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Uma versão desta resenha foi publicada no jornal O Globo, Rio de Janeiro, 24 de Janeiro de 2004
A poética do distanciamento construída pelo escritor
aproxima e leva o leitor ao “céu”
Sphera é o primeiro livro de poemas de Marco Lucchesi, depois que ele publicou os seus Poemas Reunidos. Nesse volume editado em 2000, e que contém a sua já vasta fortuna crítica, a ensaísta Constança Hertz diz dessa poética “feita de alturas vertiginosas e de abismos... onde “o impossível existe e assume a forma perene...”.
Essas “alturas”, esses “abismos” e essa forma do im - possível permeiam toda a poética de Lucchesi, e continuam presentes neste livro de 2003. Essa Sphera grafada cor de sangue sobre capa branca não é um título qualquer; possui uma longa história. O vocábulo, assim como o poeta e o poema, atravessa séculos. Sua origem vem do “latim tardio”, segundo a lição do professor e pesquisador clássico Henrique Cairus. Seu significante sugere uma feliz polissemia que perpassa o substantivo esfera, o adjetivo ex-fera e o verbo espera, dentre outras possibilidades de leituras.
Se nos guiarmos pelo eu poético e levarmos em conta o seu significante primeiro (“aqui me sinto/ mais/ substantivo”), veremos que a forma esférica anuncia uma boa cota de lirismo:
Teu rosto acende meus sonhos
de reparação
algo me atinge me confunde e me arrebenta.
A forma sugerida pelo substantivo esfera expressa “uma grata ancestralidade romântica”, como diz Eduardo Portella no prefácio deste livro. Já na leitura das três epígrafes que abrem o volume, há ecos naturais e subjetivos do universo do Romantismo: “um campo de sossego” de onde brotam “silêncios”, solicita que “sejamos” - resumem essas epígrafes.
Para adentrar este universo estético e conjugar o verbo ser, o eu lírico acerca-se do provisório que há no sossego dos homens e no silêncio com o qual eles dialogam com as coisas. O poeta sabe que a superfície guarda preciosidades. Prova concreta disso é o poema, quase invisível, na capa do livro, falando de segredo e palavra. Desta Sphera ouvimos uma tonalidade bem mais harmônica e sossegada que a multiplicidade de tons e timbres (líricos, religiosos, épicos, dramáticos...) da prosa poética e memorialística de Os Olhos do Deserto (2000), livro cuja composição inclui trechos de diários e anotações de cadernos de viagem, dos quais emanam múltiplos saberes e diferentes registros existenciais. Agora, o poeta apresenta uma linguagem cada vez mais concisa e encapsulada. Essa concisão possibilita o diálogo entre o moderno verso branco com formas clássicas como o soneto.
Quando a palavra beija a jugular
Por meio desse diálogo entre formas diversas, Marco Lucchesi erige a sua “metafísica das alturas”, em sintonia com as batidas do coração do firmamento. Embora a leitura dessa “metafísica” sugira uma dimensão poética eminentemente platônica, é bom atentar para a forma como o poema constrói-se. Essa construção acontece de olho na concretude do que se encontra no entorno, na superfície; como demonstram as figurações maquínicas e corporais a seguir:
Sobem
Por meio desse diálogo entre formas diversas, Marco Lucchesi erige a sua “metafísica das alturas”, em sintonia com as batidas do coração do firmamento. Embora a leitura dessa “metafísica” sugira uma dimensão poética eminentemente platônica, é bom atentar para a forma como o poema constrói-se. Essa construção acontece de olho na concretude do que se encontra no entorno, na superfície; como demonstram as figurações maquínicas e corporais a seguir:
Sobem
inacessíveis
minaretes ávidos
de altura e de infinito
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e a veia jugular
mais próxima que os céus
mais próxima que os céus
Estes belos versos resumem a “soma das distâncias” de que é feita esta poesia. Se as distâncias de Sphera desejam uma ordem, esse desejo existe em sintonia com o corpo em suas relações pulsantes e cotidianas. O texto da “veia jugular” é, nesta espera, próximo ao céu. Neste sentido, é possível que a pulsação da jugular evoque a altura dos minaretes. Quando essa evocação aciona a torre, a palavra beija a jugular. Beija também os minaretes que sugam, há séculos, a luz, e devolvem essa luminosidade ao olhar faminto e detetivesco que os contempla com desejo de escritura.
A travessia entre a universalidade das alturas (a fixidez dos minaretes) e a singularidade da condição humana (a movência pulsante da jugular) acionam distâncias. São estas distâncias que aproximam o paladar de quem bebe “a baba do dragão”, do paladar de quem saboreia a “saliva dos deuses”. Na travessia entre o universal e o particular, entre o animal e o divino, a leitura das distâncias aproxima o poema e o leitor. E a partir do que está próximo, Lucchesi constrói, com sua matemática subjetiva, uma poética do distanciamento.
Há nessa poética o adiamento dos dias e sua “fome de distãncia”. Saudades do Paraíso (1997) em oposição à saudade do futuro. No tempo presente, os homens e as coisas operam sua fugacidade, quando “sobre/ vive o risco da distância.” No fim, todo esse distanciamento termina aproximando e levando o outro – o tradutor, o leitor, o resenhista – ao “céu (versão literal)”:
E o mesmo rio-palavra respira essas distâncias: as lágrimas de Camões e a brisa dos Sertões (água escrita de terra!)...
Parece haver entre as águas lusas e a terra euclidiana as mesmas distâncias que aproximam, em Sphera, a multiplicidade filosófica de Lucchesi que explode poeticamente de formas platônica e aristotélica. Platonicamente, essa explosão é sugerida perto de “um rebanho de/ palavras junto/ ao rio/ e um lobo i-material”. De Aristóteles, o poeta herda a admiração, o espanto e a capacidade de assombrar-se com a concretude noturna do cotidiano. Nesta distãncia poética vale tudo. Menos o discurso previsível das extremidades, como anuncia o poeta luminoso e faminto: “invoco/ uma palavra// que me salve/ dos extremos.”
A travessia entre a universalidade das alturas (a fixidez dos minaretes) e a singularidade da condição humana (a movência pulsante da jugular) acionam distâncias. São estas distâncias que aproximam o paladar de quem bebe “a baba do dragão”, do paladar de quem saboreia a “saliva dos deuses”. Na travessia entre o universal e o particular, entre o animal e o divino, a leitura das distâncias aproxima o poema e o leitor. E a partir do que está próximo, Lucchesi constrói, com sua matemática subjetiva, uma poética do distanciamento.
Há nessa poética o adiamento dos dias e sua “fome de distãncia”. Saudades do Paraíso (1997) em oposição à saudade do futuro. No tempo presente, os homens e as coisas operam sua fugacidade, quando “sobre/ vive o risco da distância.” No fim, todo esse distanciamento termina aproximando e levando o outro – o tradutor, o leitor, o resenhista – ao “céu (versão literal)”:
E o mesmo rio-palavra respira essas distâncias: as lágrimas de Camões e a brisa dos Sertões (água escrita de terra!)...
Parece haver entre as águas lusas e a terra euclidiana as mesmas distâncias que aproximam, em Sphera, a multiplicidade filosófica de Lucchesi que explode poeticamente de formas platônica e aristotélica. Platonicamente, essa explosão é sugerida perto de “um rebanho de/ palavras junto/ ao rio/ e um lobo i-material”. De Aristóteles, o poeta herda a admiração, o espanto e a capacidade de assombrar-se com a concretude noturna do cotidiano. Nesta distãncia poética vale tudo. Menos o discurso previsível das extremidades, como anuncia o poeta luminoso e faminto: “invoco/ uma palavra// que me salve/ dos extremos.”