Casa de Machado no Rio
Ensaio apresentado no I Seminário Machado de Assis, UERJ, Agosto de 2008
Machado e os Procedimentos Modernos de Quincas Borba
...o que devia transmitir-se era o conjunto de “ferramentas” com o qual se podia reinventar, com a inocência espontânea da ação, o que havia sucedido no passado. O mais valioso que os homens fizeram, o que valia a pena que voltasse a acontecer.
E recomeçar era a tarefa mais repetida do mundo
César Aira, Um acontecimento na vida do pintor-viajante
Quero falar das formas mudadas em novos corpos
- 1º verso das Metamorfoses, Ovídio
Quando publicou em 1892 Quincas Borba, o seu sexto romance, Machado de Assis já questionara os paradigmas da literatura romanesca. Ele havia rompido com a noção de gênero literário, ao publicar, em 1881, as fragmentadas Memórias Póstumas de Brás Cubas, onde “passou a lidar com o foco narrativo de primeira pessoa” (Bosi, 2006, p. 7). Para essa ruptura com os padrões romanescos, o autor releu a tradição literária atentando, dentre outros, para a história das formas estéticas.
Assim como no texto de Memórias póstumas de Brás Cubas, cujos capítulos são indeterminados em relação à estrutura formal, a narrativa de Quincas Borba constrói-se a partir de 201 capítulos que podem apresentar duas linhas ou duas páginas. Irregulares quanto à extensão, repetitivos algumas vezes, inacabados, os capítulos remetem uns aos outros. Assim como acontece com alguns livros e personagens do autor.
Quincas Borba, por exemplo – o filósofo do Humanitas (o princípio universal) –, cruzara com Brás Cubas, numa rua do Passeio Público, no Rio de Janeiro das Memórias Póstumas... Quincas Borba é também o nome do cachorro a ser tratado como “pessoa humana” por Rubião – professor de Barbacena (MG) que vem morar no Rio (RJ), após herdar a fortuna do filósofo, e que se apaixona pela sedutora Sofia.
A leitura da estrutura fragmentada e transitiva do texto remete às noções de materialidade e aos procedimentos literários utilizados pelo autor, e que antecipam as narrativas modernas do século XX. Dentre os múltiplos procedimentos utilizados por Machado, esta leitura de Quincas Borba aciona a releitura mítica, o corte, o intertexto, a poética da leitura e a metalinguagem.
A releitura do mito de Lilith
Ao acionar esses procedimentos e os seus núcleos temáticos, o autor tece um denso intertexto com a historiografia dos saberes, e relê alguns dos seus mitos mais recorrentes, assim como o mito de Diana que personifica a lua na mitologia latina. Mas, dentre os mitos relidos para engendrar a narrativa de Quincas Borba, o que mais se destaca é o mito de Lilith. Lenda ou história, trata-se de um signo ambíguo, uma leitura plural, cuja sombra possibilita a liberação psíquica e social do eu feminino. Lilith ressurge no século XX, após as bruxas da Idade Média, na Psicanálise de Freud e na arte surrealista.
Criada antes de Eva pela mentalidade patriarcal socialmente dominante, ela consegue envolver-se com os extremos, seja o sacro ou o profano, o prazer ou a morte. Seu império é ambulante: vai do Éden ao deserto, passando pelos quartos noturnos onde repousam almas solitárias. Domina ela o sexual e o psíquico. É bruxa, deusa ou demônio. Se Eva alivia, Lilith seduz. Ou mata. No seu festim nem as criancinhas ficam de fora...
As narrativas em torno desse mito atestam que a própria natureza conspira a seu favor. Terras, mares, ventos, noites e luas são alguns dos signos naturais utilizados por Lilith para atingir o ser humano, dilatando narinas, seduzindo a todos com seus olores. Na tradição oral, os homens, após serem atacados por Lilith, morriam ou permaneciam melancólicos, segundo Bárbara Black em O Livro de Lilith . As mulheres, também contatadas por Lilith, utilizam a descoberta dessa força para desenvolverem os seus potenciais femininos.
Em Quincas Borba, são muitas as figurações que remetem ao mito de Lilith. Mas as manifestações de uma leitura com sabor lilitheano ocorrem de forma sutil. O primeiro manifesto de sutileza e sedução acontece quando Sofia envia para Rubião uma cesta de morangos. Acompanha a cesta um bilhete intimando-o a almoçar em sua casa. Comentando o episódio, diz o narrador: “Via-se a comoção no rosto e nos dedos do mineiro”. O texto feminino foi relido, e o nome da remetente fez nosso professor beijar o papel.
Este é apenas um primeiro gesto gerador de uma seqüência de sentimentos, além de sutis palavras e detalhes que vão surgindo na medida em que Sofia / Lilith e a narrativa avançam. Sofia usa, através de gestos e palavras escolhidas, seu arsenal de sedução, deixando Rubião completamente enfeitiçado. O discurso do corpo da mulher, seus movimentos, olhos e cabelos negros, são signos que contribuem para o desenvolvimento dessa magia.
Segundo o narrador no cap. CLXXXIX, Sofia possui “a arte maviosa e delicada de captar os outros” (Assis, 1992, p. 230). Rubião sente-se “maluco, grosseiro”, desafiado pelos “olhos freqüentes, depois fixos, os modos, os requebros, a distinção” de Sofia. Ela possui o dom de “...lhe dizer coisas melodiosamente afáveis”.
Quanto mais avançamos na leitura, mais clara é a percepção de que a esposa de Palha, ao seduzir, desarticula a linguagem de seu sócio. Por vezes anula sua capacidade de dialogar. Quando, por exemplo, Dona Tonica interroga Rubião, ele responde “mecanicamente” as mesmas palavras que a senhora utilizara na indagação. Motivo: concentrado estava Rubião na contemplação de sua musa, cuja capacidade de absorvê-lo é total.
Constatamos que nas situações de tensão ou dúvida Sofia tem sempre o domínio da palavra. Sua palavra atua feito arma: “Rubião tremia, não achava as palavras; ela achava todas as que queria...” (Assis, 1992, p. 91). Sem a propriedade do verbo, o nosso herói torna-se presa de um sentimento dilacerante e burguês (no que este possui de posse): o ciúme de Sofia. Ela, como Lilith, faz vibrar o sanguíneo, deixando as pessoas em situações de perda, como evidencia o narrador: “O ciúme trouxe ao nosso amigo uma dentada de sangue” (Assis, 1992, p. 101).
O sentimento da dúvida impossibilita as ações do seduzido. Sofia, utilizando-se da fragilidade de Rubião, faz com que aumente nele a dúvida em relação ao causador do ciúme, as possibilidades de envolvimento entre Carlos Maria e sua paixão. “E o espírito de Rubião pairava sobre o abismo.” (Assis, 1992, p. 113). Ele, atormentado, pensa em “estrangular o infame...”, mas o mineiro não consegue estrangular sequer a dúvida que o persegue...
Da série de danos que Sofia provoca em Rubião, surge a sua “consciência partida em duas”, “ambas desorientadas” (Assis, 1992, p. 65). No dizer do narrador, “Rubião era ainda dois”. Isolado em seu delírio, o mineiro não interage com o contexto, não alcança a noção da diferença. Por esse motivo, sua comunicação se dá com os astros, sem sintonia com a condição humana. Ele possui apenas a imaginação como suporte.
Os ritmos dilacerados de Rubião e sua paixão leva o professor em marcha para a lua. Ele delira. Encarna a figura de Napoleão, frente às paredes, discursando como se fosse o imperador francês. Com a consciência partida e sem discurso, Rubião perde a noção do real e a capacidade de articular sua linguagem em consonância com o outro.
Sua insanidade é provocada pelo desenvolvimento da porção lilitheana de Sofia atuando sobre ele. Ela leva-o ao isolamento. Leva-o à loucura, à pobreza material. Leva-o, por fim, à morte e ao que esta tem de mais solitário, humano, lilitheano. Tudo isso porque Lilith, além de seduzir, mata.
O corte
A literatura moderna nasce principalmente das mutações perceptivas que acontecem no cotidiano urbano do início do século XX. Essas mudanças na percepção são provocadas pelas dimensões maquínica e tecnológica que passam a erigir a subjetividade moderna, e a noção de visibilidade que a caracteriza.
Nesse contexto marcado por um forte sincretismo estético, o progresso e a ciência apresentam suas armas sedutoras que traduzem essa nova percepção urbana: bares, cafés, bondes elétricos, confeitarias, iluminação pública. Jornais e revistas revelam um ritmo mais apressado de leitura. O Rio de Janeiro consome livros e modelos europeus, cervejas alemãs, conhaque francês...
Essas mudanças perceptivas produzem, na escrita, uma estética do choque. Essa estética leva em conta o atrito, o desvio, a deriva, como elementos constitutivos do corte, e auxilia na ruptura da linearidade da narrativa, procedimento com o qual Machado passa a operar a partir das Memórias Póstumas... Reconhecido pelas vanguardas do início do século XX e pelo Modernismo (principalmente no cinema e nas artes plásticas), o corte – e a fragmentação – são utilizados nos romances e contos machadianos, criando miríades de possibilidades na produção da leitura e na construção do sentido.
Conceito oriundo do universo das chamadas ciências exatas, o corte transforma-se num procedimento artístico que, ao sugerir, solicita a participação de quem lê. Porque possibilita o atalho e agiliza a leitura, o procedimento de cortar é de suma importância para a construção do ritmo do texto e da sua forma fragmentada. Além disso, o fragmento põe em cena uma dimensão metonímica da existência e da escrita, ao contrário das noções de totalidade e de plenitude pretendidas pela metáfora.
No romance Quincas Borba, o corte é visível no poder de contenção do autor. Esse poder é expresso no uso das elipses – traço que remete ao folhetinesco, ao inacabado; àquilo que é sugerido e possibilita mais de uma leitura. Vejamos, a seguir, o capítulo II de Quincas Borba, onde Rubião aparece fitando a enseada de Botafogo, no Rio de Janeiro. Na “paisagem social” (Bosi) descrita pelo narrador, lemos as conexões entre diferentes pessoas, tempos e espaços. O trabalho com a pontuação do trecho nos faz perceber, através do procedimento do corte, um ritmo quase cinematográfico, vejamos:
CAPÍTULO II
Que abismo que há entre o espírito e o coração! O espírito do ex-professor, vexado daquele pensamento, arrepiou caminho, buscou outro assunto, uma canoa que ia passando; o coração, porém, deixou-se estar a bater de alegria. Que lhe importa a canoa nem o canoeiro, que os olhos de Rubião acompanham, arregalados? Ele, coração, vai dizendo que, uma vez que a mana Piedade tinha de morrer, foi bom que não casasse; podia vir um filho ou uma filha ... – Bonita canoa! – Antes assim! – Como obedece bem aos remos do homem! – O certo é que eles estão no céu (Assis, 1992, p. 19).
O intertexto
Retomando o conceito de dialogismo de Bakhtin, Julia Kristeva afirma: “todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de textos; ele é uma escritura-réplica (função e negação) de outro...”. (Moisés, 1990, p. 94). Nessa leitura que privilegia a noção de diferença, a fonte é referência não apenas como idéia do original e da fundação, mas como possibilidade de recriação e de transformação do original.
A teoria da intertextualidade é, portanto, relacionada à noção do outro, do diferente, da citação alheia. Citare, em latim, significa por em movimento, passar do repouso à ação. A ação intertextual consiste, pois, em acionar um diálogo entre textos. A evocação de leituras, as reminiscências de outros textos lidos, o recorte das epígrafes, o uso de citações, a referência a personagens de outros romances (Otelo, Próspero, Tristram Shandy, Desgrieux...) os provérbios, os ditos populares.
Em Quincas Borba, a intertextualidade perpassa toda a narrativa, possibilitando a audição de outras vozes, como: a Bíblia, Goethe, Homero, Byron, Camões, Cervantes, Rabelais, Voltaire, Dante e Shakespeare, dentre outros. Principalmente o autor de Hamlet que, assim como no conto “A cartomante” e em inúmeros outros texto de Machado, possui em Quincas Borba os seus versos parodiados (a paródia – texto que rasura o original, ao contrário da paráfrase –, é outro procedimento estético utilizado por Machado na releitura dos mitos, dos arquétipos, na recriação de antigas linguagens).
A poética da leitura
Não apenas a Estética da Recepção, mas as variadas tendências críticas e teóricas têm sido praticamente unânimes ao ressaltar a forma singular como Machado dialoga com o leitor. Se em Memórias Póstumas de Brás Cubas o narrador trata com ironia o leitor que ama “a narração direta e nutrida”, em Quincas Borba esse diálogo irônico inicia no terceiro capítulo, quando o narrador diz: ”Vem comigo, leitor...” (Machado, 1992, p. 21).
Na produção machadiana é recorrente o diálogo entre a voz que narra e quem lê. “Queres o avesso disso, leitor curioso?”, indaga o narrador abrindo o capítulo XXXI. Machado chega a culpar o leitor pelos resultados da sua escrita. Prega peças. Zomba do tempo de espera do leitor e, praticamente, o obriga a situar-se frente às questões que envolvem os personagens, seus temas, a construção da própria narrativa.
O narrador machadiano conduz o leitor com indagações afetuosas, toques de início leves, humorados e que corroem depois, cobram reflexão. Esse narrador exige de quem lê um repertório interdisciplinar (principalmente estético e literário) que inclui a história e a política, dentre outras áreas do saber. Isso fica evidente, por exemplo, no capítulo CXI de Quincas Borba, onde Rubião e Camacho dialogam em torno do Voe Victis (Ai dos vencidos) – frase de um general gaulês que saqueou Roma em 390 a.c.
Em Quincas Borba, a dupla – leitor e narrador – atravessa alguns dos 201 capítulos, e aparece dialogando no último: “... vendo a morte do cão narrada em capítulo especial, é provável que me perguntes se ele, se o seu defunto homônimo é que dão o título ao livro, e por que antes um que outro, - questão prenhe de questões, que nos levariam longe... Eia!”
A metalinguagem
Em seu texto “A Modernidade do Romance”, o crítico João Alexandre Barbosa situa Machado de Assis na tradição de Stern e Flaubert, caracterizando-o como moderno. Diz o autor: “Na esteira do que mais essencialmente caracteriza a modernidade em literatura, Machado de Assis realiza a difícil operação de articular metalinguagem e história, conseguindo, por isso mesmo, transformar a linguagem da realidade em realidade da linguagem”.
Como exemplo dessa modernidade que articula “metalinguagem e história”, ouçamos o narrador de Quincas Borba: “Ainda não disse, - porque os capítulos atropelam-se debaixo da pena, - mas aqui está um para dizer que, por aquele tempo, as relações de Rubião tinham crescido em número” (Assis, 1992, p. 185).
Como em outros trechos do romance, nesse o narrador interrompe a história para elucidar o seu processo de criação. Procedimento que vai fundamentar a prosa e a poesia brasileiras do século XX, a metalinguagem, assim como os demais procedimentos aqui relidos, atestam a modernidade que Machado funda na Literatura Brasileira.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSIS, Machado de. Quincas Borba. São Paulo: FTD, 1992.
____ Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
BARBOSA, João Alexandre. A leitura do Intervalo. São Paulo: Iluminuras, 1990.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
____ Brás Cubas em três versões. Estudos Machadianos. São Paulo: Cia. das Letras, 2006.
KOLTUV, Barbara Black. O Livro de Lilith. Editora Cultrix, São Paulo, 1994.
PERRONE-MOISSÉS, Leyla. Flores da Escrivaninha. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.
SICUTERI, Roberto. Lilith – A lua negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.