.
.
.
.
“o eco no bojo da macaíba” em quatro livros de poesia: Invenção Recife, Estação Recife, As formas de morte e À beira do silêncio
Tudo ilha ou Diálogo só com a Tradição
Na historiografia literária brasileira, a Região Nordeste configura-se como um dos espaços que mais produzem literatura. Principalmente poesia. Há uma conexão poética bastante visível entre as estéticas da modernidade e os autores nordestinos, sejam eles Manuel Bandeira, João Cabral de Mello Neto, Joaquim Cardoso, Hermilo Borba Filho, Ariano Suassuna, Sebastião Uchoa Leite (PE), Ferreira Gullar (MA), Mário Faustino (PI), Augusto dos Anjos (PB), Sosísgenes Costa (BA), Zila Mamede (RN) e Jorge de Lima (AL), além de muitos outros.
As poéticas desses autores são freqüentemente resgatadas pelos poetas nordestinos contemporâneos, como demonstram os quatro livros aqui referidos, todos de autores nascidos naquela região, e recentemente publicados. Dentre os volumes, dois são produzidos sob a forma de coletâneas: Invenção Recife, organizado por Pietro Wagner e Delmo Montenegro, e Estação Recife, organizado por, dentre outros, Everardo Norões. Os outros dois volumes são: as formas de morte, de Silvino Ferreira Junior e À beira do silêncio, de Maurício de Macedo.
Um dos procedimentos estéticos que mais chamam a atenção nesses poetas é a freqüência com a qual eles dialogam com a tradição literária (principalmente a poesia modernista brasileira naquela que é considerada sua segunda fase), e como esse diálogo parece escasso entre eles, os próprios poetas contemporâneos. São múltiplas as formas, as imagens, e várias as estéticas que os inscrevem. Nessa inscrição, cada poeta, cada livro, cada poema parece sinalizar em si o esboço de uma poética particular.
Mesmo quando reunidos num mesmo volume – como é o caso das duas coletâneas publicadas pelos poetas do Recife –, esses autores não apresentam traços estilísticos comuns. A leitura dessas duas coletâneas sinaliza os percursos individuais a partir dos quais esses textos se constroem. As formas denotam a falta de manifestos e diretrizes estéticas que caracterizam este início de milênio, sugerindo como cada autor reinventa seu próprio percurso isoladamente.
Ou seja: tudo ilha. Esse isolamento é legível num poema de Pietro Wagner que faz parte da coletânea Invenção Recife: ilha/ retém tuas águas/ para que se faça a cor do teu próximo dia. Do mesmo volume vem o aviso do escritor Jomard Muniz de Britto, acerca desse isolamento como mal poético: "...atenção, amantes do Parnaso: o auto-exílio pode ser a pior das doenças."
O volume no qual se encontram os versos acima é o mais polifônico dentre os quatro livros aqui mencionados. Se colocarmos num liquidificador os principais movimentos de vanguardas e as principais tendências estéticas que estetizaram o século XX – o Concretismo, o Poema-Processo, o Tropicalismo e a Poesia marginal – teremos uma boa pista para a leitura dessa Invenção Recife – coletânea poética 2. Lançado em 2004, o volume anuncia, na apresentação do leminskiano Fabrício Marques, a irreverência pernambucana, sinalizando sua vocação para a negação e o corte: Literatura navalha contra o papo raso da elite vesga.
Para inventar o Recife poético, foram selecionados dez autores. Alguns, bastante conhecidos pela sua “poeticidade”, como o acima citado Jomard Muniz. Irônico, ele lança sua “bula” para inscrever uma outra doença de chagas tropicalistas...; e para construir sua hommage ao poeta Murilo Mendes, constrói um “jogo de espelhos” a partir do qual faz convergir, num mesmo verso, autores díspares como Shakeaspeare, Descartes e Leminski: adeus, hamlet. a deus, descartes. ao tudo, catatau. Vinda do antenado poeta dos arrecifes do desejo, essa conversão inscreve a multiplicidade temática e formal que inaugura as poéticas deste milênio.
A herança concretista desta antologia é vivificada na “CAMISADEVÊNUS” do escritor Marcelino Freire. Na sua hommage ao poeta Carlos Drummond de Andrade, essa herança estética se concretiza no celebrado verso No meio do caminho tinha uma pedra, com base no qual o leitor relê a porção de sísifo que emerge da letra do moderno vate mineiro. Dentre os jovens autores, destacam-se Frederico Barbosa (Prêmio Jabuti de Poesia por Nada feito nada, 1993) e sua “Vocação do Recife” (Faca clara/ que ainda fala/ não), escancarando o produtivo diálogo com Bandeira e sua “Evocação do Recife”.
Esse dialogismo com poetas pernambucanos consagrados pode ser aferido em vários outros textos do livro, e principalmente no verso de um outro jovem autor: Siba Veloso. Mestre de maracatu e músico do grupo “Mestre Ambrósio”, ele é produtor de um dos versos que parece sintetizar o ritmo dessa Invenção Recife: Eu canto imitando os meus. A imitação desse canto possibilita ao autor o resgate das matrizes musicais e da oralidade nordestina, como o leitor pode inferir ao apurar o ouvido para ...o eco/ no bojo da macaíba...
Quando a palavra muda a cor do dia
O mapeamento poético da produção pernambucana continua na Estação Recife – coletânea poética 2. Também lançado em 2004, o volume é aberto com o belo poema “Hoje”, de Deborah Brennad, autora de oito livros de poemas. Pertence à geração de Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho, a poeta viveu em engenhos nordestinos onde criou gado, e destaca-se como proprietária de uma poética centrada na inscrição do tempo, como demonstram seus títulos nesta antologia: Hoje, Dia é dia, Senhor tempo, Dezembro... Autora que exercita uma forma enxuta e de curta extensão, Deborah apresenta um texto certeiro para a abertura de uma antologia contemporânea, leiam:
Hoje
Com a delicadeza
que convém aos mortais
diga-lhe:
no quarto
há lençóis macios
tão alvos
uma cama de ferro
com enfeites
no alto
lembranças do claro
sob cortinas
de gaze
e, na cabeceira,
um par de jarros
ao lado
exalando, suave,
o aroma asiático
dos jasmins.
Descanse nele hoje à tarde.
Comparada com Invenção Recife, essa Estação..., apresenta autores com vasta produção literária e que ostentam, em sua maioria, uma gama de experiências estéticas, além de uma consolidada formação acadêmica. Aqui, alguns textos são mais caudalosos, como no belo poema Alpendres e Currais de Majela Colares, na Litania que o jornalista e compositor Marco Pólo Guimarães dedica ao conterrâneo Osman Lins, ou no “Poema de despedida ao que parte para o mundo”, de Maria de Lourdes Hortas।
Neste livro, os temas e as referências parecem mais centrados nos motivos próximos e regionais, sejam eles: Graciliano Ramos, Joaquim Cardozo, Jackson do Pandeiro, Olinda, Recife, o sertão nordestino, seus silêncios, engenhos, arrebóis e currais.... Através desses temas e motivos, a maioria desses autores parece celebrar a lição de Marco Pólo Guimarães: “Aprendi que só valem a pena as palavras/ que mudem a cor do dia”.
Transeunte desta Estação Recife, o leitor testemunha como são múltiplas as formas, as maneiras de dizer, os temas e os motivos que esses poetas elegem para re-descobrir a cidade, o sertão e suas letras. Nenhum lirismo marginal e poucos roteiros oníricos anunciam-se nesta Estação... Seus autores tecem gestos e desenham ambiências que denotam experiências vivificadas no corpo, na pele, seja através dos cheiros e dos costumes, ou por meio da paisagem áspera e sua cor local.
A celebração desses traços poéticos pode ser lida na forma que se contém e anuncia, com carregado sotaque cabralino, o “Sertão caiado” de Marco Pólo Guimarães:
Aqui o céu é feito lâmina
Aguçada pelo sol
A paisagem é uma chama
Retorcida em cruz e nó
Distante do lirismo como gênero cuja estrutura verbal expressa ritmos e imagens que remetem principalmente ao universo da imaginação, a maioria dos poemas dessa coletânea reflete muito mais o espaço e o tempo da cidade e do sertão aqui inscritos. No embarque à essa Estação... descobre-se um roteiro no qual a poesia desce do céu e das nuvens e desembarca na terra, no corpo e na página à espera de quem lê.
Quando a palavra dialoga com o silêncio
O livro À beira do silêncio, de Maurício de Macedo, inicia por uma visível lacuna: não traz copyright nem folha de rosto com ficha catalográfica. O livro contém, porém, uma orelha informando ser o poeta autor de 12 livros de poesia, e abre-se com uma contemporânea epígrafe de Jorge de Lima – um poeta cada vez mais redescoberto pelos contemporâneos: “Os soluços da noite procuraram a garganta das coisas e falaram”.
Falar por meio das coisas é um procedimento salutar e bastante recorrente nas poéticas contemporâneas, e Maurício busca fazê-lo, dentre outros, através de barquinhos de papel ou de um quadro de Picasso. Para captar esse discurso das coisas, o poeta recorre à leitura do “silêncio” – texto que abre o volume e a partir do qual o escritor Moacyr Scliar constrói a Apresentação do livro. Diz o poema:
Cada um cala em sua palavra uma cicatriz.
Cada um aprende a carregar o seu silêncio
feito o garção que se movimenta
equilibrando a bandeja na palma da mão.
Essa metáfora do garção que busca o equilíbrio ao movimentar-se parece certeira ao vivificar a ação do poeta. A busca desse equilíbrio é notória em poemas como “Terra de náufragos” e “Angústia”, textos que podem ser lidos como uma hommage ao escritor Graciliano Ramos, de quem o autor é conterrâneo. Além do escritor de Angústia, vários outros artistas ligados à estética da modernidade permeiam as páginas de À beira do silêncio, sugerindo o vasto repertório estético do seu autor.
A leitura do seu livro é, sobretudo, um exercício de metalinguagem com saudades do século XX e seus intertextos com a letra, a música, o folclore e a pintura. Além dos dois conterrâneos já citados – Graciliano Ramos e Jorge de Lima –, outros autores que marcaram o século XX e seus ícones mais recorrentes destacam-se neste livro, como: Drummond e sua pedra, Vinícius de Moraes e sua chama, Kafka e seus pesadelos, Lennon e sua ação imaginária, Neruda e seus pássaros, Picasso e seus monstros, além de uma breve ”Fotografia de Rimbaud” que diz:
No horizonte azul
do mar dos olhos do adolescente
um barco bêbado flutua
no périplo infinito das iluminações
Flutuando ente a palavra e o silêncio, a poética de Maurício de Macedo traduz a herança modernista em suas múltiplas vertentes, sejam elas regional, primitivista, cósmica ou cosmopolita. Poesia que relê o homem e seu espaço, evidenciando o capital imagético daquela modernidade que celebra a linguagem debruçada sobre o seu próprio manancial.
Diferentemente dessa linguagem que se debruça sobre a própria linguagem são as formas de morte, de Silvino Ferreira Junior। Embora desprovido da rigidez métrica, o autor não se exila dos territórios da lírica e do misticismo, e em alguns poemas parece tocado pelo “entusiasmo divino” que platonicamente ainda move alguns poetas neste início de milênio। O trabalho com a linguagem parece inconcluso, deixando saltar aos olhos do leitor o que para o próprio poeta não parece evidente, como denunciam versos como um tanto poeta (“rude”) ou em minha poesia está morta (“escrita”).
Sem ficha catalográfica, sem dados sobre o autor nem datas, o livro apresenta um suntuoso projeto gráfico que não se justifica, seja pela falta de cuidados como erro de acentuação, seja pela falta de numeração das páginas ou pela forma inacabada de alguns poemas. O recorte vocabular que os sustentam parece oriundo de outro século, como evidenciam estas palavras: choro, vômito, morte, lágrima, solidão, túmulo, dor, sombra, lâmina, frio, névoa, maldade... Mas num dos seus poucos momentos poéticos, o autor reconhece que só somos humanos, porque nomeamos.
Os poemas desses 4 livros copilam as vozes das coisas e do silêncio com os quais continuamos a cantar os amores e as amizades, de um espaço no qual a oralidade dá o tom em meio aos mitos gráficos e musas audiovisuais. São coisas de quem embarca na perene Estação da Poesia, e ouve “o eco no bojo da macaíba”. Salve as coletâneas.
BIBLIOGRAFIA
FERREIRA JUNIOR, Silvino. as formas de morte. s/d
MACEDO, Maurício de. À beira do silêncio. s/d.
MONTENEGRO, Delmo. e WAGNER, Pietro. (Org.). Invenção Recife. Coletânea Poética 2. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2004.
NORÕES, Everardo. et al. (Org.). Estação Recife। Coletânea Poética 2. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2004.
RJ 2005