Texto reescrito a partir do ensaio publicado no Portal Literal, Rio de Janeiro, Out, 2008
Dois eventos assinalaram, em 1999, o 16º aniversário da morte da poeta carioca Ana Cristina Cesar (02/06/52 – 29/10/83): a abertura do seu acervo no recém inaugurado Instituto Moreira Sales, no Rio de Janeiro, e a publicação do livro Correspondência Incompleta (IMS/ Aeroplano Editora. Rio, 1999), organizado por Armando Freitas Filho e Heloísa Buarque de Hollanda. Passados 25 anos sem Ana, um novo livro com outros textos inéditos da poeta será lançado no mesmo Instituto Moreira Sales.
O acervo público da poeta, sua correspondência lançada em 1999 e os atuais escritos Antigos e Soltos - poemas e prosas da pasta rosa (com 475 páginas organizadas por Viviana Bosi) parecem concretizar a profecia da narradora criada por Ana Cristina em Luvas de Pelica (Inglaterra, 1980): “Quando você morrer os caderninhos vão todos para a vitrine da exposição póstuma. Relíquias.” É desta mesma narradora e desta micro-narrativa poética que vem uma possível senha para a compreensão da ausência de Ana:
“... agora me retiro, agora repouso minhas cartas e traduções de muitas origens, me espera uma esfera mais real que a sonhada, mais direta, dardos e raios à minha volta, Adeus!”.
Licenciada em Letras (PUC-RJ), Mestre em Comunicação (UFRJ) e Master of Arts em Theory and Practice of Literary Translation (Essex, Inglaterra), Ana C. traduziu autores como Katherine Mansfield, Emily Dickinson, Dylan Thomas, Sylvia Plath e Stevenson, dentre outros. Hoje, a poeta tem tradução de seus textos na Argentina, Alemanha, Portugal, Venezuela, Colômbia, Londres e Paris. Cinco livros contidos em 2 volumes foram publicados por Ana C.: Literatura não é documento” (1980) e A teus pés (1982).
Além da Correspondência Incompleta (1999) e destes Antigos e Soltos (2008), outros três livros foram lançados nos últimos 25 anos: Inéditos e Dispersos (1985), Escritos da Inglaterra (1988) e Escritos no Rio (1993), todos organizados pelo poeta Armando Freitas Filho. Além disso, foram editados poemas traduzidos pela poeta, na Antologia Folhetim da Folha de São Paulo, e a família publicou, numa bela edição limitada, o Portsmouth Colchester – livro-caderno contendo os desenhos feitos por Ana na Inglaterra, acompanhados de pequenos escritos à mão.
O Portsmouth Colchester contém textos que transitam livres pelo universo das linguagens verbais e não-verbais, ressaltando a determinação da forma e avivando o “rastro prateado” da lesma, vejam:
“See? Medida exata entre o acaso e a estrutura. Aprender fazendo, baby ...dando uma de bichos e arremedando amor. Tudo fecha, os fios sempre emendam no final. Uma forma determina a outra. A estrutura também é inesperada. Alguns dão cria.”
salva pela técnica
Organizado pelo poeta Armando Freitas Filho e pela ensaísta e professora Heloísa Buarque de Hollanda, o volume Correspondência Incompleta traz cartas escritas por Ana entre 1976 e 1980. Essas cartas foram enviadas para Ana Candida Perez, Clara Alvim, Cecília Londres e para a própria Heloísa que publicou a poeta na histórica antologia 26 Poetas Hoje (1976). Com a primeira missivista, Ana traduziu alguns poetas ingleses contemporâneos. As outras três destinatárias foram, além de amigas e interlocutoras da poeta, suas professoras.
salva pela técnica
Organizado pelo poeta Armando Freitas Filho e pela ensaísta e professora Heloísa Buarque de Hollanda, o volume Correspondência Incompleta traz cartas escritas por Ana entre 1976 e 1980. Essas cartas foram enviadas para Ana Candida Perez, Clara Alvim, Cecília Londres e para a própria Heloísa que publicou a poeta na histórica antologia 26 Poetas Hoje (1976). Com a primeira missivista, Ana traduziu alguns poetas ingleses contemporâneos. As outras três destinatárias foram, além de amigas e interlocutoras da poeta, suas professoras.
O título do livro com as cartas da poeta dialoga com o irônico texto Correspondência Completa publicado por Ana C. em 1979, cujo projeto gráfico de Heloísa Buarque traz – num pequeno plástico lacrado – a carta única que compõe o livro. Em Correspondência Completa, Armando e Heloísa são estetizados como Gil e Mary, sendo assim inscritos por Júlia, a autora da carta:
“Fica difícil fazer literatura tendo Gil como leitor. ...Já Mary me lê toda como literatura pura, e não entende as referências diretas”.
Ana C é uma poeta fascinada por cartas, diz o escritor Caio Fernando Abreu na contracapa da edição original de A teus pés. Nesse livro lançado em 1982, a poeta tematiza o próprio objeto de sua fascinação, lançando um olhar metalingüístico sobre a correspondência: ”Estou há vários dias pensando que rumo dar à correspondência”, diz a narradora de Luvas de Pelica. “Você não acha que a distância e a correspondência alimentam uma aura?” – indaga Júlia, missivista de Correspondência Completa.
A publicação da Correspondência Incompleta, em 1999, trouxe a público um perfil autobiográfico que sinaliza e ratifica as leituras e os autores que compõem o “cânone” literário e teórico da poeta, sendo isso fundamental para os leitores e estudiosos de sua produção estética e cultural. Esse “cânone” recortado por Ana C. é sugerido no apreço pela “letra” de Walter Benjamin, nas queixas contra o tom “grave” de Sylvia Plath, no tesão pela escrita de Henry Miller, no reconhecimento da sagacidade do poeta T.S. Eliot, na comoção oriunda dos ensaios de Mário de Andrade.
O recorte deste “cânone” faz-se também pelo avesso. Isso pode ser mensurado no registro da necessidade de escrever uma resenha – chata – para o “tecnicismo” do escritor Vargas Llosa, e na recusa ao “tom onipotente” de certos narradores (os chamados realistas). As cartas de Ana C. emitem, como a sua poética, uma tonalidade marcante. Delas parece ecoar um certo tom romanesco e uma oralidade sintática que inaugura um outro olhar sobre a diferença. Isso possibilita uma leitura do livro como um romance cujo desfecho, embora conhecido pelo leitor, surpreende pela grande quantidade de informações e "roteiros" que a “narrativa” contém.
A personagem principal dessa “narrativa” poética surpreende a cada lançamento póstumo. Seu pai, o sociólogo e escritor Waldo Cesar (1923 – 2007), reconhecendo que ninguém conhece inteiramente uma pessoa disse, por ocasião do lançamento de Correspondência Incompleta, haver de certa forma descoberto uma nova filha. Esta nova filha-persona que continua passando “o ponto e as luvas” aos familiares, às suas missivistas, acionando o senhor leitor, escreve sobre os mais variados temas, cidades e "personagens". As cartas de Ana estão repletas de referência às crises existenciais, dificuldades profissionais e tramas afetivas, sem deixar de lado as difíceis relações familiares e contextuais, cujas tramas se dão em cidades como Rio de Janeiro, Londres, Paris, Brasília...
As cartas de Ana C. apontam para alguns dos procedimentos estéticos mais utilizados pela poeta-crítica-tradutora. Estão nestes escritos o reconhecimento de ser na sintaxe textual que “pinta” o desejo da poeta. Ratificam também, essas cartas, a consciência de que sensibilidade e técnica dialogam, têm tudo a ver (“só a técnica é capaz de me salvar”). As cartas são textos que sinalizam o seu processo de criação. Podem ser lidas como documentos que denunciam as dificuldades vivificadas pelos profissionais que lidam com arte e educação num Brasil periférico, governado por uma ditadura militar.
Correspondência Incompleta inscreve ainda os gostos da poeta por coisas miúdas e significantes, como a sua predileção por árvores como eucaliptos e bandas como “The Doors”. Narra a relação afetiva e de pouco jeito com Chris – o amante inglês estetizado em A teus pés, o desdém pelo brilhantismo, a tirania da platéia, a opção pelos retiros de quando em vez, e “um jeito de sofrer a seco que endurece a alma”. Além disso, o livro inscreve a mania que Ana tinha de “psicanalizar o mundo”; e sugere uma busca de envolvimentos afetivos que às vezes parece mais um charme, uma pose construída com a beleza, a inteligência, o ar sedutor da poeta sempre apaixonada por algo ou alguém que a dilacera e nem sempre aponta saída.
“da condição dos avessos”
Fotos, desenhos, rascunhos, xerox de envelopes e imagens coloridas compõem o belo projeto gráfico de Cecília Leal. Algumas imagens do livro anunciam uma outra Ana – a fêmea de olhar atento ao espaço que a cerca, às vezes de forma meio ríspida ou brusca. São imagens que não sugerem o tom confessional e sutil que os leitores estão acostumados a perceber nos escritos de Ana. Enfim, uma mulher do século XXI disfarçada em século XIX ou XX. Estes textos e fotos são interessantes porque mostram como, na maioria das vezes, a personagem pública está distante da máscara pessoal; o que é sempre bom o senhor leitor não esquecer. Apesar disso, não é difícil perceber as relações entre vida e obra: em algumas cartas vislumbra-se nitidamente o “olhar estetizante” da poeta de Luvas de Pelica.
Assim como outros autores de sua geração – Cacaso, Torquato Neto, Waly Salomão, Paulo Leminski e Caio Fernando Abreu, por exemplo – a escritora Ana Cristina Cesar gostava de canalizar para o papel o texto bruto e pulsante da veia, indo muitas vezes além da atitude estética. Era mesmo da condição dos avessos quem escreveu aos 16 anos: “Eu não sabia/ que virar pelo avesso/ era uma experiência mortal”. O tempo e a historiografia literária demonstram que isso consumiu não apenas alguns poetas românticos dos séculos XVIII e XIX, mas vários outros poetas em diferentes épocas. Apesar disso, nenhuma morte é a personagem principal nesta narrativa póstuma que há 25 anos continua vindo a público. Há na história de Ana C. um fio de luz que alumia e continua fazendo foco.
Centrada na produção poética, cultural e ensaística de Ana C., vem sendo escrita ao longo das três últimas décadas, uma enorme fortuna critica e acadêmica. São leituras críticas e variados estudos acadêmicos que resgatam temas, procedimentos e re-leituras de sua obra, tais como:
- a inserção desta obra no contexto histórico e subjetivo das poéticas contemporâneas
- a discussão em torno da escrita e da identidade feminina no final do século XX
- os aspectos lingüísticos e as estruturas textuais dos seus escritos
- a eleição dos motivos cotidianos, do pormenor enquanto elementos estruturantes de seus poemas
- as relações entre corpo, texto e desejo
- a re-leitura e a “vampirização” da tradição literária
- as nuanças do método de tradução da poeta
- a fabricação de simulacros, cópias e pastiches
- a leitura dos seus textos como micro-narrativas poéticas instauradas na ação do olhar
- a incorporação do fragmento como forma discursiva na pós-modernidade, etc...
Essas releituras dos textos de Ana C. repassam senhas e deixam rastros luminosos: “Lâmpada para meus pés é a tua palavra. E luz para o meu caminho”, diz ela em sua famosa paráfrase bíblica de A teus pés. São letras inscritas pela subjetividade aflita de um olhar que, ao alumiar por dentro, continua auxiliando na leitura do ser e do seu entorno.
Rio de Janeiro, 1999 – 2009
Nonato Gurgel é autor da dissertação de mestrado Luvas na Marginália – o narrador pós-moderno na poética de Ana C.