quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Do barbante para a estante







Sobre Cordel






Texto escrito a partir da arguição da tese de doutorado Literatura de cordel: visão e revisão, de Aderaldo Luciano dos Santos, orientada pela professora Dra. Helena Parente Cunha, defendida na UFRJ em 30/09/09.



Literatura de cordel: visão e revisão abre com a seguinte epígrafe de Afrânio Coutinho: “A vida são as paixões.” Essa frase sintetiza a relação de Aderaldo Luciano com o Nordeste brasileiro e o seu antigo objeto de estudo: a literatura de cordel. A paixão pelo cordel abrange mais de 20 anos da sua vida, contemplando um período que engloba os cursos de graduação, mestrado e este doutorado.


Dividida em uma introdução, dois longos capítulos mais uma conclusão, a tese sinaliza o domínio formal do autor que é também poeta, autor do livro O Auto de Zé Limeira, lançado em 2008. O seu conhecimento da poesia brasileira, possibilita um profícuo intertexto com autores como Gregório de Mattos, Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira, João Cabral, Marcus Accioly, Waly Salamão e Patativa do Assaré; todos eles pertencentes à pátria do cordel: o Nordeste - país de Antonio Conselheiro, "grande homem pelo avesso", um dos principais mitos e personagens do cordel.
.
.
Em sintonia com esse berço cordelista, a tese atenta para os poetas que “desembocaram” na metrópole do Capibaribe, desde o final do século XIX e início do século XX, sendo a cidade do Recife lida como “ponto de confluência da modernidade” e espaço no qual “floresceu o cordel”. Essa matriz cultural urbana transforma-se na capital nordestina do século XIX - uma espécie de Paris sertaneja, se comparada com a forma como Walter Benjamin leu a patria de Baudelaire, Proust e surrealistas.


Clareza e a concisão são alguns dos atributos desta escrita. Nela não há hermetismos nem utilização de esquemas teóricos que dificultem a leitura. Essa escrita contém uma base oral muito próxima do grau de oralidade que requer a produção do próprio cordel. Essa opção pelo tom oral torna bastante sedutora a “narrativa” acadêmica. As vezes essa sedução parece meio inusitada ou até exagerada. Isso acontece quando deparamos com termos e expressões como, por exemplo, “tome conta” ou “alguns clarões”.

A Introdução é encerrada com uma menção ao poeta Patativa do Assaré, não sendo citado nenhum verso do autor. Ao adentrarmos a leitura, constatamos que ele é lido como poeta matuto, não como poeta do cordel. Indago: por que não mencionar, por exemplo, Leandro Gomes de Barros que é citado como marco (1902) e como poeta que formatou o cordel? Além disso, ele é eleito pela maioria dos pesquisadores como pioneiro e como um dos mais representativos poetas do cordel. Ou por que não citar Manoel Camilo dos Santos, relido por Orígenes Lessa, e citado num dos mais belos momentos da tese: “Se Camilo abria boca, eu fechava os olhos, ele ficava, eu saía pelo mundo” (p. 78). Apesar desse desvio, é imperativo salientar que, nos dois capítulos, a poesia de cordel se faz presente numa proporção condizente com a presença dos discursos críticos e teóricos.


Leitura Crítica


A pesquisa de Aderaldo Luciano aciona uma espécie de recepção crítica do cordel. Na “arqueologia” que empreende em torno desta forma literária, o autor elabora uma intensa crítica à maioria dos estudiosos e pesquisadores da historiografia do cordel. Essa crítica tem como base os aspectos folclóricos e culturais eleitos nestes estudos e pesquisas, em detrimento dos elementos literários que esta tese busca priorizar.


O texto inteiro é permeado por um tom crítico. Esse tom é, às vezes, adverso em relação não apenas a esses estudiosos e pesquisadores, mas também a alguns poetas cordelistas. Nem mesmo alguns teóricos ficam de fora desse discurso de tonalidade crítica. Excetuando-se Câmara Cascudo, Victor Aguiar e Angélica Soares, é raro o autor com o qual há total concordância (mesmo o mestre Cascudo recebe, no final da tese, uma contestação quando destaca a marca narrativa no cordel). Como cordelista e pesquisador, recebe elogios um autor contemporâneo chamado Marco Haurélio. Ele seria um dos responsáveis pela modernização desta forma literária, cujas estórias surgiram impressas em livrinhos expostos no barbante e geralmente vendidos em feiras. Neste milênio, esses livrinhos começam a ser transpostos do barbante para a estante - espaço destinado para a maioria dos estudos elaborados em torno do cordel.

Estudiosos e pesquisadores como Teófilo Braga, Silvio Romero, Irani Medeiros (ele copiou Veríssimo?) e, dentre outros, Gonçalo Ferreira da Silva (poeta e Presidente da Academia Brasileira de Literatura de Cordel) são alguns dos nomes que geram discordância nesta tese. Com Sebastião Nunes Batista, por exemplo, a crítica parece-me bastante pertinente. Ele não consegue distinguir as diferenças entre as formas do folheto e do folhetim. Conclui de forma equivocada a sua leitura em torno do cordel. Aderaldo recorre a uma citação de José de Alencar, em relação a publicação de O Guarani, para desfazer o equívoco produzido pelo referido estudioso.


Também vejo pertinência na crítica ao escritor Veríssimo de Melo, um estudioso cuja bibliografia é imprescindível para a compreensão da cultura brasileira, e na qual se destacam as Cartas de Mário de Andrade a Luís da Câmara Cascudo (1991) - livro para o qual ele escreveu introdução e notas. Mas, nesta pesquisa, Veríssimo demonstra limitação ao ler o cordel. Como a maioria dos estudiosos, ele elege os núcleos temáticos e os aspectos folclóricos como características. Elas são rebatidas de forma convincente; inclusive com citação de datas despercebidas pelo estudioso potiguar. Também a questão da supremacia do gênero narrativo defendida pelo autor, não determina, segundo a tese, a essencialidade do cordel (Importante registrar que, em pleno século XXI, Aderaldo jamais duvida de conceitos como essência, originalidade, autoria e, dentre outros, origem e fundamento).


Na pesquisa que empreende em torno da história do cordel, o autor deixa claro que a sua origem está na sintaxe entre elementos rurais e urbanos. Ao contrário da grande maioria dos estudiosos, ele apresenta radicalidade ao assegurar não haver “qualquer semelhança” entre o nosso cordel e o cordel produzido na Península Ibérica. Diz ele: “não tem qualquer ligação, exceto no nome”. Essa polêmica perpassa todo o primeiro capítulo, juntamente com a negativa da vinculação do cordel aos cantadores e repentistas. A tese traça diferenças entre o cordel e o repente. Estuda também, dentre outras formas populares, os diferentes tipos de pelejas.


A Linguagem como "personagem" principal


Seguindo a trilha aberta por M Cavalcanti Proença que lê os aspectos literários do cordel, esta leitura elege a linguagem como um dos principais “personagens” desta literatura. Acredito que o mérito desta tese é exatamente este: trazer para o campo da linguagem e do discurso a especificidade do cordel. Estabelecer, como diz o autor, um “caráter literário da literatura de cordel”. Esta é a grande sacada: atentar para o cordel como produção da linguagem. Linguagem como instrumento que estabelece o nexo entre o poeta, sua percepção e as formas de criar e refletir o mundo. Linguagem que ratifica a tradição literária e cultural de quem cria.


Nestes sentido, a linguagem, a forma e a exploração dos recursos fônicos são os elementos que diferenciam o poema matuto (calcado principalmente na fala coloquial) do cordel (mais voltado para procedimentos da escrita como, por exemplo, o acróstico). No cordel, a fusão de elementos descritos e narrativos com procedimentos poéticos possibilita a construção de um texto híbrido onde mais de um gênero se faz presente.


Na utilização da linguagem do cordel, a forma da sextilha – e não a quadra - é lida como característica histórica desta forma literárial. E mais: a sextilha escrita sem a deixa; já que esta constitui-se num procedimento típico dos cantadores em suas sextilhas orais.

.
Cordel atesta a musicalidade da linguagem popular. Resgata as fontes da oralidade, uma das características da escritura clássica. Isso sem falar no recurso clássico que aparece em vários cordéis: a invocação às musas, aos deuses, aos seres inspiradores. Ainda no âmbito dessas relações entre os universos do cordel e do clássico, lembramos o narrador estudado por Walter Benjamin no seu cultuado ensaio "O Narrador". Este narrador benjaminiano é calcado na oralidade e na memória. Ele resgata e repassa experiências relativas à comunidade. Como acontece com vários poetas do cordel, este narrador repassa também uma lição, uma moral, uma norma de vida, um conhecimento utilitário. Com base nestas questões da oralidade, da memória, do repasse da experiência e do recurso da invocação, seria possível afirmar que a literatura de cordel se utiliza mais, em pleno século XX, de procedimentos relacionados à estética clássica do que ao estilo moderno que vigorou nesse século.


Literatura de cordel: visão e revisão sugere ser o Nordeste uma região carente da produção de linguagem, e um espaço para o qual o cordel possibilita a elaboração de uma identidade lingüística. Essa elaboração discursiva leva em conta elementos políticos, estéticos, cotidianos, míticos e imaginários, em sintonia com um contexto histórico que, há séculos, carece de discurso. Neste contexto sócio-literário a linguagem é, portanto, um produto de primeiríssima necessidade.