uma leitura de A letra do poema, de André Gardel
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- Forum Virtual O Que é Literatura e Teatro/PACC/UFRJ
http://www.pacc.ufrj.br/literatura/arquivo/resenhas_vivendo_o_som_virar_poema.php
- Overmundo
http://www.overmundo.com.br/overblog/a-letra-do-poema-novo-livro-de-andre-gardel
I
Sem aura nem precipícios, a letra e o verso sonorizam uma trilha sonora para o “Tempo” pretérito que grita no presente poético de André Gardel: "Foi como se o passado gritasse/ do fundo do poço pedindo luz" - diz um dos poemas de seu novo livro. Como todos os deuses, o passado é eterno; não se pensa mas sabe pedir. Às vezes implora. Ao poeta pediu o passado outros suportes, cenários, roteiros e atos. Após os Poemas de Nova York (2002), ele serve aos ouvintes e leitores A letra do poema (2006) – um banquete sonoro de palavras, formas e epifanias, onde Dioniso e máquinas de morrer, dentre outros mitos e signos contemporâneos, dialogam sem subordinação.
I I
Uma música sai da página e, via corpo, adentra o espaço. Essa música beija o mundo sentindo quando "...o cheiro de carne/ queimada neblina o ar" ("A ferro"). Ela segue, essa melodia, o poder escultural da língua – "me esculpia com seu discurso" (“Bambu”) –, e em vários ritmos sinaliza as figurações do poeta no palco. Sinaliza também o tácito roteiro do músico e o seu "Vôo da cidade"; e serve de trilha para os ensaios do ator e do ensaísta. Esses eus estéticos - do poeta, do músico, do ator, do ensaísta - dialogam com as formas urbanas de um tempo cujo discurso cultural incorpora o desvio da sedução e o cinismo para desembocar no reino dos afetos: "....onde o discurso segue/ o curso das naus/ recurvas..." (“Cemitério Tróia”) ou na busca da mulher "...Vento que melhora a minha travessia" (“Brinde”).
I I I
Uma imagem pousa no ombro antigo do corpo banhado pela praia – brasa que alumia e queima em qualquer estação –, entortando o prumo e remarcando a ferro a alma de quem escreve e lê. Essa imagem demarca a vida de quem vê e ouve. Como quem brinda procurando "um parto, um pranto, um crime". Como quem lê na vitalidade do cenário que não pára e no ritmo da respiração que celebra ávida de ar o anúncio da fome que retoma o seu lugar no palco da letra. Viver é gastar a vida ou velocidade e memória serão minhas armas (“Da modernidade”).
I V
Um corpo passeia na asa do vento e na brisa da água aguçando o ritmo da canção que atravessa olhos, ouvidos, narinas e cabelos. "Tudo é tato", mãe. Quando o passado pede luz é porque há uma lucidez impressa no corpo que lê: "a claridade beijava o mundo" ("Tempo").
V
Uma tradição sonora e verbal aviva a memória e avisa que quanto mais íntimo do mito ou do demo, menos discernimos neles o quanto de ficção e sabedoria onírica e corpórea os compõem. O excesso de riso do demo gasteja o seu golpe – é o que lecionam os demônios “Da modernidade”. E se eles não tivessem tanto o que (e como) dizer – seja no palco, na veia ou na página – é claro que, desde a Bíblia, eles não teriam tanto espaço, tanta interlocução.