sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Resina de Diva











Sou leitor de Diva Cunha, das antigas. Lembro de uma rede em Pureza-RN onde li-ouvi, numa revoada, o seu Canto de Página. Em 2001, quando apresentei num congresso na UFMG o texto “O mais profundo é a pele”, tratei da poesia feminina contemporânea destacando poemas de dois livros de Diva: Canto de Página (1986) e A palavra estampada (1993).

Na leitura que empreendi em torno desses poemas, tinha como base a noção da consciência corporal como procedimento estético. Lendo o corpo como espaço de estetização do desejo, via na poética de Diva Cunha a criação de um texto que simula o corpo que o produz, atentando para a dimensão poética e ontológica desse corpo. Por isso usei como título para o meu texto Diva da consciência corporal do poema.

Com base nesta “consciência”, desejo um dia escrever um ensaio sobre essa poética que tanto prazer nos dá. Foi pensando nisso que comecei a ler Resina. Logo nos primeiros versos, percebo que essa consciência corporal continua acesa. As figurações do corpo e do desejo são estampadas num recorte vocabular repleto de barra de saia, saliva, sangue, veias, rugas, “carne, semente, sumo, odores”... Essas figurações corporais e desejantes podem ser aferidas nos seguintes versos de Resina:

...
cada célula é uma asa
despetalada para o vôo
...

@

Deus me mantém
viva e ocupada
com as coisas da carne

@

...
A carne cresce em silêncio
flor carnívora

Este quinto livro da poeta anuncia, já no título, as conexões existentes entre a seiva do corpo que cria e a matéria estética que ele próprio produz. Isso pode ser aferido, de forma referencial e denotativa, na Resina como verbete de dicionário: “Substância inflamável, consistente e untuosa, que corre naturalmente... do caule de algumas plantas; substância análoga, de origem animal.”

Ou seja: de saída, a poeta já nos brinda com um título cuja definição tem tudo a ver com o conceito da própria poesia. Poesia na sua forma mais concreta (de filiação assumidamente cabralina) e contemporânea. Poesia que é seiva; seiva que se faz forma. Como forma que possui na consistência e na possibilidade de untar o seu ethos, o poema de Diva é irrigado pela seiva de várias substâncias, extrapolando o plano referencial do dicionário. Sua Resina molda. Dela “um sumo forte escorre”. Ela contém matérias de diferentes reinos e elementos que afloram durante a leitura, como podemos ler neste poema curto e denso:

Só na terra
o corpo encontra
exata medida
que transforma
a carne em flor
a morte em vida

Espanto da carne

Indagada numa entrevista de 2009 acerca das suas maiores “fontes de inspiração”, Diva Cunha respondeu nesta ordem: “O meu dia-dia, o universo feminino e Natal.” Essa resposta ratifica a inscrição de uma metalinguagem erótica e corporal na sua poética quando lemos em Resina: “O corpo contém/ o pequeno mundo de cada dia”. Os dois versos inscrevem, na dimensão temporal do poema, o corpo da mulher florescendo na cidade que serve de “fonte de inspiração” para a sua escrita.

As relações entre o corpo e o plano da escritura desdenham as abstrações em prol da matéria de que é feita o poema: “eu era só carne/ nem tinha alma para perder” ou “Em quantos pedaços repartir a pele/ que cobre o espanto da carne?” Muitas podem ser as respostas. Uma delas é sugerida pela poeta ao inscrever as poéticas de sua formação.

Resina traz, em seus múltiplos roteiros metalingüísticos, os mestres que nutriram o corpo do poema de Diva. Ecos de Manuel Bandeira, Cecília Meirelles, Carlos Drummond, João Cabral, Murilo Mendes e Ferreira Gullar são audíveis e estampados em vários cantos de página de Resina. A seiva deles está em Diva.

Essa seiva transforma-se em Resina. “Inflamável, consistente e untuosa”, a matéria inscrita por Diva irriga a tradição e nutre as veias de quem lê. O leitor sabe que enquanto a carne continuar espantada, a palavra terá a sua estampa. Sabe também que o espanto do corpo esculpirá madeira nova. Cheia de seiva.