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Livro de Heloísa Buarque de Hollanda traduz sua atuação reflexiva e pesquisa dialógica
Resenha publicada no Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio, 19 /12/ 2009
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Viagens de Dona Helô
O memorial acadêmico é uma forma estética muito praticada. Todos os professores universitários escrevem, mas pouquíssimos publicam. Texto reflexivo centrado na autoformação e na reinvenção de si, o memorial pode ser lido também como narrativa autobiográfica. Assim sendo, contém dados referenciais, elementos estéticos e figurações da memória em torno da profissão e da existência de quem o escreve. Esses dados, elementos e figurações compõem as Escolhas que a ensaísta e professora Heloísa Buarque de Hollanda acaba de publicar pela Ed. Língua Geral.
Com trânsito historicamente inscrito em gêneros nobres como a poesia, Heloísa nunca escondeu o seu afeto pelos gêneros “menores”. Como escritora ou editora, ela sempre tornou público o seu gosto descarado por cartas, biografias, diários, relatos e tudo aquilo que o Bakhtin enquadra num certo grupo especial de gêneros. A esse grupo associam-se as escritas da memória – autobiografias com passagens assumidamente ficcionais, como as estratégias que sedimentam essas Escolhas.
Com organização de Ramon Mello, prefácio de ponta de Beatriz Resende e orelha de Zuenir Ventura, a autobiografia intelectual de Heloísa compõe-se de um memorial acadêmico e de um texto atual escrito a partir de entrevistas. Contém fotos acesas e uma narrativa histórica que muito traduz das artes e culturas produzidas no Brasil a partir dos anos 60 até hoje.
Essa narrativa é bastante política e pedagógica. Perpassa grande parte da historiografia dos saberes e das práticas culturais sobre os quais Heloísa refletiu, lecionou e escreveu nas últimas 5 décadas. Ou seja, essas Escolhas ratificam os temas da sua paixão: poesia, cinema, teatro, antologias, feminismo, relações de gêneros, pós-moderno, estudos culturais... O livro registra também os recentes estudos em torno das Estéticas da Periferia, o diálogo com as Vozes das Quebradas, via Numa Ciro, a escrita virtual, a vida literária na Web...
Se, como afirma Bauman, ser moderno é estar em movimento, Heloísa é o signo da modernidade em si. Suas trajetórias são marcadas por trânsitos, deslocamentos, viagens infindas... Passagens que elegem o hoje, o contemporâneo como tempo de inscrição. Suas intervenções em várias instituições e programas – UFRJ, TVE, MIS, CIEC, Funarj, Funarte, CNPq... – testemunham a movência em torno dessas Escolhas.
Elas traduzem a atuação reflexiva, a pesquisa dialógica e a práxis de uma existência corpórea calcada naquele “saber com sabor” de que fala Roland Barthes – um teórico para quem “o contemporâneo é o intempestivo”, e com quem a autora se diz identificada.
Dama das Passagens
Incongruente. Esquisita. Antenada. Tsunami. Insolente. Absurda. São muitos os adjetivos utilizados para cognominar Dona Helô. Literariamente conhecida como “a primeira dama da poesia”, ela narra como viveu a metade da década de 70, em plena repressão militar, sintonizada com a poesia marginal de Cacaso, Chico Alvim, Waly Salomão e, dentre outros, Ana C.
Do alto dos seus 70 anos, a professora titular de Teoria Crítica da Cultura da UFRJ apresenta uma espécie de texto da urgência, escrito “nas trevas do presente” (Agamben), onde elementos da cultura, da política e da estética configuram a sua “categoria da presença” (Jackson de Figueiredo), seja como administradora, como intelectual ou como consultora acadêmica e cultural.
Entre o plano da liberdade e a forma estética, as interferências discursivas de Dona Helô apontam para um dos seus antigos objetos de estudo: o ensaio de Walter Benjamin e a sua forma alegórica de ler o texto do mundo. Como o autor das Passagens, Heloísa assume o seu investimento na cultura urbana, na leitura dialógica entre diferentes espaços. Opta por uma ação política que privilegia, a contrapelo, a “brecha” das passagens estéticas e existenciais.
Entre o pessoal e o político, ela atravessou as últimas décadas investindo benjaminiamente na esfera factual, em detrimento das convicções e suas abstrações Exemplo concreto desse investimento é o Programa Avançado de Cultura Contemporânea que ela criou na UFRJ. O PACC põe na cena acadêmica as questões do mundo pós-Muro de Berlim, passa pelo 11 de setembro americano e chega ao que está acontecendo neste momento em alguma passagem do planeta. Como as Escolhas de sua autora, o PACC não acaba nunca. Nem pára.