segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Sobre a Tese de Benjamin




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Texto escrito a partir de seminário realizado durante o Curso de Doutorado em Ciência da Literatura na UFRJ em Julho de 1999

O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão


Ao contrário da rejeitada tese de livre-docência A Origem do Drama Barroco Alemão, a tese de doutorado O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão (Suíça, 1917-1919), de Walter Benjamin, obteve nota máxima, “summa cum laude”.

Editada logo em seguida em Berna e Berlim, a referida tese é composta de uma Introdução mais duas partes: “A reflexão” – centrada basicamente em Schlegel, Fichte e Novalis – e “A crítica de arte”. Neste texto, faremos uma leitura em torno da Introdução e de “A Reflexão”.

Nesta primeira parte de sua tese, o autor de “O Narrador” reflete em torno de quatro tópicos: Reflexão e Posição em Fichte, O Significado da Reflexão nos Primeiros Românticos, Sistema e Conceito e A Teoria do Conhecimento da Natureza do Primeiro Romantismo.

Uma epígrafe de Goethe introduz a tese de Benjamin. Ela ressalta a importância do sujeito, ao compor “uma análise”, perceber nesta “uma síntese misteriosa”. Duas coisas chamam atenção neste texto de Goethe: a idéia de análise como composição e a “síntese misteriosa” diferençada de “um agregado, uma justaposição”.

A composição da análise nos remete à idéia de harmonia e reflexão internas - características cultuadas e explicitadas pelos românticos. Sobre elas, ouçamos Schlegel: “O característico no ”Tasso” é o espírito de reflexão e harmonia; ou seja, tudo vem relacionado a um ideal de vida e cultivo harmônicos, e até mesmo a desarmonia é mantida dentro de uma tonalidade harmônica (p. 73)”.

Se o caos que nos circunda parece conduzir-nos a “síntese misteriosa”, objetivaria a arte romântica a uma eterna produção harmoniosa em meio a esse caos? A resposta vem de Schelling em seu “Discurso sobre a mitologia”: “...a mais elevada beleza, a mais elevada ordem é, justamente, a do caos, um caos que só espera o contato do amor para se desdobrar em um mundo harmônico... (p. 51)”


INTRODUÇÃO


I - Delimitação da questão

“...expor o conceito de crítica de arte em suas transformações...” ou, mais especificamente, entender o conceito romântico de crítica de arte - esse é o objetivo ao qual se propõe Benjamin ao delimitar a questão de sua tese.

A tese benjaminiana constitui-se, portanto, numa análise do conceito romântico de crítica de arte, e não na “restituição” de uma teoria romântica - “um caso exemplar de terminologia mística” (para Schlegel e Novalis, a filosofia era lida como uma “idéia mística”. Algo “penetrante, que nos introduz irresistivelmente em todas as direções”).

Para a resolução dessa questão – a análise desse conceito, o autor determina pensar os “pressupostos estéticos” e os “gnosiológicos”, lendo implicações entre ambos. Os primeiros relacionam-se às questões estéticas - principalmente a harmonia e a forma, levantadas pelos românticos, enquanto o que pressupõe o Gnosticismo tem a ver com o conhecimento sublime da natureza e dos atributos de Deus.

Embora Benjamin advirta o leitor no sentido de que os românticos não extraíram “conscientemente” dos “pressupostos gnosiológicos” o conceito de crítica de arte, ele admite, logo em seguida, que esse conceito “assenta-se sobre pressupostos gnosiológicos” (p. 20). E claro fica que trata-se de uma tese sobre crítica de arte, “não como método gnosiológico e ponto de vista filosófico” (p. 21).

II - As fontes

Pondo em cena seu personagem principal – Friedrich Schlegel, Benjamin ressalta sua teoria como a mais representativa da crítica de arte romântica. Para esta tese, foram do crítico selecionados, principalmente, os textos publicados por volta de 1800 na revista Athenaum.

Embora nem todos os românticos tenham concordado com o aparato teórico de Schlegel, Benjamin afirma que a intuição do teórico sobre a “essência da crítica de arte” é o que melhor representa a crítica sobre o Romantismo.

Outra fonte presente na introdução da tese é Novalis. Seus escritos, juntamente com os de Schlegel, servirão de base de observação, enquanto que os de Fichte surgem como “fonte imprescindível” para a compreensão do conceito romântico de crítica de arte, mas “não para o próprio conceito” (p. 22).

Imperativo ressaltar que Novalis, embora tenha tido menos interesse com relação à teoria da crítica de arte, “compartilha os pressupostos gnosiológicos” tratados por Schlegel. Benjamin ressalta a relação epistolar entre os dois, destacando (em nota) uma assertiva publicada por um deles: “Teus cadernos penetram violentamente no meu íntimo”. O texto insinua as “influências recíprocas” que, claro, perdurou entre os dois.

Mas um dado curioso é revelado por Benjamin: Schlegel não elegeu nenhum sistema filosófico a partir do qual fosse possível delimitar com mais clareza sua “teoria do conhecimento”. Os “pressupostos gnosiológicos” dos textos da Athenaum ligam-se apenas “às determinações extralógicas, estéticas” e são, com dificuldade, “expostos”. Essa exposição é fundamental para o entendimento do conceito de crítica.

Também fundamentais são as Lições, guiadas por idéias da “filosofia católica”, entre 1804 e 1806. Nestes textos, Schlegel relê conceitos e sentenças sobre a humanidade, ética e arte, por exemplo. Esses escritos revelam, de forma clara, o seu “posicionamento gnosiológico” e o conceito de reflexão – que é “a concepção gnosiológica básica” do autor.

No final de sua Introdução, Benjamin esclarece: as Lições e os escritos de Fichte são fontes “secundárias” que auxiliam na compreensão das fontes “primárias”, a saber: os textos de Schlegel na Lyceum, na Athenaum e Charakteristiken und Kritiken, juntamente com os fragmentos de Novalis, “que determinam de maneira imediata o conceito de crítica de arte” (p. 25)

PRIMEIRA PARTE - A Reflexão

I - Reflexão e Posição em Fichte

Segundo Benjamin, a reflexão é o tipo de pensamento mais freqüente nos primeiros românticos; o que a existência dos seus fragmentos comprova. Para entendermos o conceito de reflexão, o autor sugere que três formas sejam atribuídas aos românticos: imitação, maneira e estilo.

Como imitação, o conceito remete a Fichte, tendo-se como exemplo o primeiro Novalis. Como maneira, o conceito conduz a Schlegel quando, por exemplo, o teórico exige de seu público “a exigência de compreender a compreensão”; “mas é reflexão em especial o estilo do pensamento” (p. 29).

O pensar é definido por Schlegel como “a faculdade da atividade que volta sobre si mesma, a capacidade de ser o Eu do Eu...” (p. 30) Para o teórico, o objeto do pensamento é o próprio eu, o que possibilita a Benjamin a conclusão de que pensamento e reflexão são postos no mesmo plano.

A “natureza reflexionante” do pensar possibilitou aos românticos “uma garantia para o seu caráter intuitivo”. A “intuição intelectual” surgiu na história da filosofia através dos pressupostos elaborados por Kant - primeiro objeto de estudo selecionado por Benjamin para sua tese. Esta pretendia demonstrar como o filósofo fora essencial para o entendimento da crítica romântica, já que o conceito de crítica recebera, na sua época, um “significado quase mágico” (p. 58).

Em sua Crítica da razão pura, Kant elabora uma “exposição metafísica do conceito de tempo”, afirmando que este conceito não deriva de uma “experiência qualquer”. Para o filósofo, “o tempo é uma representação necessária que constitui o fundamento de todas as intuições” (p. 70). Segundo ele, “...uma forma pura de intuição sensível” é o tempo, já que este não é um conceito discursivo, e a sua própria representação é uma intuição.

Mas a contribuição que nos parece mais direta – de Kant em relação aos românticos – estaria na seguinte afirmativa, que evidencia o próprio sujeito, o eu como parâmetro temporário. Ouçamos o filósofo: “O tempo não é mais do que a forma do sentido interno, isto é, da intuição de nós mesmos e do nosso estado interior” (p. 73).

Sintonizado com a natureza reflexiva dos românticos, Kant assegura que o tempo não pode ser determinado por fenômenos externos, não pertence a uma figura ou a uma posição, mas “determina a relação das representações no nosso estado interno”. Para Kant, “a nossa intuição nada mais é do que a representação do fenômeno” (p. 78).

Assim como Schlegel, Novalis e Schelling, o crítico Fichte – que tinha visão de mundo diferenciada dos românticos – também beneficiou-se da “intuição intelectual” kantiana. Na Doutrina-da-ciência, Fichte expõe “a interpretação mútua do pensamento reflexivo e do conhecimento imediato”, demonstrando haver, na reflexão, o momento da “imediatez” e o momento da “infinitude”.

Segundo Benjamin, o primeiro momento “fornece” à filosofia de Fichte a senha para buscar no imediato “a origem e a explicação do mundo”; a “infinitude” “turva aquela imediatez”, sendo eliminada da reflexão. Conclui o autor: “O interesse na imediatez do conhecimento mais elevado, Fichte compartilha com os primeiros românticos. O culto do infinito que eles fazem... separa-os dele e fornece ao pensamento deles o seu direcionamento mais original” (p. 35). Noutras palavras: o pensamento mais “original” dos românticos estaria relacionado ao “culto do infinito” – herança e negação de Fichte.

II - O Significado da Reflexão nos Primeiros Românticos

Rejeitada por Fichte, a “infinitude” é lida por Schlegel e Novalis não como uma “infinitude da continuidade”, mas uma “infinitude da conexão”. Ou seja: nesta “infinitude” tudo pode conectar-se de uma “infinita multiplicidade de maneiras”, possibilitando “níveis infinitamente numerosos de reflexão” (p. 36).

Estes conceitos erigem um esquema do que Benjamin vem a chamar de teoria do conhecimento romântico. Esta teoria possui, no seu ponto de partida, afinidade “com a teoria da reflexão contida no Conceito da doutrina-da-ciência, de Fichte”. Segundo esta doutrina, “o simples pensar com o algo pensado que lhe é correlato constitui a matéria da reflexão”. Isso é, em Fichte, denominado de primeiro grau da reflexão. Em Schlegel, chama-se “o sentido”. Já o pensar o que foi pensado constitui-se no segundo grau da reflexão, e ganha em Schlegel o nome de razão. “...o pensar do segundo grau nasce por si e auto-ativamente do primeiro, como o seu autoconhecimento” (p. 37).

Elucidando a teoria do conhecimento, Benjamin assegura que a forma normativa do pensar não seria a lógica (que pertence mais ao pensar de primeiro grau), mas a forma que é “o pensar do pensar” – que significa “conhecer o pensar”. Sobre isso, conclui Benjamin: “Ele constitui... a forma básica de todo conhecer intuitivo e assegura assim a sua dignidade como método; ele abarca sob si, como conhecer do pensar qualquer outro conhecimento inferior e, assim, forma um sistema” (p. 38).

A formação de um sistema demonstra que o “pensar do pensar” transforma-se em “pensar do pensar do pensar e assim por diante”, atingindo-se desse modo o que se chama terceiro grau da reflexão. A tese benjaminiana diferencia a reflexão absoluta da reflexão originária. A primeira envolve “o máximo da realidade nos sentidos”, enquanto a reflexão originária envolveria o mínimo.

Schlegel e Fichte pensam de modo oposto. Fichte crê na intuição do Eu; Schlegel, não. Por isso rompe com Kant que formula a “intuição intelectual”, e diz: “Não podemos intuir a nós mesmos, neste ponto o Eu sempre nos escapa. Podemos, no entanto, certamente pensar a nós mesmos...” (p. 41).

Afirmando ser a reflexão um pensar “absolutamente sistemático” e “não um intuir”, Schlegel considera que a imediatez do conhecimento deve ser salva, sugerindo para isso tornar-se necessário romper com a doutrina kantiana.


Fichte acredita no conhecimento intuitivo. “Para ele o conhecimento imediato é encontrado apenas na intuição”. Na nota 48 essa questão é ratificada da seguinte forma: “...porque o Eu absoluto é imediatamente consciente de si na reflexão, esta intuição é denominada de intelectual” (p. 42).

Em cena entra Novalis, posicionando-se ao lado de Schlegel. Segundo ele, “...em Fichte o Eu limita-se a si mesmo através do Não-Eu – apenas inconscientemente”. Segundo Benjamin, esta observação de Novalis assinala que a limitação do Eu não pode ser inconsciente mas apenas consciente e, logo, relativa.

O que os românticos não aceitam é a limitação via inconsciente. Para eles, toda limitação é relativa e esta só se dá na “própria reflexão consciente”. Schlegel tem uma saída inusitada para a questão, ao sugerir que os limites da reflexão estão fora desta. Dessa forma a limitação não seria relativa, “mas efetuada por vontade própria”. Ou seja, a vontade – essa “capacidade de deter a reflexão e de direcionar a intuição a seu bel-prazer para qualquer objeto determinado” (Schlegel) – é que teria capacidade de limitar.

É também com base no aparato teórico de Schlegel que Benjamin cria o conceito de absoluto a partir de um “medium-de-reflexão”. Este termo resume a filosofia teórica do autor, sendo por Benjamin explicado da seguinte forma: “...a reflexão mesma é um medium - graças ao seu constante conectar; por outro lado, o medium em questão é tal que a reflexão move-se nele, pois essa, como o absoluto, movimenta-se em si mesma” (Nota 61 - p. 45).

Novalis foi precursor dessa “medialidade do absoluto”. “Autopenetração” é considerada por Benjamin como “a feliz expressão” que indica a “unidade da reflexão e da medialidade”.

III - Sistema e Conceito

A tese de Benjamin indaga se os românticos “pensavam sistematicamente” ou se “perseguiam interesses sistêmicos” na construção de seu pensamento. Indaga também porque estes pensamentos sistêmicos, se é que eles existem, enunciam-se através de um discurso “tão evidentemente obscuro” ou mistificador.

Benjamin responde a estes questões ressaltando em Schlegel e Novalis a produção de um pensamento que foi “determinado por tendências e contribuições sistêmicas” (p. 49). Diz que Schlegel nunca se reconheceu contrário aos sistemáticos, e que o fato dele expressar-se por meio de aforismos não comprova qualquer impossibilidade sistêmica. Reforçando sua tese, Benjamin cita Nietzsche como exemplo de um pensador que escreveu “aforisticamente”, sem danos para a elaboração de sua filosofia.

Na defesa que faz de Schlegel, Benjamin diz que ele “nunca foi um cético” e em seguida destaca uma denominação da lógica feita pelo crítico na Athenaum. Segundo Schlegel, seria a lógica uma “ciência que parte da exigência de verdade positiva e da pressuposição da possibilidade de um sistema”. Essa denominação parece bastante convincente para quem acredita na perene eficácia da razão instrumental.

Benjamin reconhece no entanto que Schlegel não atingiu, na época da Athenaum, uma maturação sistêmica. Isso pode ser aferido nas seguintes assertivas: “Os pensamentos sistemáticos não possuíam então a supremacia no seu espírito” ou “O interesse estético preponderava sobre tudo” (p. 52). Schlegel era um “filósofo-artista”. Seu lado artístico o impossibilitava de vivenciar as trilhas lógicas da sistematização.

Sobre Schlegel, é dito ainda que para ele o absoluto era “o sistema na figura da arte”, embora ele não tenha compreendido de forma sistemática esse absoluto. Para Benjamin, o crítico tentou, ao contrário, “compreender de maneira absoluta o sistema” (p. 53). Refletindo acerca do sistema, Schlegel vê no conceito a possibilidade daquele expressar-se. Ouçamos o teórico: “a reflexão é o ato intencional de compreensão absoluta do sistema, e a forma adequada da expressão deste ato é o conceito” (p. 55).

Na época da Athenaum, o conceito de arte produzido por Schlegel é realizado com evidente “intenção sistemática”. Diz ele: “A arte, criando a partir do impulso da aspiração da espiritualidade, conecta esta em formas sempre novas com o acontecer do conjunto da vida do presente e do passado. A arte liga-se não a acontecimentos singulares da história, mas a sua totalidade...”

Como sabemos, o romântico tentava distinguir-se do clássico produzindo uma obra que, ancorada em “bases históricas”, em “histórias verdadeiras”, pretendia separar, por exemplo, verdade de aparência e seriedade de jogo. Nesse sentido, pensamos na modernidade do clássico... Embora este também tenha a pretensão de captar a vida e a história na sua “totalidade”.

Com relação à crítica, os românticos foram menos “totalitários” e ganharam um olhar bastante convincente. Depois de relido o “espírito místico” contido na terminologia de Kant, ficou claro que uma obra crítica, “por mais alta que se considere sua validez, não pode ser conclusiva”. Neste sentido, diz Benjamin, “os românticos aludiram ao mesmo tempo sob o nome da crítica ao reconhecimento da insuficiência inevitável de seus esforços, procuraram mostrá-la necessária e, finalmente, aludiram com este conceito àquilo que se poderia designar a necessária incompletude da infabilidade” (p. 59).

Importante ressaltar que a partir dos românticos a antiga expressão “juiz da arte” é substituída por crítico da arte. Menos mal!

IV - A Teoria do Conhecimento da Natureza do Primeiro Romantismo

Concluindo a primeira parte de sua tese, Benjamin lança uma assertiva que, à primeira vista, parece óbvia: a crítica inclui o conhecimento do seu objeto. Em seguida, ele afirma que a teoria do conhecimento do objeto é “diferenciada do sistema ou do absoluto”, mas deriva dela.

No primeiro romantismo, a teoria do conhecimento de arte desenvolve-se em Schlegel (“sob o título de crítica” ) e em Novalis ( “sob o de conhecimento da natureza”). Observando a teoria do conhecimento, o autor percebe ser esta “imprescindível para a exposição do conceito de crítica de arte” (p. 61). Para Benjamin, a teoria do conhecimento do objeto é determinada pelo desdobramento do conceito de reflexão em seu significado para o objeto.


BIBLIOGRAFIA


BENJAMIN, Walter. O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão. Trad. Introd. e Notas: Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Ed. Iluminuras / Edusp, 1993 (Biblioteca Pólen).