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Texto escrito a partir de seminário apresentado durante o Curso de Mestrado em Estudos da Linguagem, na UFRN, Natal, 1994.
História e Sonho
O mito é o nada que é tudo
Fernando Pessoa, Mensagem
A mitologia pode ser lida como um conjunto de narrativas, signos e símbolos construídos no decorrer dos tempos, pelos mais diferentes povos, na busca de compreensão e sentido para a existência humana. Essa busca visa, na maioria das vezes, entender o que não é da ordem do visível.
Nessa tentativa de explicar o tempo e o espaço nos quais vivemos, o homem constrói um vasto arquivo de saberes e ações compostas por elementos físicos, espirituais e intelectuais, dialogando com dados referenciais e históricos que são repassados de geração a geração.
Os mitos estão relacionados a problemas internos e mistérios que perpassam várias etapas da evolução humana. Tanto para Freud como para Jung, a questão mitológica possui uma relação direta com dois universos complexos e interdependentes: a história e o sonho.
Em seu livro A Interpretação dos Sonhos (1900), Freud lê o sonho como a realização de um desejo, e interpreta a linguagem dos sonhos para pensar questões relacionadas aos mitos como, por exemplo, as suas formas expressivas.
Para Jung, em seu livro O Homem e os Seus Símbolos, os sonhos não são produtos do acaso, pois eles “estão associados a pensamentos e problemas conscientes”. A própria escritura do texto jungiano ratifica esta problemática: para decidir acerca da publicação desta sua última obra, o autor recorreu a recursos conscientes e inconscientes.
Jung teve o estudioso Joseph Henderson como seu colaborador. Escrevendo sobre os Mitos Antigos e o Homem Moderno, Henderson atesta estar a história antiga do homem sendo “redescoberta”, “através dos mitos e imagens simbólicas” que sobreviveram. Esse redescobrimento histórico torna-se viável porque para Jung a mente humana é produtora de sua própria história. Semelhante descoberta tem por base a convicção de que “a psique retém muitos traços dos estágios anteriores da sua evolução”. A psique significa, etimologicamente, a alma. Na psicologia freudiana, representa o aparelho mental.
Na interpretação que empreende em tono do inconsciente coletivo, o autor de Sonhos, Memórias e Reflexões, trata esse inconsciente como “a parte da psique que retém e transmite a herança psicológica comum da humanidade”. Essa conceituação jungiana nos remte a Doutrina dos Ciclos, de Platão, e ao Eterno Retorno, de Nietzsche, na medida em que os sonhos e os mitos de uma determinada época podem ser vivenciados e / ou decifrados num processo considerado atemporal.
I – O Herói, o mito mais conhecido
Pesquisas acerca de lendas, estátuas, desenhos, símbolos, templos, línguas... comprovam o que nos transmitem velhas crenças; atestam o vigor do mito nas sociedades modernas.
Dentre os vários e antigos mitos estudados por Jung, o mito do herói destaca-se como “o mais conhecido em todo o mundo.” Apesar das variações dos detalhes, o autor afirma que estes mitos possuem semelhanças no que se refere às suas estruturas. A sua leitura sugere haver uma seqüência típica nas ações do herói, mostrando que a sua experiência ultrapassa, na maioria das vezes, a experiência comum. Isso torna o herói um personagem extremamente sedutor, na medida em que ele experimenta e canaliza, na maioria das vezes, ações em prol de objetivos comuns e não apenas individuais.
O texto de Jung nos permite vislumbrar o “elo crucial entre os mitos arcaicos ou primitivos e os símbolos produzidos pelo inconsciente.” Essa produção inconsciente aponta para a importância que o sonho assume nas análises propostas por, dentre outros estudiosos, os psicólogos e literatos. Tais análises têm geralmente por base a “livre associação” desenvolvida por Freud.
II – Os conteúdos da psique
A relação entre os mitos arcaicos e os símbolos do inconsciente possibilita uma interpretação desses mitos e símbolos dentro de uma perspectiva histórica e tendo por base um “sentido psicológico”. Essas leituras sugerem uma confluência entre as teorias de Freud e Jung. Os conteúdos da psique transformam-se na matéria de ambos. Para o pai da psicanálise, “os mitos são projetados no céu depois de terem nascido em outro lugar e sob condições puramente humanas.”
Estudando a psique e sua relações com a libido (energia que flui nos processos e estruturas psíquicas), Freud destaca o desejo como algo que se verifica nas relações lingüísticas, sociais e sexuais; o que determina a importância do outro, do diferente na constituição identitária.
Segundo a pesquisadora Miriam Chnaiderman, este desejo que serve de objeto de estudo para Freud é também o que determina o estudo sobre as funções que Vladimir Propp elabora acerca da Morfologia do Conto. Neste estudo, “o conto maravilhoso na sua base morfológica” aparece também como um mito. Relacionando em “Sonho: conto e mito” as funções de Propp ao trabalho psicanalítico, Miriam conclui: “... as funções de Propp são constelações do desejo tal como é teorizado seja por Freud, seja por seus seguidores mais contemporâneos.”
III – O Mito Segundo Barthes
Relações entre Mito e História são ratificadas pelo teórico Roland Barthes. Desconstruindo as estruturas míticas cotidianas, o autor desvela em Mitologias (1957) a ideologia burguesa, através da leitura de obras de arte, produtos de alimentação e do consumo, personagens e personalidades, dentre outros.
Para Barthes, o burguês (o pequeno burguês) é incapaz de imaginar o outro, na medida em que este outro, pela sua diferença, constitui “um escândalo, um atentado à essência.”
Em Mitologias, o autor parece fazer psicanálise da própria sociedade da qual faz parte como pensador e teórico. Segundo ele, “o mito é uma fala escolhida pela história.” Nesta leitura barthesiana, além de fala, o mito anuncia-se como linguagem e forma.
Para Barthes, a história além de transformar “o real em discurso”, determina a vitalidade da linguagem mítica. No estudo dessa linguagem, o autor faz distinção entre os mitos relacionados à imagem e os mitos de conteúdo verbal. Nesse estudo, fica evidente a superioridade dos mitos imagéticos sobre os gráficos, já que a imagem “impõe a significação de uma só vez, sem analisá-la, sem dispersá-la”.
Os argumentos barthesianos nos fazem concluir serem as mutações dos mitos determinadas pela História, e que o mito surge do processo cultural, não sendo, portanto, nenhum produto natural. Embora postule “a imobilidade” da natureza.
ÍNDICE ONOMÁSTICO
Barthes, Roland
Freud, Sigmund
HendersonJoseph
Jung
Nietzsche
Platão
Propp, Vladimir
Texto escrito a partir de seminário apresentado durante o Curso de Mestrado em Estudos da Linguagem, na UFRN, Natal, 1994.
História e Sonho
O mito é o nada que é tudo
Fernando Pessoa, Mensagem
A mitologia pode ser lida como um conjunto de narrativas, signos e símbolos construídos no decorrer dos tempos, pelos mais diferentes povos, na busca de compreensão e sentido para a existência humana. Essa busca visa, na maioria das vezes, entender o que não é da ordem do visível.
Nessa tentativa de explicar o tempo e o espaço nos quais vivemos, o homem constrói um vasto arquivo de saberes e ações compostas por elementos físicos, espirituais e intelectuais, dialogando com dados referenciais e históricos que são repassados de geração a geração.
Os mitos estão relacionados a problemas internos e mistérios que perpassam várias etapas da evolução humana. Tanto para Freud como para Jung, a questão mitológica possui uma relação direta com dois universos complexos e interdependentes: a história e o sonho.
Em seu livro A Interpretação dos Sonhos (1900), Freud lê o sonho como a realização de um desejo, e interpreta a linguagem dos sonhos para pensar questões relacionadas aos mitos como, por exemplo, as suas formas expressivas.
Para Jung, em seu livro O Homem e os Seus Símbolos, os sonhos não são produtos do acaso, pois eles “estão associados a pensamentos e problemas conscientes”. A própria escritura do texto jungiano ratifica esta problemática: para decidir acerca da publicação desta sua última obra, o autor recorreu a recursos conscientes e inconscientes.
Jung teve o estudioso Joseph Henderson como seu colaborador. Escrevendo sobre os Mitos Antigos e o Homem Moderno, Henderson atesta estar a história antiga do homem sendo “redescoberta”, “através dos mitos e imagens simbólicas” que sobreviveram. Esse redescobrimento histórico torna-se viável porque para Jung a mente humana é produtora de sua própria história. Semelhante descoberta tem por base a convicção de que “a psique retém muitos traços dos estágios anteriores da sua evolução”. A psique significa, etimologicamente, a alma. Na psicologia freudiana, representa o aparelho mental.
Na interpretação que empreende em tono do inconsciente coletivo, o autor de Sonhos, Memórias e Reflexões, trata esse inconsciente como “a parte da psique que retém e transmite a herança psicológica comum da humanidade”. Essa conceituação jungiana nos remte a Doutrina dos Ciclos, de Platão, e ao Eterno Retorno, de Nietzsche, na medida em que os sonhos e os mitos de uma determinada época podem ser vivenciados e / ou decifrados num processo considerado atemporal.
I – O Herói, o mito mais conhecido
Pesquisas acerca de lendas, estátuas, desenhos, símbolos, templos, línguas... comprovam o que nos transmitem velhas crenças; atestam o vigor do mito nas sociedades modernas.
Dentre os vários e antigos mitos estudados por Jung, o mito do herói destaca-se como “o mais conhecido em todo o mundo.” Apesar das variações dos detalhes, o autor afirma que estes mitos possuem semelhanças no que se refere às suas estruturas. A sua leitura sugere haver uma seqüência típica nas ações do herói, mostrando que a sua experiência ultrapassa, na maioria das vezes, a experiência comum. Isso torna o herói um personagem extremamente sedutor, na medida em que ele experimenta e canaliza, na maioria das vezes, ações em prol de objetivos comuns e não apenas individuais.
O texto de Jung nos permite vislumbrar o “elo crucial entre os mitos arcaicos ou primitivos e os símbolos produzidos pelo inconsciente.” Essa produção inconsciente aponta para a importância que o sonho assume nas análises propostas por, dentre outros estudiosos, os psicólogos e literatos. Tais análises têm geralmente por base a “livre associação” desenvolvida por Freud.
II – Os conteúdos da psique
A relação entre os mitos arcaicos e os símbolos do inconsciente possibilita uma interpretação desses mitos e símbolos dentro de uma perspectiva histórica e tendo por base um “sentido psicológico”. Essas leituras sugerem uma confluência entre as teorias de Freud e Jung. Os conteúdos da psique transformam-se na matéria de ambos. Para o pai da psicanálise, “os mitos são projetados no céu depois de terem nascido em outro lugar e sob condições puramente humanas.”
Estudando a psique e sua relações com a libido (energia que flui nos processos e estruturas psíquicas), Freud destaca o desejo como algo que se verifica nas relações lingüísticas, sociais e sexuais; o que determina a importância do outro, do diferente na constituição identitária.
Segundo a pesquisadora Miriam Chnaiderman, este desejo que serve de objeto de estudo para Freud é também o que determina o estudo sobre as funções que Vladimir Propp elabora acerca da Morfologia do Conto. Neste estudo, “o conto maravilhoso na sua base morfológica” aparece também como um mito. Relacionando em “Sonho: conto e mito” as funções de Propp ao trabalho psicanalítico, Miriam conclui: “... as funções de Propp são constelações do desejo tal como é teorizado seja por Freud, seja por seus seguidores mais contemporâneos.”
III – O Mito Segundo Barthes
Relações entre Mito e História são ratificadas pelo teórico Roland Barthes. Desconstruindo as estruturas míticas cotidianas, o autor desvela em Mitologias (1957) a ideologia burguesa, através da leitura de obras de arte, produtos de alimentação e do consumo, personagens e personalidades, dentre outros.
Para Barthes, o burguês (o pequeno burguês) é incapaz de imaginar o outro, na medida em que este outro, pela sua diferença, constitui “um escândalo, um atentado à essência.”
Em Mitologias, o autor parece fazer psicanálise da própria sociedade da qual faz parte como pensador e teórico. Segundo ele, “o mito é uma fala escolhida pela história.” Nesta leitura barthesiana, além de fala, o mito anuncia-se como linguagem e forma.
Para Barthes, a história além de transformar “o real em discurso”, determina a vitalidade da linguagem mítica. No estudo dessa linguagem, o autor faz distinção entre os mitos relacionados à imagem e os mitos de conteúdo verbal. Nesse estudo, fica evidente a superioridade dos mitos imagéticos sobre os gráficos, já que a imagem “impõe a significação de uma só vez, sem analisá-la, sem dispersá-la”.
Os argumentos barthesianos nos fazem concluir serem as mutações dos mitos determinadas pela História, e que o mito surge do processo cultural, não sendo, portanto, nenhum produto natural. Embora postule “a imobilidade” da natureza.
ÍNDICE ONOMÁSTICO
Barthes, Roland
Freud, Sigmund
HendersonJoseph
Jung
Nietzsche
Platão
Propp, Vladimir