terça-feira, 15 de setembro de 2009

Sousândrade e a Serpente






.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
Incompreendido no contexto romântico do Século XIX e ausente do cânone literário brasileiro, o poeta maranhense Sousândrade (1832 – 1902) começa, enfim, a ganhar visibilidade estética e histórica. Renegada por críticos como José Veríssimo, a sua produção literária começa a ter a recepção crítica que merece. Mas, sem drama. O próprio autor parecia ter consciência dessa demora. Ouviu dizer que o seu poema O Guesa (1887), escrito durante 30 anos, seria “lido 50 anos depois”. Demorou bem mais. Esquecido pela crítica até 1964 – quando os irmãos Campos publicaram ReVisão de Sousândrade –, o poeta foi lido até hoje por um seleto grupo de críticos e pesquisadores como Luiza Lobo e Jomar Moraes, dentre poucos.


Esse grupo começa a ganhar dilatação neste milênio. Prova disso é edição, em 2003, de Poesia e prosa reunidas de Sousândrade (Org. Frederick Williams e Jomar Moraes), e a publicação, em 2008, de dois livros relacionados à produção do autor: Sousândrade Melhores Poemas, Seleção e Notas de Adriano Espínola, e A Nação Guesa de SousândradeUma Narrativa em Viagem, de Ana Santana Souza. Em torno deste último texto, resultado de uma tese de doutorado defendida na UFRN, com orientação da professora Ilza Matias de Sousa, farei a leitura que segue.

.
Procedimentos modernos e nacionalismo pelo avesso


O livro de Ana começa por introduzir “uma poética de serpente” que reverencia uma lenda maranhense. De olho na cobra que, segundo o imaginário mítico, dorme e cresce submersa na Ilha de São Luís, a autora tece relações entre a narrativa lendária, a poética de Sousândrade e suas figurações ofídicas (“E as serpentes de fogo, iluminadas...”). O ponto de partida é a serpente no paraíso da narrativa bíblica. Com base nela a autora demonstra como a imagem da cobra alimenta o imaginário de várias culturas e nações.


Nas relações que empreende em torno desses discursos imaginários e culturais, Ana envolve o escritor Câmara Cascudo para mostrar como as influências dos mitos ofídicos dessas múltiplas culturas “estão amalgamadas, fundidas” com as nossas tradições populares. Transitando por espaços híbridos onde as fronteiras estéticas e culturais não possuem guarnição, o texto da autora alude à poética da serpente que Sousândrade amalgama e funde ao produzir uma mescla de linguagens que ultrapassam o contexto étnico e lingüístico do Romantismo.


Além da produção de diferentes linguagens, essa poética da serpente caracteriza-se por inscrever uma mescla de idiomas (inclusive línguas indígenas), por apresentar figurações do estrangeiro, do nômade, e pela presença de imagens e elementos móveis, seres errantes, formas múltiplas. Dentre os considerados procedimentos modernos ressaltados pela crítica na leitura dessa poética, a tese destaca o uso do flashback, a intertextualidade, a paráfrase, a paródia, a citação e a criação de um contexto polifônico no qual uma “variação de vozes” são estetizadas.


É claro que a inscrição desses procedimentos estéticos e culturais provoca estranhamento; dificulta a recepção crítica. Daí, uma possível justificativa para a incompreensão do autor num contexto no qual as noções de unidade, pureza, originalidade e totalidade, dentre outros, caracterizavam os textos representativos da idéia de nação e do conceito de literatura. Ao construir a sua narrativa poética a partir de dados referenciais, míticos, históricos e existenciais, Sousândrade confundia narrador e personagem, trazendo para a cena romântica um imaginário bastante complexo. Trazia também um pensamento mítico e uma escrita repleta de elementos que antecipavam o contexto moderno (Ana lembra que os irmãos Campos compara os procedimentos estéticos de Sousândrade aos procedimentos utilizados pelo poeta americano Ezra Pound em seus modernos Cantares).


Segundo Ana, “o estranho Sousândrade revira pelo avesso o nacionalismo romântico.” (p. 26); esse mesmo nacionalismo que tornara canônico o seu conterrâneo Gonçalves Dias. E aqui as diferenças ficam evidentes: enquanto o representante mor da poesia romântica idealiza o indígena e inscreve o mito da nação brasileira, o autor de O Guesa “critica a corrupção do indígena pelo colonizador” (p. 101) e rasura as cores e formas da paisagem original. Além disso, manifesta-se contrário à monarquia. Órfão, viajante de vários espaços – Rio de Janeiro, Paris, Londres, Amazonas, Estados Unidos, América Latina... –, Sousândrade é um poeta para quem a viagem, o exílio e a solidão são motivos presentes na vida, na obra, na morte.



O poeta nos cenários culturais da nação



A “odisséia do Guesa” é resumida numa viagem crítica e inventiva na qual a autora guia o leitor de forma bastante prazerosa. A viagem acontece na companhia de vários autores de diferentes épocas. Conta com a participação de mitos e deuses como Dioniso, Morfeu, Prometeu, Pégaso, Apolo, o sol... Nesta viagem, destaca-se o que de natureza (e metamorfose) e de história (e ruínas) permeiam a nação alegórica reinventada pelo poeta. Munida de estratégias críticas contemporâneas e de um repertório bibliográfico que traça um produtivo intertexto entre vários campos do saber, esta tese estabelece conexões e contrapontos entre estéticas e estilos como Barroco, Romantismo, Simbolismo, Modernismo e Surrealismo, dentre outros.


Destacam-se no texto temas e conceitos como identidade, nação, hibridação, cânone, performance, entre-lugar, mitopoiesis, alegoria... Essa multiplicidade teórica e conceitual retira Sousândrade do esquecimento crítico. Retira-o, sobretudo, do contexto idealizado e emotivo no qual vingou o Romantismo, e possibilita a inscrição da sua poética nos cenários culturais nos quais se move a autora. Segundo ela, “a performance sousandradina está no uso que o poeta faz da cultura das Américas.” (p. 83). (Imagino que essa cultura deveria vir no plural).


Essa inscrição cultural acontece em sintonia com as noções espaciais de descentramento e de multiterritorialidade que perpassa a poética da nação-serpente, propondo a possibilidade do poeta “experimentar diferentes territórios ao mesmo tempo”. (p. 29). Essa experimentação espacial e a idéia de construir uma colagem de vários tempos, no tempo presente, fundamenta a importante tese da autora. Segundo ela, O Guesa é uma alegoria da “América mestiça, reunião de escombros da história, dos sonhos e dos desejos do poeta.” (p. 30).