quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Clássico Moderno Marginal















Ítalo Calvino
(Cuba, 1923 - Itália, 1985)



Entrevista elaborada para Nonato Gurgel por Michele e Aline – alunas do Curso de Letras / Italiano, Faculdade de Letras da UFRJ, Rio de Janeiro, 2003


1- Italo Calvino surge no cenário literário italiano, num período em que a História tinha de justificar o fazer poético. Porém, como no trecho da canção "Cio da terra, propícia estação e fecundar o chão..." (Milton Nascimento), qual foi, segundo sua análise pessoal, a propícia estação que Calvino aproveitou para fecundar o chão literário de sua época?

NG: Bela pergunta. A história e a estética (no caso, o processo narrativo) possuem uma longa parceria na historiografia crítica e teórica do Ocidente. Walter Benjamin, por exemplo, leu muito bem essa parceria entre os procedimentos estéticos e os conceitos da história. Militante do Partido Comunista, com trânsito pelas Ciências Agrárias e formação em Letras, Calvino é um autor eminentemente comprometido com a modernidade, seus deslocamentos e sua história. Assim sendo, a “propícia estação” que ele utiliza para fecundar sua obra é a "estação" da linguagem. Ele produz uma linguagem leve e concisa a partir da percepção fragmentada do chão do seu tempo – o contexto do pós-guerra italiano. Embora ele seja um autor totalmente sintonizado com a herança formal e lingüística da tradição clássica.


2- Conforme a palestra oferecida em 01/11/03 na Faculdade de Letras aos alunos da disciplina Literatura Italiana V, do professor Marco Lucchesi e, na entrevista para o Rede de Letras, você informou que Calvino influenciou na esquematização dos elementos de análise de sua tese. Como surgiu a escolha do autor e qual foi a obra de Calvino que o inspirou diretamente?

NG: Calvino não apenas “inspirou”: ele deu-me a forma para a escritura da tese Seis poetas para o próximo milênio. Na arte e na cultura, a forma é o elemento social que se transfere de uma geração para outra. Lezioni AmericaneSei proposte per il prossimo millennio podem ser lidas como a “autobiografia estética” de Calvino. Podem também ser lidas como o arquivo de formas através do qual é possível dialogar com autores clássicos, como Dante ou Ovídio, e com um poeta moderno como Montale. Essa escolha do Calvino surgiu porque eu gostaria de ter como referência, como forma, uma escrita que utilizasse procedimentos estéticos contemporâneos, independente dos núcleos temáticos que o autor abordasse.
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Calvino é, para mim, essa forma – o arquivo. Além dessa obra citada, destaco mais dois textos seus que foram fundamentais para a minha tese: Por que ler os clássicos – onde Ovídio, Galileu, Montale e Gadda, dentre outros, já se fazem presentes, e Palomar, cuja contemplação para o exterior e para a superfície ensinou-me a ler a poesia das coisas, das mercadorias, das ruínas. Ou seja: o sr. Palomar leciona a lição do “nada que tudo deseja” (Lucchesi). Além desses três livros, destaco As Cidades Invisíveis, texto cuja lição também leciona essa relação entre espaço, desejo e texto. Este é um livro muito importante. Nele Calvino assume haver concentrado numa único signo – a cidade – todas as suas reflexões, experiências e conjecturas.


3- "Leminski é, dentre os autores da " literatura marginal" , aquele que mais domínio possui do arquivo de formas da tradição. Talvez ele seja, dentre os seis poetas, o mais consciente da importância da forma." Com base nesta sua afirmnativa, quais as principais características da " geração marginal" que permitem a sua conclusão quanto à postura de Paulo Leminski perante a forma?

NG: O domínio formal de Leminski é visível, concreto. Seja como poeta, ensaísta ou tradutor, ele configura uma forma sintética e singular. Do concretismo e do hai kai oriental, por exemplo, o poeta herda o gosto pela concisão e pela parte significante do signo lingüístico; o que está relacionado a esse apreço pelo culto à forma. Essa postura de Leminski, em meio à geração alternativa ou marginal, destaca-se facilmente porque a maioria dos poetas daquele contexto da contracultura estava mais a fim de registrar e intervir na própria existência do que na historiografia literária. Leminski é exatamente o contrário disso: trata-se de um autor fortemente interessado pelo texto, pelo “estoque de formas” da tradição e pela materialidade das línguas. Com base nisso, ele traduziu James Joyce, Samuel Beckett, Yukio Mishima e, dentre outros, o Satyricon, de Petrônio, cujo posfácio – “Latim com gosto de vinho tinto” – é uma saborosa dose textual de clareza e erudição formal.

4-Na entrevista à Rede de Letras, você afirmou que "os paradigmas da totalidade e da universidade se quebraram", mas que elementos aproximaram, dentro das "Seis propostas para o próximo milênio", Leminski e Lucchesi ao comportamento da tradição clássica?

NG: Os paradigmas que se quebraram são aqueles que davam sustentação às grandes verdades, às grandes narrativas, a uma grande ordem universal e invisível que buscava resumir a particularidade de cada espaço. Hoje isso é praticamente impossível. Depois de Nietzsche, Freud e Marx, a raça humana perdeu a inocência. As grandes narrativas clássicas cederam lugar para textos fragmentados e para obras abertas; tão abertas e inacabadas como a identidade do leitor contemporâneo. Mas isso não é uma negação da tradição. Trata-se apenas de uma outra modalidade de ler os clássicos. Existem várias formas de aproximação com a tradição clássica. Essa aproximação está relacionada com a leitura, o olhar e o ouvido que o leitor ou o autor possuem perante essa tradição.
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Leminski e Lucchesi se aproximam da tradição de formas distintas. Uma leitura de autores múltiplos e rápidos como os selecionados na tese Seis Poetas..., possibilita o exercício das confluências, mas também a leitura da “soma das distâncias” (Lucchesi), das diferenças entre essas poéticas. Além do mais, estes dois autores pertencem a contextos bem distintos. O olhar de ambos os poetas, em relação à forma, se aproxima quando eles apostam na concisão, por exemplo. Para falar da importância do simulacro, em Os olhos do deserto, Lucchesi diz: “Persigo nomes. Sereias abstratas. Tróias esquecidas”. Lembra a escrita sintética e telegráfica do Catatau, do Leminski. Mas na questão da oralidade na poesia, vejo diferenças nas linguagens de ambos.


5-" O Silêncio é o nervo da palavra" ( Marco Lucchesi ) . A multiplicidade de Lucchesi concentra-se no silêncio. Esse fato não aproxima sua forma mais para um padrão contemporâneo que propriamente clássico? Por quê?

NG: Concordo plenamente. A multiplicidade de Lucchesi possui, no plano silencioso, uma de suas bases. Esse silêncio remete mais à esfera da oralidade, por exemplo, que é uma das características típicas do texto clássico; enquanto a visibilidade é bem mais representativa dos escritos modernos. Nesse sentido, o plano silencioso de Lucchesi o insere no mundo clássico, enquanto seu trabalho com a forma e com a concisão da linguagem o aproxima do que você chama de “padrão contemporâneo”.


6- Leminski opera, dentro da atribuição de rapidez, uma perversão dos sentidos da palavra. Qual dos clássicos poderia citar para que vejamos a convergência desse fazer poético?

NG: Ovídio. Esse poeta latino é decisivo para a obra do Leminski. Seja na prosa experimental do Catatau, ou na prosa mítica e poética de Metaformose, através da qual o autor viaja pelo imaginário grego. Ou ainda na poesia de Distraídos Venceremos – texto traduzido para o húngaro com o sugestivo título de Nossa Senhora Distraída.


7- Dentre as poesias desse dois autores ( Leminski e Lucchesi ) apresenta-nos uma em que podemos apreciar melhor o comportamento clássico de ambos?

NG: O que gostaria de apreciar não é exatamente o “comportamento clássico” dos dois poetas, mas a influência dos clássicos em suas obras. Ou seja: podemos ler como ambos os poetas se apropriam do arquivo de formas da tradição, resgatando seus autores preferidos. No caso do Leminski, Ovídio é, como citei, uma das formas resgatadas pelo poeta paranaense, além de Descartes e Bashô, dentre outros. Em Lucchesi, basta ler os “Cadernos de Viagem” que compõem Os olhos do Deserto para percebermos como, por meio dos procedimentos da citação e do intertexto, o poeta reverencia a tradição artística e cultural.