldeias (1998) com o poeta Francisco Bosco. Pai e filho encontram-se Na esquina para sonorizar e celebrar o potencial lírico-imagético que transita por este temido e desejado espaço urbano.

Na esquina cartografam-se cores e gestos, peles e músculos; são audíveis os fragmentados tons urbanos que sonorizam a trilha do transeunte. Haja “palavra que batalha”; salve tanto ritmo: cariri cambará tororó mambulê... Com quantas esquinas e gêneros musicais desenha-se um país? Samba, rumba, bolero, reagge, balada... Esta é a esquina de todos os tons. Aqui alguns ritmos podem dobrar uma esquina estética, anunciando mutações musicais. Assim sendo, um samba transforma-se em frevo (no belíssimo “Dia de Festa”); uma melodia “cheirando a Cuba” anuncia algo “Beirando a rumba”. Dessas mutações surge o primeiro reagge do repertório de João - “Mama ‘Palavra” - canção que ritma ideologicamente o signo sócio-cultural que todo verbo sugere (e faz imaginar Elis Regina entoando um dos gêneros ausentes no seu repertório). Além desses ritmos, destaca-se um antigo “True Love” porteriano que se transforma, nesta esquina sonora, numa bosquiana balada que diz sua “razão de ser” na novela das sete: “Amar, amar”.

a nobreza do lamento ancestral

Na esquina resgata do imaginário latino o bolero, a balada e sua lírica tradição na história da MPB. “De coração na mão”, João simula “Passos de amador” - canção inserida na linha da “nobreza romântica” que possui em Dolores Duran um de seus ícones. Em seguida resgata-se, nesta esquina do milênio, o terreiro de Clementina de Jesus. Esse resgate musical acontece através de um batuque no qual o canto de João empresta à palavra de Francisco o lamento ancestral, estetizando a perda: “Eu enfeitei tua palavra/ E fui correndo te esperar/Lá na esquina da promessa/ com quem manda acreditar”.


Na esteira de sambas históricos como “Incompatibilidade de Gênios “ e “Nação”, a canção “Doce sereia” celebra a exuberante alegria desses antigos clássicos, com um refrão cuja oralidade dá notícias de nossa cordial tradição tropical: “Vamos juntos nadar/ Na maré cheia/ Quem não morre no mar/ Morre na areia”. Ressalte-se ainda o pujante arranjo de Jaques Morelenbaum e o “auxílio luxuoso” de Marçal (cuíca, caixa, agogô e surdo), presentes em outras faixas.

Uma releitura de nossa cordialidade pode ser ouvida nesta esquina - território musical onde acordes os mais variados convivem de forma democrática com outros ritmos e os belos solfejos de João. Nesse espaço de ruptura musical deparamos - de ouvido - com o contemporâneo canto falado de “Ditodos”. Mistura de samba-rap, esta canção resgata a tradição musical brasileira de reler ditos e máximas, pondo na boca do ouvinte a palavra “feito uma moeda condenada”. Assim, “Pé de caixeiro é bola de cristal”; e se quem brinca com água dá luz, “Quem planta fogo/ Colhe pé de queimadura”.

Apesar de apontar para a cartografia do cenário urbano, Na esquina sinaliza o espaço sertanejo em canções como “Cego Julião” e “Flor de Ingazeira”. Nesta última melodia entoam-se espaços e esquinas de cidades nordestinas como Mossoró, Caicó e Juazeiro. Na musical geometria destes lugares, o poeta desenha o “mapa das manhãs paradas do amor”, sem esquecer o “sol que persegue o retirante” na sua ressecada odisséia nordestina. O ritmo da forma é também audível na sutilíssima “Flor de Ingazeira”. Brotada na oralidade do sertão ela floresce, “na esquina”, em meio à sonora paisagem concreta.

No solo interno no qual se desenvolve a sintaxe dos afetos e se constrói a geometria das identidades do novo milênio, o corpo poderá a tudo ler independente do tempo. Se o contemporâneo plugou-se à pele do espaço e às formas do virtual, qualquer coisa pode estar em qualquer lugar: “Tá no celular, tá no jornal, tá no andar”. Pode estar na palma ou na linha das mãos que mapeam o encarte deste belo CD. Pode estar bem ali zanzando sarabandando, como forma de dobrar e inscrever a esquina sonora do milênio.


sexta-feira, 26 de junho de 2009

Ilza contra a melancolia da letra
















Jackson Pollock

Entrevista publicada nO Jornal de Hoje, Natal, 06-07/03/1999


A profª. natalense Ilza Matias de Sousa viveu durante quase 3 décadas entre São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Graduada em Letras Clássicas (UERJ), defendeu na UFMG, em 1987, Figuras e cenas brasileiras: Leituras semióticas de Papéis Higiênicos - dissertação de mestrado centrada na obra do poeta Sebastião Nunes. Em 1993 ela defendeu, na mesma UFMG, Arte Amorosa e Devoração Literária - tese de doutorado acerca das tendências da ficção contemporânea.

Atualmente, Ilza é professora do Departamento de Letras da UFRN, e dá aulas no Curso de Mestrado em Literatura Comparada. Sob sua orientação várias dissertações foram defendidas com preceitos e conceitos que, além de qualificar a produção dos alunos, atestam o grau de competência da professora. Produtora de um texto sintonizado com as vertentes contemporâneas da academia, a profª. Ilza Matias publica em jornais, livros e revistas do país. Dentre as publicações recentes, destaca-se “A astúcia do dragão e a sabedoria da raposa: o alegre cinismo da ficção borgiana” (Borges em dez textos, Sette Letras, RJ, 1998). Indicada pela Revista CULT, a obra traz textos de autores nacionais e internacionais.

Para esta primeira entrevista concedida a um jornal natalense, foram realizadas quatro sessões na UFRN e no Hotel Residence, onde Ilza reside. Ali, em meio a viajantes de passagem e hóspedes outros, ela convive com Foucault, Derrida, Baudrillard, Marc Augé, Otávio Paz, Benjamin, Barthes, Hannah Arendt, Freud, Lacan, poetas, cientistas, místicos e escritores. Sintonizada com a velocidade dos autos na av. Salgado Filho e com o ritmo de seu exílio interno, Ilza cultiva a espiritualidade e o humor na escrita e no processo de orientação acadêmica. No corpo, ela porta tons coloridos; na mente, o antídoto contra a melancolia dos discursos canônicos. Próximo roteiro: um curso sobre o imaginário dos viajantes na literatura.

A seguir, a fala da profª. que, de olho na “paisagem eletrônica” e nas mutações contextuais, vê no horizonte da ficção a literatura como lugar do sujeito humano e de sua inteligência imaginante, em face às inteligências artificiais que produzem imagens digitais..

Nonato Gurgel: Recentemente a Editora Sette Letras lançou Borges em dez textos, sendo um desses textos de sua autoria. O que possibilita o “alegre cinismo da ficção borgiana”?

Ilza Matias: Talvez o fato de Borges ser latino-americano, argentino ... E, como todos nós, nascido entre espelhos e máscaras coloniais que transformam os processos de identidade, inclusive literários e artísticos, em uma espécie de teatro, um drama latino-americano (algumas vezes uma grande farsa nacional, outras, representação trágica, cruel, existencial e humana). O alegre “cinismo” da ficção borgiana - assim o concebo no ensaio publicado em Borges em dez textos - é expressão de uma prática ficcional que implica um profundo reconhecimento disso.


NG: Como se dá esse reconhecimento na "letra" borgiana?

IM: Um (re)conhecimento ativo sustentado pelo alegre cinismo, sofisticado e consciente de sua própria literariedade, via aberta, em primeira instância, por um método poético (o termo aqui não tem a ver com o sentido estrito de “poesia”, tradicionalmente circunscrito a versos, sons, rima, metro). Uma imaginação poética que faz da obra do autor mais que um testemunho dos espelhos que refletem nossas máscaras e nossos rostos mestiços: uma intérprete, em última instância, que subverte através do humor. Esse é o theatrum philosoficum encenado, na modernidade, por Borges.


NG: Na sua opinião, qual é o papel que Borges desempenha neste theatrum?

IM: Ele desempenha o papel de um filósofo cínico, ao modo de filósofos da antigüidade grega, indiferente às conveniências sociais, escapando de enveredar num humanismo impotente ou de conferir à ficção a capacidade de salvação da realidade. O alegre cinismo borgiano desmascara e fere de morte o discurso “pedagógico” da nação e do sujeito nacional, articulando um discurso performativo (cf. HOMI BHABHA) que intervém e lança sombras sobre a ilusão de transparência que aquele primeiro engendra. A alegria que se desprende da atuação borgiana assemelha-se às notas agudas de um violino, num canto libertador, um tanto de tango, um pouco de pátria, muitíssimo de sutileza, sagacidade e criação artística, nas noites argentinas.


NG: Com qual autor brasileiro você faria uma paralelo em relação a esse “alegre cinismo” que põe em jogo o “discurso pedagógico”?

IM: De pronto me vem o nome de Oswald de Andrade. A antropofagia oswaldiana, a meu ver, traz o mesmo caráter de encenação de onde salta o alegre cinismo autoral para instaurar o teatro de mímicas da cultura brasileira, também rompendo com a ilusão da verossimilhança realista na discussão dos acontecimentos históricos coloniais e pós-coloniais.


NG: No "Manifesto Antropofágico", Oswald diz: "Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade”. Nessa sua leitura, como ele estetiza esses “acontecimentos históricos”, já que seus roteiros antropofágicos não se atêm a conceitos de realidade objetivante e independente do sujeito observador?

IM: Com prodigiosa imaginação criadora, Oswald coloca-nos diante do paradoxo do espelho, da realidade e ao mesmo tempo irrealidade das imagens que nascem e morrem no mesmo ato, através de nossos processos de identificação nacional e de nossas confrontações culturais. O jogo de máscaras e reflexos remete-nos a uma identidade problemática encontrando-se com a alteridade em cenas múltiplas e fugidias. Oswald não cria o mito da pátria. Usa recorrentemente a perspectiva da criança, a dimensão da infância a fim de desautorizar uma possível militância na sua postura crítica. É o homem alegre que escreve.
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Figurações da ficção contemporânea


NG: Com base nas reflexões de sua tese Arte Amorosa e Devoração Literária, como você analisa a ficção contemporânea?

IM: Nesta tese, busquei pensar na ficção contemporânea como protagonista de uma história de relações e vínculos interculturais que se dariam sob a forma de eróticas e anteróticas entre autores, literaturas e povos: amor, amizade, filias, fobias, manias compondo o imaginário dessa produção que – situada dos anos 70 para cá – se converteria num desejo de imitar o outro (pastiche), mas num campo de ambigüidade mimética atravessado por desvios, rupturas, por um despedaçamento desse outro que é imitado. Isso feito com singular subjetividade, extrema liberdade de criação e variedade de perspectivas, desfazendo qualquer identificação equívoca com uma ficção epigônica que assentasse suas práticas no modelo servil entre mestres e discípulos.


NG: Nesse exercício de subjetividades, o que você estudou ao eleger a ficção como personagem dessa história?

IM: Estudei as figurações que essa ficção toma do ponto de vista institucional e simbólico enquanto máquina literária (produção, circulação, editoração, recepção). E do âmbito de uma dramática autoral, feita de jogos e pactos imaginários e simultaneamente de desdobramento de projetos ficcionais que tratam a experiência do tempo e da história em representações fragmentárias, procurei traçar uma configuração da “casa de ensaios”, enfatizando aspectos sociais e a “imagerie” cultural. Isso com base em parentescos fictícios, noções de herdeiros, fortunas críticas, domínios literários, controle de bens simbólicos. Uma “Casa de las Americas” flutuante, sem centro e sem periferia fixas, sem dentro e fora delimitados, numa localização territorial móvel.


NG: De olho nesses princípios de descentralidade e de mobilidade, quais autores você reuniu nesta “Casa de las Americas” flutuante?

IM: Reuni ali Osman Lins, Silviano Santiago, Sérgio Sant’Anna, João Gilberto Noll (brasileiros), Ricardo Piglia (Argentino), Julien Barnes (europeu). Hoje, seis anos depois, vejo que minha visão crítica foi muito coerente e conseqüente. Continua dificílimo circunscrever um único paradigma estético, literário, e em vista disso, estabelecer elementos canônicos. A polivalência e pluralidade da ficção contemporânea elaboram o que chamo “narrativas de passagem”, no sentido benjamiano de representações fugidias e múltiplas, exigindo outra noção de duração, escritura e novos guiamentos críticos. É o que posso dizer. Agora, só me resta acrescentar outros nomes brasileiros à lista (minha e arbitrária) de autores da ficção contemporânea: Clarice Lispector (o legado), Nélida Piñon, Lya Luft, Hilda Hilst, Caio Fernando Abreu (o legado).


NG: Além desses autores, como orientadora acadêmica você tem trabalhado com autores díspares como Augusto dos Anjos, João Cabral, Sérgio Campos, Graciliano Ramos, Adélia Prado, Manoel de Barros e Ana Cristina Cesar. O que norteia ou caracteriza sua orientação nestes trabalhos?

IM: O que norteia meu trabalho de orientação acadêmica de dissertações e teses sobre autores díspares entre si? Primeiro, o reconhecimento das diferenças. Segundo, o desejo de não me encerrar em modelos acabados e fixos. Isso traduz uma inquietação que trago dentro de mim, na qual descobri vias de acesso ao crescimento e à maturidade intelectual, além de possibilidades criadoras de pesquisa e ensino. Terceiro, a necessidade que a área de literatura comparada hoje apresenta, ela própria marcada pela polifonia, multidiscursividade e pluridisciplinaridade. Depois, outras razões (inconscientes) que não saberia alinhar e que me constituem.


NG: Dentre essas “razões”, existe alguma de que já tenha consciência?

IM: Conduzir a interrogação crítico-literária sempre mais adiante numa errância mental, íntima, “romântica” - na medida em que isso não se coaduna com as subjetividades humanas produzidas pelo capitalismo - poderia ser mais uma –, dentre outras motivações, as quais organizam e dão coerência à minha atividade de orientadora. Bom, há mais que leituras, lições, falas; há sobretudo, toda uma vida que se vê convocada: a minha e a do outro – o orientando. Espelhando-me em Lacan (relacionado a Freud): esta tarefa não me deixa outra escolha senão entregar-me a ela e dela me ocupar.


NG: Pensando nas leituras, posturas e falas, por que as questões teóricas colocadas pela pós-modernidade causam tanta celeuma nos meios acadêmicos e literários?

IM: Essa pergunta é explosiva! Vejamos: Porque eles (os meios acadêmicos e literários) são assaltados por seus próprios fantasmas – a paternidade textual, a pluralidade de sentidos do texto, a especialidade da literatura (sua literariedade) são alguns deles. As desconstruções do signo literário, as disseminações de sentidos, as hibridizações, os modos de leitura e escritura descontínuos, não lineares. A crise da literariedade, da auto-refencialidade da literatura através de processos como o da alegoria moderna construtiva, ativa, associando coisas dissimilares em montagens e colagens inesperadas. Ruptura do original e da cópia. Tudo isso (e mais) provoca escândalos lógicos e mitológicos. Para completar, o horizonte do cânone fica comprometido. Não há como formular parâmetros e estabelecer pressupostos metodológicos ou formalizações estáveis, garantindo-se uma eficácia universal.


NG: Isso é bom para a literatura?

IM: Se isso é bom ou ruim, não sei responder. A mim, não me cabe o papel de verdugo da pós-modernidade, nem a função de untar com santos óleos teorias, obras ou autores.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Cascudo pela lente do ensaio





Resenha publicada nO Jornal de Hoje, Natal, 1998


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Acabo de ler, numa revoada, um livro.
Refiro-me a Asas de Sófia / Ensaios Cascudianos (Fiern-Sesi/Natal, 1998) - texto arguto do professor e ensaísta Humberto Hermenegildo, classificado no Concurso Nacional de Temas Câmara Cascudo.

Preenchendo uma lacuna na vida literária da província, onde muitas vezes fala-se sem densidade crítica e/ou teórica, Humberto constrói um texto cujas “arquitextura” simples e montagem metalinguística passam para o seu leitor o ponto e as luvas. Trata-se, portanto, de um ensaio sobre ensaios. No caso, a leitura da prosa ensaística de Câmara Cascudo, produzida na década de 20.

Aqui o leitor não é embromado com idéias mirabolantes nem excessos teóricos. Ao contrário: o autor vai direto ao tema delimitado - às asas do pássaro -, brindando o leitor com um texto cujo vôo engendra uma noção precisa e sucinta do que deseja tratar e/ou informar: ... a idéia de que toda a produção intelectual de Câmara Cascudo enraíza-se no processo criativo exercitado por ele ao longo dos anos 20, e com um método (im)preciso: o método ensaístico (p. 17).

1º perfil literário do RN

Na primeira parte do livro - “O ensaio como elemento construtivo na obra de Câmara Cascudo”, o autor lembra que, através da literatura, Cascudo inicia sua produção bibliográfica, em 1921, com a publicação de Alma Patrícia - livro de crítica impressionista e admirativa (Cascudo), que traça um primeiro perfil literário do RN. Esta obra cascudiana ressalta a importância de, dentre outros, o poeta Henrique Castriciano, influenciado por autores como Baudelaire, Mallarmé, Verlaine... e Ferreira Itajubá. Este último, é lido por Cascudo como "...um sopro vindo das montanhas ....naquele ambiente abafado de lirismo e pieguice".

A leitura deste primeiro capítulo expressa para o leitor o duplo e pioneiro papel de Cascudo, em relação à literatura potiguar. Segundo Humberto, Cascudo executou, na década de 2O, um programa cultural que tinha dois eixos básicos: a atualização da província que se modernizava e a pesquisa da cultura regional... (p. 17). Árdua e desafiante, a tarefa de Cascudo: situar o RN no contexto da modernidade, sem deixar de voltar-se para o legado da cultura regional e sua tradição.

“Um ensaísta em Natal” - a 2ª parte do livro - ressalta a importância estética de Câmara Cascudo e Jorge Fernandes. Esses autores são lidos como marcos representativos de um contexto no qual o RN começa a figurar no cenário literário brasileiro (no capítulo anterior, Humberto ressaltara a poeta Auta de Souza - único nome a sobressair-se, até então, no cenário simbolista nacional).

Segundo o autor, o componente literário permeia a produção de Cascudo, e em toda a sua obra são indissociáveis as marcas do historiador e do literato. Como exemplo dessa indissociabilidade, Humberto comenta o relato “Veados de Santo Humberto”, do livro Histórias que o tempo leva (1924). O referido relato constrói-se a partir de dados referenciais (a invasão holandesa) e elementos imaginários (a lenda dos 3 “veados fantásticos” em noite de lua “no Morro Branco”). Aqui, Humberto vale-se de Adorno para justificar o procedimento do narrador, que parece fugir do campo do ensaio (o que expressa a limitada visão adorniana, em relação ao gênero ensaístico). A fuga do campo ensaístico seria motivada pela mescla de informações reais e experiências imaginárias, presente no texto de Cascudo; o que nos remete a outro belo título de sua bibliografia: Prelúdio e fuga do real, de 1974.

Denunciando um “quê de modernidade” nos escritos cascudianos dos anos 20, Humberto encerra a 2ª parte de seu ensaio, e na parte seguinte analisa “A experiência modernista.” Refere-se, de início, a Mário de Andrade e a sua predileção pelo livro Histórias que o tempo leva; adota a noção de “cosmopolitismo” advinda de Jorge Schwartz. Essa parte revela também a admiração de Cascudo por Pernambuco - “o mais brasileiro de todos os estados” e a sua antevisão do romance regionalista de 30, ao sugerir que o romance "...só representará o Brasil se sair do Norte".

Num dos momentos mais elucidativos de seu texto, o autor explicita a difícil tarefa de Cascudo com os autores modernos paulistas (leia-se Mário de Andrade), menciona a sua publicação na “Revista de Antropofagia” n. 4 (1928) e a difícil dicção de modernidade perseguida pelo autor potiguar. A partir daí, Luís da Câmara Cascudo pesquisará elementos que, da cultura, serão uma figuração do atributo nacional e popular do Modernismo brasileiro (p. 59), conclui o autor.

“Uma rede armada no universo” trata da amplitude das noções e experiências da modernidade vivificadas por Cascudo. Ressalta as viagens dos modernistas pelo interior do país e reproduz takes do roteiro traçado por Mário e Cascudo (Açu, Caraúbas, Martins, Macau...). Resgata também instantâneos de intensa poeticidade registrados por Cascudo, como este de “A Igreja do Rosário de Acari”: "Duas janelinhas olham a praça bonita, moderna". Ou este outro instantâneo, escrito ao penetrar Cascudo na aspereza da paisagem oestana: "O Oakland trepa nas pedras cabritando equilíbrios cômicos; Que pulos!" Num belo momento de Asas..., Humberto vê a viagem - o “método ensaístico” de Cascudo - como forma de leitura. E utiliza-se do próprio ensaísta potiguar, que cita Sarmiento, para concluir esta 4ª parte: "Entendi viver a frase de Sarmiento: - Las cosas hay que hacerias, mal, pero, hacerlas. Por isso tentei esta viagem ao redor da rede-de-dormir".

Entre antena e raiz

Alçando vôo na biografia cascudiana, Humberto conclui seu ensaio. Demonstra ser o texto do autor de O tempo e eu escrito sob as influências da forma ensaística. Assume ser a biografia de Cascudo uma obra que, representando a coletividade potiguar, insere-se no plano da nacionalidade. Essa inserção possui um nome: tradição. Essa conclusão expõe a tensão existente numa produção que busca a permanência de uma tradição e a imposição de uma Modernidade... (p. 80).

Finalizando este sucinto e reflexivo texto, Humberto adverte que a obra cascudiana carece de muitas re-leituras. Generoso, sugere, para os responsáveis por pesquisas posteriores, “Sete proposições e um Cascudo”. Dentre essas, destaca-se uma que problematiza a análise da obra, no diálogo com o movimento modernista. A partir disso, indaga Humberto: "...como se opera, na obra de Cascudo, a transposição do popular para o erudito, do primitivo para o civilizado, do rural para o urbano, no contexto de uma sociedade desigual?" (p. 86)

Belo vôo, Humberto. A luz irresistível que matara o pássaro, agora nos ilumina. O que morreu, reproduz. Asas para quem voa “entre o fascínio da Modernidade e a necessidade da tradição” (p. 80).

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Quem filmou Cascudo?



O RN na rede


Publicado nO Jornal de Hoje, Natal, 1998



Faço questão de ser tratado por esse vocábulo que tanto amei: professor. Os jornais, na melhor ou na pior das intenções, me chamam folclorista. Folclorista é a puta que os pariu. Eu sou um professor. Até hoje minha casa é cheia de rapazes me perguntando, me consultando.


(Câmara Cascudo)


Associar o escritor Câmara Cascudo (1898 — 1986) ao contexto da modernidade tornou-se lugar comum. Autores como Veríssimo de Melo, Tarcísio Gurgel e Humberto Hermenegildo escreveram sobre as relações e experiências do nosso melhor escritor com os autores modernos e com os procedimentos artísticos e culturais da modernidade. Mesmo o pioneirismo e a conexão de Cascudo com as vanguardas, já foram analisados por Anchieta Fernandes, no Jornal O Galo, Agosto/98.

A leitura das Cartas de Mário de Andrade a Luís da Câmara Cascudo atesta o desdém do poeta paulista por autores como Marinetti, por exemplo, e registra a perene admiração devotada a Cascudo (com exceção de uma certa “carta terrível”, como diria Veríssimo de Melo). Pena que a correspondência de Cascudo para Mário, depositada no IEB - Instituto de Estudos Brasileiros, da USP, continue inédita; o que dificulta o nível de entendimento daquela relação (entre os dois autores), e dificulta também a leitura das conexões do RN com o contexto da modernidade nacional.
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"Meu pai dizia que a rede fazia parte da família.
A rede colabora no movimento dos sonhos."



Ao nosso mestre que se considerava um homem "mais de fé do que de culto", o poeta paulista pedia lendas líricas para incluir em seu livro Macunaíma. Pedia também informações musicais, encomendava texto para jornal paulista e, referindo-se aos escritos de Cascudo, dizia: “A palavra na mão de você é feito guampa de marruá danado, chuça a gente direito mesmo. Se tem uma impressão até física, puxa!” (Carta de 22-VII-26).

A “impressão até física” sugerida por Mário de Andrade, em relação à palavra de Cascudo, é sentida em textos como Prelúdio e Fuga do Real (FJA, 1974). Neste livro, o autor esbanja amplo repertório de informações e saberes, além de um denso exercício reflexivo e imaginário, ao dialogar com, dentre outros, um elenco de mitos (Pan, Píndaro, Midas, Caim), reis e patriarcas (Nicéforo, Henrique IV, Ramsés II, Felipe II), filósofos (Heine, Rousseau), personagens (Judas, Pangloss, Maria Madalena) e autores (Menippo, Machiavelli). Esses seres são “Mortos-que-vivem”. A eles Cascudo empresta linguagem. Contextualiza, através desse empréstimo lingüístico, um intertextual “Diálogo dos Mortos”, tecendo um princípio de sonho - “produto da química cerebral, ou da mecânica intelectual inconsciente” (Prelúdio... p. 269/270).

67º volume da obra do historiador e antropólogo potiguar, esse livro ostenta um escritor que mergulha em tempos e espaços os mais remotos. Esse cronotopo vai da poltrona de um avião a um velho hotel do Rio; parte de sua biblioteca particular no bairro da Ribeira, passa pela Praia do Forte, em Natal, e chega à ilha de Moçambique (onde Cascudo encontra Camões). Destes cenários, o autor envia “impressão até física”, além de figurações mentais e imaginárias de seus parceiros dialógicos. A partir desses intertextos, são questionados temas e conceitos como arte, cultura, história, espaço, tempo, verdade, realidade... “Andei e li o possível no espaço e no tempo. ...Tudo tem uma história digna de ressurreição e de simpatia. Velhas árvores e velhos nomes, imortais na memória”, escreveu Cascudo, em texto publicado por Veríssimo de Melo em Patronos e Acadêmicos (Ed. Pongetti, Rio, 1974).

Em sua “fuga” reflexiva e imaginária, Cascudo doa asas ao leitor que, preludiando o vôo, depara com um prazeroso Epicuro; dialoga com um Erasmo de Roterdam - “A urtiga no caminho” - lendo o Latim como língua através da qual respira. O leitor encontra também nesta páginas um Aristófanes reclamando da tradução de suas comédias; um Dom Quixote de la Mancha que reverencia a intuição e Cervantes, seu pai; e um Camões cascudiano que, “andando e bracejando” declara: “Depois do Amor, só me sentia Poeta cantando o Mar. Exaltei o esforço humano em serviço da Raça, vencendo o Mar! Esse mural era agitado pelas sonoras tempestades inspiradoras. ...LUSÍADAS foi escrito com água salgada, lágrimas de homem e espuma do Mar!” Esse "Mar" é, para Cascudo, "o avô do homem”.

A atitude poética de Cascudo

Além dos autores modernos e dos artistas de vanguardas, como nos referimos no início deste texto, Câmara Cascudo continua sendo lido, reverenciado por gerações pós-utópicas, pós-vanguardas, pós-modernas, pós-sabe-se-Deus-lá-o-quê ... No curso “Os sentidos da paixão”, promovido pela Funarte e lançado em livro pela Companhia das Letras (1987), há prova de que a leitura de Cascudo continua muito em voga no cenário cultural contemporãneo. Ao falar sobre “Poesia: a paixão da linguagem”, naquele evento carioca, o poeta paranaense Paulo Leminski é interpelado, no debate aberto ao público, por um contrafeito “ouvinte” da platéia. Este participante apresenta-se como cineasta. Dizendo-se insatisfeito com a fala do Leminski acerca de amor e poesia, o “ouvinte” pronuncia um longo discurso público. Neste, vale-se de, dentre outros, Mário de Andrade e Câmara Cascudo como parâmetros temáticos, já que para ele - o “ouvinte”, o conceito de amor vai além do sentimento de posse proposto pelo imaginário burguês, e a poesia extrapola os limites da linguagem verbal.

Com a palavra, o interlocutor de Paulo Leminski, cuja câmera leu Cascudo: “Um outro cara que eu também fiz um filme é o Câmara Cascudo. Um cara como o Câmara Cascudo morre, os jornais dão uma notinha deste tamanhinho, escondidinho, um cara que deveria ter estátua em praça pública, devia ser lido, recitado. O caso do Câmara Cascudo é um caso típico, para mim, fortíssimo, do amor total. A atitude dele foi muito mais poética do que milhões de poetas que eu conheço, porque ele dedicou a vida dele inteira ao conhecimento da cultura brasileira. É um cara que ia para feira conversar com o feirante, ia bater um papo com a puta, o violeiro, a vida dele foi dedicada a isso, a resgatar essa cultura, fortíssima, que existe, mas não sai no Caderno B do Jornal do Brasil.” (Os Sentidos da Paixão, p. 301).

Cascudo escreveu sobre tudo isso mencionado pelo participante. Ouvindo no excesso de barulho o mal-do-século, vendo a “Rede de Dormir” como “parte da família”, lendo Canto de Muro como o seu texto que mais o “agrada”, Cascudo merece re-leitura por parte dos brasileiros e, principalmente, dos potiguares. Mais citado que lido, como sugere o escritor Carlos de Sousa, o autor de Mouros, Franceses e Judeus (Perspectiva, 1984) elaborou uma obra cuja “arquitextura” moderna reconstrói o passado, e possui nostálgicos olhos quixotescos que chegam a ver na modernidade a “câmara secreta da Santa Inquisição”. (Prelúdio... p.159). Apesar disso (ou por isso mesmo), Cascudo e os seus 155 títulos - enumerados por Diógenes da Cunha Lima na 3ª edição de Câmara Cascudo: um brasileiro feliz -, formam a matriz que impulsiona nossa arte e contribui para a difusão das letras neste espaço carente de assinatura. Espaço cujas nomenclaturas e histórias - de ruas e raças, pastos e praças, becos e bairros, mitos e lendas - são escritas por um autor que, resgatando sua afetiva geografia pessoal, inscreve-se no espaço universal da arte e da cultura.

No espaço artístico e cultural do eixo-Sudeste, qual cineasta fez o filme ao qual ele próprio faz referência, ao manifestar-se no evento “Os sentidos da paixão”, promovido pela Funarte? Sabemos, via Diógenes da Cunha Lima, do “ótimo filme sobre Cascudo, produzido por Zita Bressane”. Com a palavra os leitores, cinéfilos, estudiosos de Cascudo, teóricos do fazer poético, do discurso amoroso, dos afetos gráficos e geográficos... Além de Zita, quem filmou Cascudo?


terça-feira, 23 de junho de 2009

De ouvido, das antigas




O ensaio como poética da audição

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Prefácio do livro Descoordenadas cartesianas em três
ensaios de quase filosofia,
de Pablo Capistrano, Natal, 2001




de volta ao começo


Depois de incursionar pelo fanzine, por recitais de poesia e pelo jornalismo, o escritor Pablo Capistrano lançou, em 1999, Domingos do Mundo (Boágua Editora) - seu 1º livro de poemas. Com um olhar voltado para a tradição filosófica/literária e outro mirando o presente da cultura de massas, o autor assumia sua formação acadêmica e sua porção pop. Mostrou com isso uma das facetas mais instigantes das novas gerações produtoras de arte e cultura: a disponibilidade de operar passagens, experienciar novos trânsitos, construir transciência.

Os procedimentos imagéticos de Domingos... deixavam entrever o poeta fitando as cores de Wittgenstein, olhando pela fresta o cinismo dos românticos, zarpeando páginas beats e vencendo o distraído jogo dos poetas marginais... De olho em Spiellberg e seu “cinema/show”, Pablo dissolvia o verbo em Domingos... Erigia imagens fragmentadas de um sujeito que, de ouvido no Nirvana e noutras sonoridades pop, anulava sentimentos em prol de uma intuição corpórea. Noutras palavras: o poeta compunha o espaço dos afetos, desviava o tempo da norma. Não era pouco. Fosse no terreiro acadêmico ou no território pop, deu para perceber que “um grão do domingo se esconde em todo dia de semana, e quantos dias de semana nesse domingo” (Walter Benjamin, Rua de Mão Única).

Quando resenhei Domingos do Mundo (“A poesia move o mundo, os dias” in O Jornal de Hoje, 16/09/99), detive-me apenas nos poemas. Faltou dizer que o primeiro livro de Pablo já sinalizava a hibridez de um autor voltado para outros gêneros literários. A última parte do livro (“Ética”) compunha-se de uma “Tabula Rasa” onde o narrador - de tonalidade filosófica - relatava as fragmentadas memórias de um sujeito em busca de sua linguagem e de uma mulher. Rilkeanamente, ele descobriu o que há de terrível não apenas no sublime e no anjo, mas na ausência deles. O descompasso entre sua excessiva produção mental de signos e a escassez de música nas entranhas deixou-o desritmado. Teria ele vocação para mapear abismos? Triste e pleno, o homem desistiu de imitar a nostalgia e a delicadeza. Depois disso, outro era seu nome.

Outro é também o novo texto de Pablo. Se nos poemas anteriores era o olhar quem estetizava a poesia, ora ela é audível numa “floresta cantante”. Descoordenadas cartesianas em três ensaios de quase filosofia celebra - eclesiasticamente - que “há tempo para cantar e há tempo para ouvir”. A extensão dessa voz ecoa nos três ensaios do livro (principalmente nos dois primeiros), produzindo uma audição que (a)colhe tons da história pessoal do poeta e da oralidade cotidiana na qual ele "atua".

Dando continuidade à sinalização prosaica/filosófica do livro anterior, o autor anuncia, na Apresentação destas Descoordenadas cartesianas..., tratar-se de um “risco” situado entre “o rigor da filosofia” e a “fluidez da prosa literária”. Um “risco” que desafia também o arquivo de formas da poesia (no “Anexo poético” do final do livro). Tudo isso, apesar de problemático, torna-se bastante sedutor, na medida em que convida o leitor para uma aventura desconhecida, sem mapeamento de área. Neste roteiro poético/filosófico tudo pode acontecer.

ensaio contemporâneo

A sedução deste tipo de texto está no fato dele pertencer a mais contemporânea vertente ensaística: aquela que rompe com a forma do ensaio ao inserir nele uma mescla de informações teóricas, de procedimentos estéticos, com experiências e reflexões pessoais. Essa mistura faz emergir do texto, além do tom reflexivo, uma tonalidade imaginária. Será por isso que o poeta, ao referir-se ao seu livro, diz da “fluidez da prosa literária”? Haveria neste ensaio reflexivo-imaginário a mesma tonalidade fruída do texto literário?

Fruir e refletir são os verbos de quem ensaia na contemporaneidade. A partir disso o aparato estético, a dimensão cultural e a substância histórica do ensaio produzem outras imagens e outros tons. Utilizando-se de procedimentos literários e do repertório filosófico, Pablo produz um ensaio híbrido e polifônico. Em seu corpus o elemento biográfico, a memória da pele, o discurso corporal, os dados contextuais, os cadernos de anotações, as viagens, impressões cotidianas, informações literárias, a sala de aula - tudo pode ser incorporado à “arquitextura” ensaística.

Os ensaios de Pablo Capistrano apresentam boa dose de oralidade. A introdução dessa oralidade no texto tem a ver, dentre outros, com o exercício do magistério e da escrita jornalística desenvolvidos pelo autor, e com o seu talento para a arte da prosa, da conversação. Na sala de aula, na redação ou no espaço cotidiano do bate-papo, o aluno, o leitor do jornal e o ouvinte podem tornar-se parâmetro para o futuro leitor do texto ensaístico. A inserção dessa oralidade no discurso ensaístico - geralmente marcado por uma sintaxe e um tom que pouco evidenciam das estruturas narrativas cotidianas -, dá um charme muito especial à leitura destes “três ensaios de quase filosofia”.

o filósofo e o ensaísta como intérpretes

Como a autobiografia, o diário, as cartas e tudo aquilo que Bakhtin enquadra no "grupo especial de gêneros", o ensaio é uma deriva que possui o eu como ponto de partida, embora tenha o outro e sua diferença como alvo. Mas, ao contrário destes outros gêneros citados, que geralmente confessam ou fundamentam (e é bom lembrar que a idéia do fundamento possibilita geralmente a guerra dos extremos, dificultando a visão da multiplicidade), ele - o ensaio - busca refletir.

Essa reflexão ensaística possibilita, na leitura destas Descoordenadas... capistraneanas, a inscrição de uma poética da audição. Nela é audível o exercício de uma escrita calcada na imaginação, na conexão e no entusiasmo, além da reflexão. Pensando na ação reflexiva como procedimento filosófico, podemos ler nas figuras do filósofo e do ensaísta um intérprete - sujeito reflexivo e de intuição corpórea que interpreta o espaço (conectado à experiência) e o tempo (de olho nas pegadas da tradição). Penso que por essa trilha entoa o autor.

É bom lembrar que esse intérprete e sua interpretação não estão nem aí para as grandes verdades abissais (a geração à qual pertence o autor sabe como é complicado esse negócio de verdade escondida no fragmentado museu de nossas memórias). Trata-se, na verdade, de uma interpretação que nada funda; apenas sugere, insinua, desloca. A movência é o signo dessa interpretação. Ela move-se ao sabor de um saber de superfície. Um saber que, não sendo superficial, evita o mergulho, sintonizando-se com, dentre outros, duas coisas: a profundidade da pele e a proposição da leveza exaltada por Ítalo Calvino em Seis propostas para o próximo milênio.

Nos “...três ensaios de quase filosofia”, Pablo Capistrano viabiliza a leveza em sua tonalidade ensaística. Trata-se de um tom que, descartando a grandiloqüência e a senha - às vezes áspera e descartável - da margem trepidante e suicida, busca no roteiro da pele a senha da superfície. Para o exercício dessa busca, o autor conecta sua reflexão ao ritmo cotidiano e às vozes da tradição, transita pela história pátria e dá uns bons mergulhos em sua própria história pessoal. Nisso está um dos “riscos” que ele assume. O resultado pode ser desafiante e saboroso para alguns; ou parecer inconsistente para outros. Como leitor desta poética, penso que o bloco do desafio do sabor terá mais audição.


um ritmo em prol de algo que se deseja ouvir

As Descoordenadas cartesianas... são compostas de um anexo poético e três ensaios: “Desconstruindo o filósofo”, “Maiakóvski, arte e política” e “Mística e Lógica: onde a linguagem pára”. Uma leitura do romance Catatau, do poeta curitibano Paulo Leminski, resgata a vida e a obra de Descartes em “Desconstruindo o filósofo”. Nesse texto - entremeado de versos, falas e trechos de canções do poeta, Pablo lê a prosa leminskiana por um inusitado ângulo de visão:

O “Catatau” parece mais com um quadro de Jackson Pollock, com Willian De Konig, com o be bop de Charlie Bird, com a psicodélia.

Assim como Leminski, que dizia escrever ouvindo música, Pablo escreveu seu ensaio ouvindo jazz. Ë de ouvido na desconstrução melódica e nos improvisos desse gênero musical americano que ele compõe a trilha sonora do Catatau. Para que o leitor entenda esta poética da audição, o autor discorre - num dos melhores momentos do ensaio - sobre gravações de Dizzy Guilespie, Miles Davis e George Gershwin, dentre outros. Essas obras apresentam elementos de ruptura como a digressão sonora, criando “um enorme labirinto” entre as notas musicais. É aí que música e literatura aproximam-se. Segundo Pablo, o dilema de Cartesius no Catatau é exatamente este: “Entre uma proposição e outra existe um imenso labirinto”. Para penetrar esse labirinto é convidada uma das principais personagens do sistema literário: sua excelência, o leitor (aquele misto de irmão e hipócrita moderno que vem nos seduzindo desde Baudelaire). Ao leitor, Leminski passa a bola durante toda a jogada. Seu texto convoca a ação de quem lê. E nesse jogo, a gente já sabe, vence o distraído (embora ninguém saia impune após adentrar a usina de signos que é o Catatau, como impune também não sai depois que atravessa os sertões de Rosa ou Euclides).

Além da visão sonorizada do Catatau, Pablo reconhece ler no texto de Leminski influências de Joyce, Oswald de Andrade, do Tropicalismo, de Wittgenstein e Franz Kafka (Nenhum anacronismo: é bom lembrar que Antonio Risério leu Borges na prosa leminskiana). Do escritor tcheco, por exemplo, o autor ressalta, o

humor macabro... O riso por trás do absurdo. O espanto diante de um mundo cheio de animais fantásticos e de formas em constante metamorfose. O espanto da fábula e o profundo anti-classicismo da cabala judaica.

Noutro momento instigante do ensaio, Pablo aproxima Cartesius - a personagem leminskiana - de Descartes. Utilizando-se de referências da vida e da obra do filósofo, o autor diz da desproteção de Cartesius sem um “quarto pouco iluminado”, sem “suporte matemático”:

Cartesius é derrotado pelo calor, pela absoluta inviabilidade tropical de se trancar num quarto. A paisagem super poderosa dita seu contra discurso, deixando-o atônito, perplexo, fraturado e absolutamente confuso.

O quarto que Cartesius não dispõe é aquele habitado por Descartes em seu Discurso do Método. Cartesius possui o sol e a cor dos trópicos; Descartes, a solidão e a treva do quarto. É nele que o filósofo - como Cartesius, “nutrido nas letras” - exercita seu exílio, na tentava de conduzir a si próprio. “Só e nas trevas”, num espaço no qual o outro não tem voz, Descartes habita o solitário quarto e, diferentemente de Cartesius, não tem sequer Artyschewsky para esperar (é bom lembrar que, no final do Catatau, a espera produz luminosidade; mesmo quando a luz existe a partir do urro da fera). Mas o que o fragmento acima mais denota, além da derrota de Cartesius, é o efeito do poder espacial. O texto mostra como o espaço, se não determina, pelo menos condiciona a produção de formas e linguagens, evidenciando as conexões existentes entre a produção reflexiva e o imaginário de quem lê ou escreve.

É consistente e inovadora a leitura do texto leminskiano empreendida por Pablo. Há em seu ensaio a vitalidade de um ritmo em prol de algo que se deseja alterar; algo a ser ouvido. Há, porém, um ponto questionável: o autor não vê concretismo no Catatau. Isso parece discutível. Apesar de entrever as possibilidades de outras estéticas em sobreposição ao concretismo, não sei se seria possível o experimento da prosa leminskiana sem a experiência poética dos concretos. Dentre outros procedimentos, pelo menos dois sugerem que “o bandido que sabia latim” escalou o concreto paulista. Primeiro, o modo como Leminski opera com o signo lingüístico e seu efeito significante (por exemplo, o processo de composição das palavras), em detrimento da expressão, do significado; segundo, a exaltação formal. Ou seja: a forma como reflexão expressiva da própria obra (embora essa exaltação da forma seja uma idéia que Walter Benjamin já lera nos autores românticos alemães do século XVIII, quando escreveu a sua tese de doutorado sobre o conceito de crítica de arte, na Suiça, entre 1917 e 1919).

Dentre outras lições, Leminski ensinou que a gente nasce limitado por um estoque de formas. Mas ele não faz disso um drama; ao contrário: de posse do arquivo de formas da tradição, rompe com a noção de gênero literário, simula estilos, recicla ditos e provérbios e relê a infra-estrutura da língua. De olho na historicidade desses procedimentos, Leminski constrói com o Catatau uma alegoria do próprio arquivo de formas no qual se constitui a arte contemporânea. Lição que Pablo aprendeu ao pé da letra, e nos traduz neste belo ensaio de carnavalesco final, onde livros, Cds, vídeos e telas compõem as indicações bibliográficas.

Esse intertexto entre as artes está presente também no ensaio seguinte: “Maiakóvski, arte e política”. O texto trata das relações entre a produção artística e a política, ressaltando a autonomia estética da obra de arte. Para isso, o autor utiliza-se da poesia e do teatro de Maiakóvski, da crítica literária de Walter Benjamin e do cinema de Leni Riefenstahl, dentre outras referências. Mas, como o título sugere, o poeta russo é a principal personagem do texto.

Tratando de uma produção estética que se subordina “ao ethos político”, o autor diz ironicamente do poeta como “um novo Homero” - antes porta-voz das musas; agora, dos operários. A temática é delicada. Ao ensaiar acerca de “revolucionários e ressentidos”, Pablo indaga até que ponto o contexto impulsiona o autor no sentido de colocar “sua arte a favor de uma causa”.

Como vê-se, o ensaio é permeado por questões fundamentais, como a noção de valor para a produção artística (é sempre bom lembrar: Nietzsche e Marx nos ensinam que os valores, assim como os sentimentos, são históricos; não são eternos). Em seu texto, Pablo questiona, estabelece parâmetros e toma partido, num ritmo que seduz e provoca o leitor. Na leitura que empreende acerca de Walter Benjamin e seu texto “O autor como produtor”, Pablo coloca o leitor no centro de uma discussão que envolve “tendências” corretas nas esferas política e literária. O tema é quente; produzirá boas releituras. No final, o autor brinda seu leitor com uma “Estrutura do argumento”, na qual explicita de forma clara e concisa seu roteiro. Vale a pena trilhá-lo...

Retomando Paulo Leminski na epígrafe de “Mística e lógica: onde a linguagem pára”, Pablo inicia seu último ensaio questionando “as conseqüências da idéia de Deus”. O autor deixa claro que não se trata de empreender uma descrição ou uma compreensão divina, já que os modelos mentais não reproduzem a “experiência de Deus”. Trata-se, na verdade, de uma tentativa de inscrever essa “experiência de Deus”. A coisa é meio complicada porque, segundo o autor, essa “experiência” situa-se numa esfera inalcançável para a linguagem.

Pelo título e pela Personagem inscrita, vê-se que estamos diante do momento mais “sério” do livro. Aqui a tonalidade e a forma acadêmica ganham espaço, amparadas por uma polifonia e uma bibliografia na qual Wittgenstein ganha um bom - e merecido - espaço. Há tempos que com o autor do Tratactus Pablo mantém um produtivo intertexto. Mais atento ao “estilo oracular” que ao sistema lógico do autor, Pablo demonstra sua predileção pelos aforismos e pela fusão da lógica com a mística em Wittgenstein.

Num dos melhores momentos deste ensaio, Pablo faz uma belíssima leitura de “Der Panther” - o poema de Rilke traduzido por Augusto de Campos. De olho no olhar gradeado da pantera, diz o autor:

A pantera de Rilke se contorce dentro das grades de sua cela como nossa capacidade de compreensão se contorce dentro de nossa semântica e de nossa sintaxe.

O autor reflete acera das limitações impostas pela linguagem. Seu texto noticia nossa eterna impossibilidade perante a língua. Como único meio de criação de conceitos, ela jamais alcança a “essência” (êta palavrinha esquisita) das coisas, tornando possível a produção do conhecimento somente através de uma série de metaforizações. Tudo limitado e sempre no campo do possível. Como naquela canção da Tracy Chapnam, na qual uma voz entoa a dificuldade de dizer a palavra certa na hora certa. Seria muita pretensão? Ou, como indaga Cartesius: “onde o amor entre coisas e palavras?”

Entre as palavras e as coisas, o autor passa a bola ao leitor. Se em alguns momentos corre em excesso, não importa. O que vale é o seu desempenho na área: o domínio formal do jogo, a escolha do time (o elenco e o repertório), o resultado final da partida. Através de Pablo, sua geração começa a mostrar vida reflexiva sob o sol dos trópicos. Como Cartesius, ele sabe que “só por excessos se cria”. Que o excesso e as migalhas desse banquete alimentem o desejo do leitor é o meu desejo.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

A poesia move o mundo, os dias










Resenha pubicada nO Jornal de Hoje, Natal, 16/09/1999



A literatura potiguar atende, na última década do milênio, por vários nomes. Um deles é sótão 277 - grupo de artistas surgido no início dos anos 90 e que se reunia para ler, escrever, pintar, tocar, namorar e “biritar” num velho sobrado do bairro de Lagoa Seca. Daquele espaço entre o teto e o telhado saiu uma galera que começa a ocupar as redações de jornal e TV, as agências de publicidade e salas de aula, lançando-se no exercício das letras-palavras-páginas.

Depois de enveredar pelo fanzine (o “Papai estamos vivos” tem assinatura de Ilza Matias), pelos recitais de poesia e pela escritura jornalística, o poeta Pablo Capistrano - ex-integrante do sótão 277 - lança Domingos do Mundo (Fireandice/Boágua Editora), seu 1º livro. Com trânsito por áreas díspares como a psicologia, a comunicação e a filosofia, o autor é um típico leitor cuja oralidade produz uma boa prosa em torno dessas áreas do saber e de várias estéticas. Pablo é bom papo, digo. E bom escritor. Pertence, talvez, à última geração que vê na leitura (do livro) o salutar hábito de “semeio” da escrita. O leitor como produtor.

Diferentemente da geração à qual pertence seu pai - o poeta Franklin Capistrano -, Pablo não possui ideais revolucionários ou vanguardistas, e assume - na orelha de Domingos... - a sua formação via HQs da Marvel e De Comics, música pop e cinema/show de Spielberg. Some-se a isso os seguintes roteiros:
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1- as pegadas da literatura beat e da geração marginal
2- as coloridas lições de Wittgenstein, expressas em textos como “Por amor ou pelo azul de si mesma” e em outros versos que colorem os “Pedaços de Ana” - musa inspiradora da 3ª parte de Domingo...
3- “navegos” pela internet
4- viagens pela América Latina (“Macchupicharam o mundo”), à Europa e em torno do Gudan Garan
5- horas, muitas horas, de estetização pelos shoppings, traileres e bares da cidade; que ninguém é de ferro mas de letra, líquido... e aprendemos no “Barroco moderno” o inteiro metade dos navios negreiros.

Homero cabe no bolso?

Pablo Capistrano pertence a uma geração cuja sensibilidade é produzida num espaço/tempo no qual a virtualidade, a técnica e os processos maquínicos viabilizam mudanças estruturais na percepção de quem lê e de quem escreve. Isso, já dizia Benjamin, afeta a escritura.

No texto do poeta o efêmero tem nome. Daí a consciência de uma letra voltada para o rápido, pequeno e intenso (“praia do poema”), e a suspeita de que Homero não se carrega nos bolsos. Não porque o poeta não os possua, mas porque "não acredito em trens", como diz o texto de “Método” - espaço crítico-poético no qual o autor dá senhas do processo de sua escrita, exercitando uma intuição corpórea: "preciso da mão/ e do delicado artesanato/ dos que intuem com o corpo".

Onde o poema tem corpo e praia, o leitor banha-se em águas advindas de várias nascentes. Da mais tradicional, vem a estetização de que somos cinicamente românticos, e o diálogo com o romantismo contraditório de Rosseau (Algumas vezes é melhor ficar em silêncio). Dos mananciais beats e marginais jorra a dicção por vezes ríspida e certeira, tipo: "Para quem vive uma vida Inteira/ os dias não têm nome". Mas muita onda e muito nome rolam nessa praia: desde um suspenso Jorge Fernandes, embalado/ num jazz chorinho de ford forno microndas, até um Kurt Weill que inscreve num “Lugar Pequeno” as letras de um “Cabaré que salta”.

a língua do seu tempo


Nenhuma tonalidade religiosa, nenhum ritmo metafísico, nada de figurações abissais. O poema de Pablo é curto. Tem eco leminskiano. Às vezes soa brusco, sintaxe incompleta, como se o texto sugerisse demoras. Reflexo da velocidade desse tempo? Como diria Deleuze, o texto do poeta possui a profundidade da pele. Em Domingos do Mundo, o corpo e o olhar dão as senhas para uma escritura que leciona saídas: "Quando um corpo/ abre estrada/ cria música"; ou ainda: "A chave/ está no olho que olha a porta".

Vivenciar uma cultura calcada no elemento visual - em detrimento do lingüístico - possibilita ao poeta elaborar textos como “Enciclopédia do Inferno”. Neste, um catálogo de neuroses e artimanhas que norteiam nosso tempo faz imaginar a diferença de tratamento que daria, por exemplo, um poeta romântico ao mesmo tema. Mais que verbo, há nesse inferno imagem, como se a “enciclopédia” fosse computadorizada, composta de pequenos vídeo-clips. São imagens de um sujeito que se desloca incessantemente construindo esquinas, cujo corpo cava fosso e passa a ser viagem. E nesse viajar imagético, ressalte-se as cores, os tons e as imagens da bela capa deste livro, criada por Waldenor - outro artista remanescente do sótão 277, cujo trabalho gráfico dialoga com várias procedimentos artísticos como a xerox, pintura, fotografia, computação...

Moral da história: Pablo traduz os anos 90. Seu texto inscreve não apenas os Domingos..., mas o tempo que trama a língua do final do milênio. O início de “As anulações do sujeito” anuncia o quanto de mutação temporária e espacial existe nessa língua e ao que ela se propõe: "...encontrar o lugar onde o amor dorme/ e compor o lugar onde o amor altera o/ morador". O sr leitor há de convir que esse "encontro" e essa "composição" constituem numa boa forma para iniciar outro milênio.

domingo, 21 de junho de 2009

Roberto Machado lê Michel Foucault





Resenha publicada nO Jornal de Hoje, Natal, 08/12/1999


Em Foucault, a filosofia e a literatura, Roberto Machado dialoga com grande parte da obra do filósofo francês, de quem foi aluno e amigo. Dentre os livros de Foucault que engendram o texto de Roberto, destacam-se: A arqueologia do saber, Ditos e Escritos, História da Loucura, As palavras e as coisas, Doença mental e psicologia, Nascimento da clínica e Raymond Roussel. Além dessas obras do filósofo cuja bibliografia erige uma "genealogia" do poder na sociedade moderna, Roberto mantém intertextos com, dentre outros autores, Freud, Derrida, Nietzsche, Bataille, Sade, Kant e Blanchot.

Quatro capítulos compõem o livro de Roberto: “A loucura”, “A morte”, “O ser da linguagem” e “O ocaso da literatura”. Além disso, o texto é acrescido de uma conferência inédita de Foucault - “Linguagem e Literatura” -, pronunciada em Bruxelas, 1964, e traduzida pelo próprio Roberto, com colaboradores. Nesta conferência, a literatura é lida enquanto linguagem “iluminada, móvel e fraturada”.

Ressaltando que Foucault sempre pretendeu pensar o moderno, “situando-o em relação ao clássico”, Roberto Machado relaciona a estrutura da História da Loucura (Michel Foucault) com O nascimento da tragédia (Nietzsche). Segundo o autor de Nietzche e a Verdade, o “romantismo” dessa tese de doutorado de Foucault tem a ver com esse livro de Nietzsche, e a experiência dimensionada na História da Loucura diz do sentimento trágico herdado da filosofia nietzschiana.

Na leitura empreendida por Foucault, somente a partir do século XIX a loucura passa a ser lida, pela psiquiatria, como doença mental. Em seu texto, Roberto destaca as três épocas históricas da “loucura em sua relação com a arte e a literatura”. No Renascimento, a loucura surge de forma positiva e tem em Shakespeare e Cervantes seus ícones. Na época clássica o louco sai de cena, para voltar na Modernidade quando a experiência literária resgata a loucura “encenada” no Renascimento. Foucault lê o limite enquanto elemento a partir do qual se estabelece a relação entre a loucura e as obras de arte, diferençando-as.

No capítulo “A morte”, Roberto lê em Foucault a relação entre esse limite e a transgressão, ressaltando o limite da morte e o da linguagem sem mediação divina, depois da morte de Deus (Nietzsche). Neste 2º capítulo, Bataile invade a cena erótica associada ao sagrado, e o mal é interpretado como possibilidade de fundamentação. Sade surge como o primeiro literato a criar uma linguagem transgressora. Ele e Bataile aparecem, pois, como autores representativos da experiência entre transgressão e linguagem. O capítulo “A morte” trata ainda das conseqüências da morte de Deus para a experiência da linguagem. Segundo o autor, essa morte “significou o desaparecimento de critérios ou princípios universais externos a que a linguagem deveria se adequar...”

Ressaltando em Foucault a leitura da finitude kantiana, Roberto Machado tem no autor de Crítica da Razão o marco inicial da era moderna. Neste contexto, a ciência positivista e a Revolução Francesa inscrevem-se como “acontecimentos” que acionam a modernidade. Para Foucault, a literatura é lida como fenômeno moderno, e a repetição transforma-se numa das "personagens" principais da cena literária patrocinada por esta modernidade.

“O ocaso da literatura” trata da visão de Foucault sobre a crítica de arte e a crítica literária em A arqueologia do saber. Aqui, Roberto atesta a mudança do discurso de Foucault acerca do literário. Ao filósofo interessa agora saber em que condições “o sujeito pode aparecer na ordem do discurso”. Roberto demonstra como, depois de celebrar o literário nos anos 60, Foucault chega à década de 70 enveredando pelo elogio à militância política, abandonando o privilégio concedido ao esteticismo literário. Neste roteiro final, até Sade - antes lido como transgressor - ganha releitura. Sob o signo de Foucault e suas palavras, Roberto passa as chaves: pensamento e mutação têm tudo a ver. E nessa história, as palavras e as coisas de Dona Moral ficam totalmente de fora.

sábado, 20 de junho de 2009

Beleza exige respeito

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Texto publicado em 2003 no Rede de Letras da Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, e apresentado na Mesa-redonda Luciano Bonuccelli: um olhar plural, promovida pelo MAC - Museu de Arte Contemporânea de Niterói/ Provincia di Lucca/ Istituto Italiano di Cultura - Rio de Janeiro, com a participação de Luciano Bonuccelli, Beatriz Resende, Cloves Dottori, Franklin Chang, Marco Lucchesi e Nonato Gurgel, em 2003 no MAC


I


Frente às fotografias de Luciano Bonuccelli – o seu olhar estético e histórico –, lembro dessa assertiva de Lygia Fagundes Telles que ora me serve de título. Acrescentaria que, quando aliada ao saber, a beleza exige ainda mais respeito. Essa assertiva da escritora paulista amplia sua dimensão ao contemplarmos as paisagens naturais, os cenários culturais e os retratos humanos que ganham ritmo e consistência frente à pluralidade desse olhar italiano. Se me detenho no Ritratti Paolo e Gabriele, 1997, (p. 108), a sábia postura do primeiro, sugerida na sua nobreza gestual, potencializa o sentido de reverência exigida frente ao belo.
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I I


Para a concretude desse diálogo óptico, que se estabelece com base no respeito ao belo e no sabor do saber, Bonuccelli opera com a imagética barthesiana de A Câmara Clara. Nessa dimensão ensaística, a fotografia pode ser objeto de múltiplas práticas, mas Barthes vai destacar pelo menos três dessas práticas: olhar, suportar e fazer. Parecem ser esses os verbos que o artista italiano freqüentemente conjuga frente aos seus cenários e retratos. Paolo – o referente mor do ritratti – é o alvo da câmara dessa fotografia ambígua de luz e sombra. O registro dessa ambigüidade nos permite vislumbrar a porção apolínea de Paolo, em contraposição à dimensão dionisíaca que ostenta o escuro no qual a foto “encena” Gabriele. No jogo apolíneo e dionisíaco que tematiza essas imagens, atentemos para a operação visível de um signo que “sustenta” as duas imagens: as mãos dos garotos. Em contraposição à nobreza silenciosa das mãos em forma de pedestal – onde repousa o rosto de Paolo –, a mão direita de Gabriele anuncia o que de dionisíaco saboreia sua boca. Boca essa encoberta, num gesto ambíguo que tanto sugere a celebração do deboche, como propõe o espanto dionisíaco.

I I I

O diálogo óptico que se estabelece entre a câmara de Bonuccelli e o olhar de Paolo, sugere ainda uma imaginária proposição daquela leveza estetizada por Italo Calvino em Seis Propostas para o próximo Milênio. Esse diálogo óptico – entre a câmara e o olhar – suspende o peso, exclui a inércia. Na contemporaneidade, sabemos, o peso e a imobilidade caracterizam aquele olhar viciado das repetitivas imagens com as quais a mídia diariamente nos brinda. Na leveza deste ritratti, ao contrário, nada se repete nem pesa. Nessa imagética, o que é leve perpassa o imaginário do leitor – sujeito que viaja pelos meandros de outros dois imaginários: o imaginário do fotógrafo e o do seu próprio objeto, a imagem de Paolo.

I V
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O ritratti Paolo e Gabriele auxilia nos modos de ver. Re-inventa outras formas de olhar. Frente a essa leveza imaginária, exposta no diálogo com a exatidão da forma, a foto amplia nossa leitura do mundo. Essa outra visibilidade, essa ampliação perceptiva, nos chegam através do que a imagem emana de postura e ritmo. Além de leve e exata, esta é também uma imagética da multiplicidade – procedimento estético característico da poética contemporânea, aqui inscrita na presença de Marco Lucchessi. Essa idéia de multiplicidade nos remete à pluralidade temática e estética do olhar de Luciano Bonuccelli. Olhar que percebe com nitidez as formas e os tons que circundam sua “Strana Gioia di Vivere”.

A percepção óptica dessa “Strana Gioia de Vivere” pode ser lida nas imagens verticais e suaves que exibem a sonoridade fluída das paisagens da Serra de La Mia Terra (p. 80 e 81), ou nas formas que emanam do Muri de Lucca, suas estampas coloridas, em 1988 e 1993 (p. 27 e 31). A percepção imagética dessas formas dialoga com o moderno olhar benjaminiano:
“...o ambiente e a paisagem só se revelam ao fotógrafo que sabe captá-los em sua manifestação anônima, num rosto humano”.
Nas fotografias de Bonuccelli, o olhar que capta a pluralidade de paisagens – nas figurações da natureza e da cultura – inscreve também a aquisição do ritmo. Essa aquisição nos remete ao “ritmo pessoal” (Barthes) das formas históricas e dos olhares humanos. Trata-se, portanto, de fotografias cuja visibilidade inscreve corpos do saber. Corpos esses conscientes de que, para haver criação, são necessários espaços, formas, cenários, performances.


V


Inscrever-se ou afirmar-se, por meio da construção de imagens, é uma das múltiplas formas que a arte nos possibilita de realizar “aquela teatralização de si mesmo”, de que fala Roland Barthes em Como viver junto. Nas fotografias de Bonuccelli, essa “teatralização de si” é visivelmente lida, por exemplo, na postura descontraída e levemente aristocrática do ritratti de Raffaelle Carrieri (p. 95); ou na ambígua fantasmagoria – feminina e potente – do ritratti de La Zorria (p. 72), no qual a escuridão das vestes que encobrem o seu corpo contrasta com a clareza das nuvens ao fundo da foto. Noutro ritratti, a celebração do prazer e do ócio – advindos da informação e do saber – ostenta Pier Carlo Santini como âncora de sua própria “teatralização” (p. 99).

V I

A estetização dessas paisagens humanas, naturais e culturais, construídas por Bonuccelli, possibilita uma leitura estética e cultural dos registros que as compõem. De olho nos roteiros imagéticos do fotógrafo, embora sem a pretensão de desvelar suas intenções, acionamos este olhar. Trata-se, portanto, de um olhar sobre o olhar que vê um terceiro – mais especificamente o ritratti Paolo e Gabriele. Frente a esse ritratti, e após habitar as imagens e dialogar com os retratos de Bonuccelli, aciono minha porção barthesiana:
“...a Fotografia é subversiva, não quando aterroriza, perturba ou mesmo estigmatiza, mas quando é pensativa”.
Pensativa e imaginária, eu diria. Ao ler o olhar silencioso que emana do ritratti Paolo e Gabriele, contemplo a afirmação de uma imagética frente a um mundo que se pensa; imersa numa vida que se imagina. Inscrição de um olhar antigo, cúmplice, no qual a celebração da diferença institui-se como uma prática afirmativa, contemporânea.



BIBLIOGRAFIA

BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.

___Como viver junto. Trad. Leyla Perrone-Moisés. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BENJAMIN, Walter. “Pequena História da Fotografia” in: Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre Literatura e História da Cultura. 5ª ed. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1993. (Vol. I).

BONUCCELLI, Luciano. Fotografie. 1977 – 2000. Lucca – Italy: Maria Polini Fazzi Editore.


LA BELLEZZA VUOLE RISPETTO
Traduzione Katia D’Errico
I
Davanti alle fotografie di Luciano Bonuccelli – al suo sguardo estetico e storico – mi viene in mente quest’affermazione della scrittrice Lígia Fagundes Telles che uso qui come titolo. Aggiungerei che, quando unita al sapere, la belleza vuole ancor piú rispetto. Quest’affermazione aumenta la sua dimensione quando contempliamo i paesaggi naturali, gli scenari culturali ed i ritratti umani che acquistano ritmo e solidità davanti alla pluralità di questo sguardo italiano. Se mi soffermo sul RITRATTI Paolo e Gabriele, 1997 (p. 108), percepisco che il sapiente atteggiamento del primo e la sua nobiltà gestual rinforzano il senso di riverenza che il bello esige.

II

Affinché si concretizzi questo dialogo ottico, che si stabilisce in base al rispetto per il bello e al sapore del sapere, Bonuccelli agisce sulla immagetica dimensione barthesiana di A Câmara Clara. In quest’ottica, la fotografia può essere oggetto di molteplici pratiche, ma Barthes ne mette in rilievo almeno tre: guardare, sopportare e fare. Sembra siano questi i verbi che l’autore italiano spesso coniuga davanti ai suoi scenari e ritratti. Paolo – la figura principale del RITRATTI – è il bersaglio della camera di questa fotografia, la cui luce ed ombra suscitano ambiguità. Quest’ambiguità ci permette di intravvedere la parte apollinea di Paolo in contrapposizione alla dimensione dionisiaca che mostra la parte oscura nella quale la foto “sceneggia” Gabriele. Nel gioco apollineo e dionisiaco, tema di quest’immagine, notiamo l’operazione visibile di un segno che “sostiene” le due immagini: le mani dei ragazzi. In contrapposizione alla nobiltà silenziosa delle mani, in forma di piedistallo – su cui riposa il viso di Paolo –, la mano destra di Gabriele annuncia ciò che di dionisiaco assapora la sua bocca. Bocca coperta, in un gesto ambiguo che suggerisce sia l’esaltazione dello scherno sia lo sgomento dionisiaco.

III

Il dialogo ottico che si stabilisce tra la camera di Bonuccelli e lo sguardo di Paolo, suggerisce anche un’immaginaria proposizione di quella leggerezza estetizzata da Italo Calvino in Lezioni americane – Sei proposte per il prossimo millenio. Questo dialogo ottico – tra la camera e lo sguardo – interrompe il peso, esclude l’inerzia. Contemporaneamente, sappiamo, che ciò che pesa ed immobilizza caratterizza quello sguardo viziato delle ripetitive immagini che i mass media ci regalano quotidianamente. Al contrario, nella leggerezza di questo RITRATTI, niente si ripete né pesa. In esso ciò che è lieve sfiora l’immaginario del lettore – il quale viaggia nei meandri di altri due immaginari: l’immaginario del fotografo e quello del suo proprio oggetto.

IV

Il RITRATTI Paolo e Gabriele aiuta i modi di vedere. Re-inventa[1] modi di guardare. Davanti a questa leggerezza immaginaria, mostrata nel dialogo dall’esattezza della forma, la foto amplia la nostra lettura del mondo. Quest’aiuto visivo e quest’ampiezza percettiva ci arrivano per mezzo di ciò che l’immagine emana in atteggiamento e tono. Oltre ad essere lieve ed esatta, questa è anche una immagetica della molteplicità – procedimento caratteristico della poetica di Marco Lucchesi –, e che ci rimanda alla pluralità tematica ed estetica dello sguardo di Luciano Bonuccelli. Uno sguardo che percepisce, con nitidezza, le forme ed i suoni che circondano la sua “Strana Gioia di Vivere”.

La percezione ottica di questa “Strana Gioia di Vivere” può essere letta nelle immagini verticali e soavi che esibiscono la sonorità fluida dei paesaggi della Serra (LA MIA TERRA - p. 80 e 81), o nelle forme che emanano da Muri (LUCCA – p. 27 e 31), le sue stampe colorate, del 1988 e 1993. La percezione immagetica di queste forme stabilisce un dialogo con il moderno sguardo benjaminiano: “... l’ambiente ed il paesaggio si rivelano soltanto al fotografo che li sa captare nella loro manifestazione anonima, in un viso umano”. Nelle fotografie di Bonuccelli lo sguardo che capta la pluralità dei paesaggi – della natura e della cultura – marca anche l’acquisto del “ritmo personale” (Barthes) delle forme e degli sguardi umani. Si tratta, quindi, di una visibilità che marca i corpi del sapere. Questi corpi sanno che, affinché si abbia una creazione, ci vogliono spazi, forme, scenari e performances.

V

Perpetuarsi o affermarsi, attraverso costruzioni di immagini, è una delle molteplici forme per cui l’arte ci dà la possibilità di realizzare “quella teatralità di se stesso”, di cui parla Roland Barthes in Como viver junto. Nelle fotografie di Bonuccelli, questa “teatralità di se stesso” è visibilmente letta, per esempio, nell’atteggiamento naturale e lievemente aristocrático del RITRATTI di Raffaele Carrieri (p. 95); o nell’ambigua fantasmagoria – femminina e potente – del RITRATTI La Zorria (p. 72), nel quale il colore scuro dell’indumento che copre il suo corpo contrasta con il chiarore delle nuvole sul fondo della foto. In un altro RITRATTI (p. 99), l’esaltazione del piacere e dell’ozio – risultanti dall’informazione e dal sapere – mostra Pier Carlo Santini come l’ancora della sua propria “teatralità”.

VI

L’estetizzazione di questi paesaggi umani, naturali e culturali, costruiti da Bonuccelli, rende possibile una lettura estetica e culturale dei registri che li compongono. Attento ai percorsi della immagetica del fotografo, malgrado senza la pretesa di svelarne le intenzioni, azioniamo questo sguardo. Si tratta, quindi, di uno sguardo sullo sguardo che ne vede un terzo – più specificamente il RITRATTI Paolo e Gabriele. Davanti a questo RITRATTI, e dopo aver interagito con le immagini ed aver dialogato con i RITRATTI di Bonuccelli, aziono la mia parte barthesiana: “... la Fotografia è sovversiva, non quando suscita terrore, turba o persino stigmatizza, ma quando è pensierosa”. Io direi pensierosa ed immaginaria. Nel leggere lo sguardo silenzioso che emana dal RITRATTI Paolo e Gabriele, considero l’affermazione di una immagetica messa davanti ad un mondo che si pensa, ed immersa in una vita che s’immagina. Affermazione di uno sguardo antico e complice, nel quale l’esaltazione della differenza s’istituisce come una pratica.



[1] Inventa di nuovo, crea altre possibilità.